O FOGO E A FÚRIA

Parte II – De Desejo e Vingança

"Silently we wander

Into this void of consequence

My shade will always hunt her

But she will be my guiding light"

Wander - Kamelot

A passagem, que antes era coberta pelos tentáculos verdes, desmoronou como um castelo de cartas. A nuvem de poeira cresceu cobrindo tudo ao redor, o estrondo de dentro da montanha diminuiu e, aos poucos, sumiu. Kurama correu de volta para entrada procurando Hiei. A poeira o engoliu e ele se viu preso em um mundo fosco sem poder dar um passo a frente.

"Hiei!" – chamou.

"Você quer parar de gritar, Kurama? Eu já te ouvi."

No meio da poeira um ponto escuro se aproximava cambaleante e a figura de Hiei carregando Lyn nos braços foi tomando forma até ficar bem perto de Kurama. A ladra estava enrolada na capa preta do koorime. Apenas parte do rosto e os cabelos negros estavam à mostra. Kurama não disse nada. Na verdade, não sabia o que dizer. Procurou qualquer palavra de incentivo, mas todas pareciam muito inúteis diante dos olhos vermelhos que não conseguiam esconder a dor.

Hiei caiu de joelhos com Lyn entre os braços. As forças pareciam ter acabado, aquele estranho sentimento de perda só fazia as feridas arderem mais. Kurama ajoelhou-se de frente para o amigo e pôs a mão em seu ombro. O koorime piscou perdido em pensamentos depois, levantou-se e deu as costas a Kurama.

Um enterro para Lyn... Olhou para os lados e a enorme nuvem de poeira ainda não tinha se desfeito por inteiro, era quase um mundo vazio. Pôs as mãos nos bolsos e fechou os punhos a ponto de fazê-los sangrar. Hiei não queria se importar, saber ou lembrar. Afastou-se com passos lentos, perdendo-se por um mundo poeirento que se desfazia.

Ele não queria derramar uma lágrima sequer.

"Kurama!" – a voz de Kuwabara fez doer os ouvidos enquanto o corpo do humano se delineava na poeira que baixava. – "Cadê o Hiei?"

Kurama estava ajoelhado com a cabeça de Lyn apoiada nas mãos e não deu nenhuma atenção à pergunta do humano.

"Eu não consigo imaginar como Hiei deve estar se sentindo." – Yusuke falou abaixando-se ao lado de Kurama.

"Ele foi vencido." – Kurama respondeu, se levantando – "Agora vamos tirá-la daqui."

A nuvem de poeira havia finalmente baixado deixando uma fina camada de pó cinza sobre tudo. Kuwabara tomou o corpo de Lyn nos braços e seguiu até o local onde haviam acampado na noite anterior. Ninguém falou nada, não tinham palavras nem ânimo. As passadas eram arrastadas e pesadas e mais ninguém queria ir em frente.

De repente, Kuwabara estacou, seu corpo tremeu de surpresa.

"Kurama, venha ver isso!"


Hiei surgiu da escuridão na noite seguinte. Não mancava mais apesar das queimaduras ainda arderem e não conseguia mexer o braço esquerdo totalmente. Kuwabara e Yusuke estavam dormindo próximos à fogueira enquanto Kurama estava agachado de costas para ele, concentrado em algo no chão.

"Você a enterrou?" – Hiei perguntou, olhando ao redor.

"Não." – Kurama respondeu ainda de costas.

"O que você fez, então?"

"Nada."

Hiei arregalou os olhos sem entender a resposta. Kurama se levantou, olhou-o tranqüilamente e depois, seus olhos verdes se desviaram para o chão. Hiei acompanhou o olhar do amigo e viu o rosto de Lyn iluminado pela luz da fogueira.

"O quê - "

"Você não está sentindo?" – perguntou Kurama antes que o koorime completasse a frase.

Hiei não disse mais nada, seu rosto foi tomado pela mais pura surpresa, abriu a boca tentando dizer algo, mas o silêncio continuou intacto.

Como...?

Algo fluía ao redor deles, tão leve e conhecido. Sentiu um toque quente sobre a pele que fazia lembrar um toque familiar. Seus olhos correram do rosto de Lyn de volta para os de Kurama que observava a sua surpresa com um meio sorriso. Milhares de pensamentos explodiram em sua cabeça e uma sensação boa que ele nunca conseguiria explicar o invadiu.

"Ela ainda não acordou, mas está respirando..." – Kurama falou – "Quando você foi embora, nós sentimos a energia. Está ficando cada vez mais forte. Só não sabemos como algo assim pode ter acontecido."

Hiei não disse nada.

"Eu acredito que foi o seu desejo." – Kurama continuou.

O koorime finalmente piscou, fugindo dos seus pensamentos.

"Hn." – ele murmurou balançando a cabeça negativamente – "Eu pedi vingança."

"Então, aonde está o assassino, Hiei?"

A mente de Hiei não lhe forneceu a resposta. Não sabia a resposta, deveria saber, mas não sabia. Nos últimos dias não tinha pensado nesse assunto e sim, no fato de que Lyn estava morta, e apenas nisso. Havia deixado de lado missão, vingança, amigos e só agora sentia que voltava ao mundo real. Forçou a memória, vasculhou cantos da mente, mas lembrava-se apenas de algo lhe dizendo que tudo estava pronto e a palavra vingança se repetindo em sua cabeça e a angústia de ver Lyn morta...

"Eu não sei..." – o demônio do fogo respondeu frustrado – "Mas isso não significa que eu tenha pedido para ela voltar!"

"Tem certeza? Me parece a resposta mais óbvia. Lyn estava morta, nós a vimos morrer, Hiei. O que poderia trazê-la de volta?" – Kurama perguntou.

Hiei balançou os ombros – "Eu não sei, mas não pode ter sido eu."

Kurama sentou-se no chão ao lado de Yusuke e Kuwabara, desamarrou o pedaço de pano da mão cortada e viu que a ferida tinha criado uma crosta escura. Hiei já dera as costas para ele e caminhava para longe do acampamento.

"Eu acho que você deveria estar aqui quando ela acordar." – Kurama disse alto o suficiente para Hiei ouvir


Hiei montou guarda aquela noite - como se precisassem de vigília naquele lugar sem vida! - Na verdade, não queria dormir. Ficava olhando a noite quieta, com os sentido atentos, seguindo qualquer ruído no vazio, mas só eles estavam ali. Não tinha mais olhado Lyn, pensava nela ainda como um fantasma. Não acreditava que seu pedido tivesse sido ela.

"Hiei...?" – a voz de Lyn saiu baixa e seus os olhos vermelhos de Hiei largaram a escuridão – "O que aconteceu?"

O demônio não respondeu, não conseguia fazer mais do que olhá-la. Passara todas aquelas horas esperando que ela acordasse e, começava a duvidar que isso fosse acontecer até ouvir seu nome.

"O que aconteceu, Hiei?"

Um vazio ocupava a cabeça de Lyn, sentia que faltavam memórias e sobravam espaços em branco. Tinha a impressão de que a dormência no corpo era muito mais do que o cansaço da luta contra o demônio-morcego. Ela se lembrava claramente de ter se entregado... A surpresa nos olhos de Hiei denunciava que algo estava fora do lugar ali, e Lyn começava a imaginar que poderia ser ela própria.

"Você fez um pedido?" – ela perguntou confusa.

Hiei concordou balançando a cabeça – "Eu pedi vingança."

Lyn sorriu no escuro satisfeita - "Seus amigos conseguiram a resposta que procuravam?"

"Não."

"E onde está a sombra?"

Hiei balançou a cabeça negativamente - "A caverna inteira desabou." – falou tentando mudar de assunto.

Ela olhou em volta – "Todos parecem bem... então, onde está a Sombra?" - Hiei hesitou e Lyn se irritou com o ar distante dele – "Você quer me responder direito!"

"Nós não sabemos!" – ele rebateu no mesmo tom e Lyn se encheu de frustração.

"Antes você tivesse ficado soterrado!" – ela resmungou ácida, fazendo Hiei saltar do seu lugar com o impulso de agarrar-lhe o pescoço, mas se limitou a chegar bem próximo, trincando os dentes como um lobo. Ela sempre despertava isso nele.

"Eu fiz o pedido!" – ele murmurou entre os dentes – "Por um acaso você sabe como aquilo funciona? Não importa o que sai da sua boca, algo descobre o seu verdadeiro desejo. Não importa nem mesmo o que você pense..." - Lyn olhava-o fixamente quase sem respirar. Os olhos de Hiei brilhavam com o fogo e ela pôde ver as marcas da luta com Haldran.

"Você estava morta!" – ele disse muito baixo em seu ouvido.

Hiei acabara de se entregar, de assumir que a salvara de novo. Não só para ela como para si mesmo. Lyn não respondeu, também não se moveu diante da ameaça do demônio. De repente, muito do vazio em sua mente passou a fazer sentido. Os dois caíram em um instante de silêncio compreendendo o que havia sido dito. Ela realmente havia morrido e o desejo de Hiei a trouxe de volta. Ele a queria tanto assim?

Lyn pôs a mão no ombro ferido de Hiei e o puxou para perto de si, fazendo com que sentasse ao seu lado. Não conseguiu parar de olhá-lo um só momento até que ela passou as mãos pelo rosto num gesto cansado:

"Eu sabia que isso ia acontecer." – ela disse em voz baixa, desviando o olhar envergonhado para a noite.

"O quê?" – Hiei perguntou sem entender.

"Meus planos não deram totalmente certo... na verdade, não deram certo de forma nenhuma." – ela deu um riso sem graça – "No dia em que roubei o Tesouro as sombras me atacaram."

"Você já me contou isso." – Hiei falou.

"Mas não contei que a sombra me feriu com a minha própria espada e, aos poucos, fui perdendo minhas forças. Era um veneno e eu ia morrer em algum momento. A Espiral de Chamas bastou para acabar com as energias que restavam..."

"Porque não falou nada?" – ele perguntou.

"Você contaria?" – Lyn balançou os ombros – "E eu morreria mesmo assim, quer dizer... eu morri mesmo assim. Além do que, me sentiria devendo algo a cada um de vocês e você sabe que eu não descanso até pagar minhas dívidas... Pelo menos eu preciso pagar só uma novamente e não quatro."

O koorime sacudiu a cabeça negativamente.

"O que aconteceu com você?" – ela perguntou, com a testa franzida.

Hiei olhou para o próprio corpo com as roupas rasgadas – "Sua vingança."

"Eu deveria agradecer..." – ela disse, sabendo que no fundo deveria mesmo, mas nunca faria. Hiei, de qualquer maneira, sabia que aquilo era o mais longe que ela iria em demonstrar sua gratidão.

Lyn esticou a mão para pegar suas espadas, mas Hiei afastou a bainha rapidamente.

"Você tem que descansar." – ele falou sem olhá-la.

"Você se importa?" - Lyn perguntou.

"Não, mas você pode morrer de novo e está ficando repetitivo te salvar toda hora."

"Hiei?" – o chamado obrigou-o a olhar de volta para ela - "Porque você não consegue me deixar morrer?"

Hiei não conseguiu segurar um sorriso tímido. Lyn olhou a noite junto com ele, sentia que já dormira tempo demais e, aos poucos, seus músculos pediam mais movimento. Os dois não disseram mais nada, não havia mais necessidade. Entendiam-se muito mais quando estavam em silêncio.


Kurama acordou um pouco antes do sol nascer. Hiei estava de pé, de costas para o grupo e para as montanhas que guardavam a Caverna dos Desejos, seu olhar estava perdido no horizonte pedregoso, o braço enfaixado sumia dentro do bolso e a mão esquerda estava apoiada no punho da katana. O youko parou ao seu lado, olhando na mesma direção.

"E eu ia perguntar se ela estava bem." – Kurama falou com satisfação.

Mais adiante Lyn rodopiava sua espada sob a luz estranha da manhã e a lâmina brilhava a cada giro e estocada contra o ar.

"Você conseguiu entender porquê o seu pedido não foi atendido e Lyn voltou da morte?" – Kurama já sabia da resposta, mas queria fazer o amigo dizê-la.

Hiei olhou-o com um meio sorriso no rosto.

"Deixe as coisas como estão, Kurama."

Ele pôs as mãos nos bolsos observando os giros de Lyn.

"Como você quiser."

"Ei, o que vocês estão olhando aí?" – Kuwabara perguntou se aproximando e fazendo um barulho de pedras afundando com os sapatos. Os youkais olharam para trás sem muito interesse em ver Yusuke coçando os olhos e abrindo uma boca capaz de engolir cabeças de crianças.

"Nossa, como ela se recuperou rápido!" - Kuwabara falou surpreso.

"A força física já voltou, mas sua energia espiritual continua baixa." – Hiei explicou.

"Acho que ela está querendo ter certeza que está viva." – Yusuke falou olhando por entre as pernas dos três.

Isolada, Lyn imaginava uma luta contra a Sombra, pensava em como fazer sua espada cortar o ar tão profundamente que fosse capaz de matá-la. Não bastava apenas fazer o zunido do metal ficar mais agudo e agudo enquanto rodava a espada, precisava cortar o ar. O sol ia esquentando seu corpo que ficara muito tempo preso na escuridão da morte e ela sentia o sangue correr frenético como se quisesse compensar o tempo parado. Os cabelos negros colaram no rosto que começava a suar. Girou a espada na mão direita, fingiu uma esquiva, rodou o corpo como uma dançarina e desceu a katana da esquerda para a direita com força. O zunido foi leve e mortal.

"E agora, o que ela está fazendo?" – Kuwabara perguntou vendo que Lyn ficara imóvel de repente.

"Ela está imaginando se pode ganhar de uma sombra." – Hiei completou sem fazer questão de ser entendido.

Lyn ajeitou o corpo e embainhou a espada. A distância impediu que os quatro vissem que seu rosto voltava-se para eles. Era hora de partir.