Capítulo 2 – Shaka
Era setembro de 1778. A estação chuvosa (1) ia chegando ao fim na Índia. Os Templos Gêmeos e as planícies ao redor estavam sendo fustigadas por uma forte tempestade naquela tarde do dia 19, provavelmente uma das últimas chuvas daquela estação.
Um jovem de longos cabelos azuis ondulados, com uma franja delicada caindo sobre os olhos verdes, terminava de colocar incenso no altar da Trimurti. Sentou-se em posição de lótus, arrumando as dobras da túnica branca e o manto de casimira vermelha. Tirou de dentro da túnica um belo rosário de pérolas brancas.
Seus olhos começaram a se fechar para a meditação, mas foi interrompido por um barulho no salão e voltou a abri-los. Encontrou um garoto de cabelos negros e olhos verde-claros, olhando-o como a pedir perdão pela intromissão. Sorriu-lhe, fazendo sinal para que falasse.
---Mestre Hypnos quer vê-lo.
---Faça a prece em meu lugar, Shiryu – pediu antes de se retirar.
Hypnos era o mestre do templo do leste. Bem como seu irmão Thanatos era mestre do templo do oeste. Eles estavam velhos. A fraqueza da idade tomara seus corpos e estavam se preparando para partir. Os gêmeos Saga e Kanon haviam sido escolhidos para substituí-los.
O garoto de cabelos azuis que andava apresado pelo corredor era Saga. Aos dezessete anos, sentia-se muito honrado pelo lugar que em breve ocuparia. Fora criado no templo desde muito pequeno. Tinha Hypnos na conta de um pai bondoso e sábio. Abriu a porta timidamente.
O quarto recebia apenas a parca claridade do dia chuvoso que passava pelas janelas que tinham as cortinas de seda branca abertas. Um homem muito velho repousava confortavelmente sobre uma cama em uma das extremidades do aposento. Sentou-se na cama, segurou a mão do mestre.
--Shiryu disse que queria me ver. Como se sente?
--Em paz. Cumpri minha missão nesta terra, estou pronto para partir.
Saga sorriu. Sabia que Hypnos conseguira aquilo que todos buscavam, alcançara a iluminação e não mais voltaria àquele mundo. Ia habitar o Nirvana (2) e viver pela eternidade junto aos deuses.
--Fico feliz pelo senhor, mas não posso deixar de sentir sua falta...
--Vou estar com você em suas lembranças. E se for da vontade dos deuses, nos veremos novamente.
--Tenho notícias de seu irmão. Thanatos mandou uma mensagem dizendo que também está pronto. Vai partir com o senhor.
O olhar de Hypnos se iluminou. Não via o irmão há semanas, desde que as pernas haviam deixado de obedecê-lo e não pudera mais tomar o barco e atravessar o rio. Um dos costumes era o mestre do templo do oeste atravessar o rio pela manhã e o do leste no final da tarde, para que os irmãos pudessem se encontrar e discutir sobre as decisões e afazeres.
--Saga... Tem uma coisa que você ainda não sabe. Depois você estará pronto para tomar o lugar que é seu.
--Vou fazer tudo para honrar seus ensinamentos.
--Sei que vai. Você é um bom garoto e muito sábio também.
Saga corou.
--E o que é, mestre?
--Você aprendeu que a cada mil anos Ravana (3) é solto de sua prisão na Torre dos Tormentos, onde Rama o prendeu e volta à terra para tentar conquistar os homens e romper o Dharma. Como acontece sempre, a Divina Trindade mandará sua força a três mortais para que o enfrentem e o prendam novamente. O tempo está se esgotando, Saga. Cabe a você e a seu irmão viverem estes tempos difíceis, encontrarem aqueles que nasceram com o espírito dos Três e ajudá-los a desenvolverem os poderes que possuem para enfrentar a batalha.
--Como vamos encontrá-los?
--O segredo de Brahma é conhecido por Thanatos, ele contará a seu irmão antes de partir. Vishnu virá de longe, será trazido pelas águas do mar e vocês saberão quem é quando o virem.
--E Shiva?
--Shiva será deixado na porta deste templo, ainda hoje. Deverá acolher o menino e criá-lo e amá-lo como eu fiz com você.
--Eu não tenho o espírito dos deuses dentro de mim, mestre. Tenho somente dezessete anos. Como vou cuidar do espírito de Shiva?
--Você tem, sim, o espírito dos deuses, Saga. Todos temos.
--Então por que algumas pessoas são más?
--O mal é um ponto de vista e você descobrirá isso conforme se tornar mais velho.
--Como vou poder cuidar de Shiva, mestre?
--Você saberá. Trate-o como trata as outras crianças do Templo e estará no caminho certo. Não esqueça de uma coisa: os garotos possuem o espírito dos Três, mas não são eles. Vão precisar aprender muito antes de começarem a verdadeira batalha. Tenha paciência com eles.
--Farei o possível para não decepcioná-lo.
--Eu sei que fará. Por isso o escolhi para meu lugar. Sinto-me tão cansado...
As pálpebras de Hypnos começaram a se fechar. Estava chegando sua hora. A chuva amainou até se tornar uma fina garoa que parecia feita de cristal. Saga aproximou-se e beijou pela última vez os lábios do mestre. Duas lágrimas caíram solitárias de seus olhos. Uma de alegria e uma de saudade. Não sentia tristeza.
No outro lado do Ganges, em uma cama coberta por lençóis negros, um homem de cabelos e olhos prateados também preparava-se para partir. Thanatos tentava acalmar um desconsolado Kanon que lhe segurava as mãos e chorava sem parar.
--Kanon, por favor. Escute. Tenho pouco tempo... Não deve chorar, a morte não deve ser motivo de tristeza para ninguém.
--Eu sei... não choro de tristeza. Choro de saudades. O senhor e Saga são a única família que conheci. Vou sentir sua falta...
--Vou voltar para puxar sua orelha se continuar aprontando. Lembre-se do que eu ensinei. Ria das desgraças antes que elas riam de você. E nunca reclame da vida, quanto mais se reclama pior ela fica. Acredite, Kanon, sempre pode ficar pior.
O jovem sorriu. Thanatos fora sempre alegre, até nos piores momentos. Graças a ele o Templo perdeu um pouco de seu aspecto sério e conservador. Sempre havia música e danças ou outras atividades para promover o divertimento. Estudar e meditar eram coisas boas, mas deviam ser combinadas com a diversão para dar bons resultados.
--Não se preocupe, não vou deixar Saga transformar os templos em cemitérios.
--Espero que ele não deixe você transformá-los em uma baderna. Equilíbrio é a chave de tudo Kanon. Nem de mais, nem de menos.
--Somente na medida certa, eu sei – havia perdido a conta de quantas vezes ouvira aquele sermão. Sempre que ele passava da conta em suas traquinagens.
--Vou lhe contar um segredo. O último ensinamento que tenho para dar. Não deve contar a ninguém, nem mesmo a seu irmão, antes que chegue a hora certa. Escute com atenção e não esqueça essas palavras.
--Pode falar, mestre – disse secando uma lágrima.
--O caminho é longo, o tempo muito curto. A pequena trilha parece nunca acabar. As árvores são verdes, há almíscar sobre as pedras. As rochas apareceram à sua frente. Quando a primeira sombra antecede a escuridão perto está o fim do caminho selvagem. Abra seus olhos para o que o sol esconde. A amada montanha esconde um segredo, para onde seu rio flui. Com fome de vitória, com fome de amor. Amor pela terra que nos fez seus filhos. Forte e invencível, servindo a sua vontade. Vá agora e cavalgue lá onde os dragões voam (4).
--Eu conheço essas palavras. São de uma canção que eu ouvi várias vezes.
--Sim, a Profecia de Brahma.
--Então não são segredo.
--As palavras não. Seu significado é. Fazem parte da profecia feita há muitos anos. Uma profecia sobre o nascimento do jovem que possuí o espírito de Brahma e virá para combater Ravana quando ele voltar, ajudado por Vishnu e Shiva. Vishnu virá de longe. Shiva será entregue a seu irmão. Cabe a você encontrar Brahma.
--Como vou fazer isso? Sinceramente, não sei o que as palavras querem dizer...
--Eu vou contar a você. A terra onde os dragões voam é o Tibet. Acreditava-se que, há milhares de anos, dragões habitavam aquele lugar. A montanha amada é o Himalaia. Vá para lá quando receber o sinal. Procure um rio pequeno que corre aos pés da montanha, siga seu curso até uma pequena trilha ladeada por árvores verdes. Quando a primeira sombra que antecede a escuridão surgir você terá chegado ao fim do caminho. Na terra que nos fez seus filhos, a terra do Himalaia, encontrara aquele que trará vitória e amor para o mundo.
--Como o senhor sabe de tudo isso?
--Me foi revelado em um sonho, quando eu era jovem. Você e seu irmão foram abençoados, Kanon. Terão a honra de ajudar aqueles que foram enviados pelos Três para representá-los. Cumpra sua missão com honra e retidão.
--Prometo que assim será.
--Venha, beije seu mestre. É hora de ir.
Com os lábios de Kanon encostando levemente sobre os seus, Thanatos fechou os olhos e partiu indo encontrar com seu irmão. Era outro Iluminado. Poderia finalmente descansar no Nirvana ao lado de seu amado irmão por toda a eternidade.
Dois barcos solitários se aventuravam a atravessar a correnteza do Ganges naquele fim de tarde. Iam à direção um do outro. Saga começava a distinguir o corpo do irmão, em pé, remando o barco que vinha do oeste.
Kanon era fisicamente igual ao irmão, a não ser por seu cabelo, que era de um tom um pouco mais claro. Contudo, as personalidades dos dois eram opostas. Saga era calmo, tímido, controlado, responsável, sério e bem-comportado. Kanon era brincalhão, debochado, alegre e espontâneo, uma verdadeira peste em forma de gente.
Os barcos encostaram-se, fazendo um leve ruído de madeira batendo. Ainda em embarcações separadas, os irmãos se abraçaram e se beijaram de forma leve e discreta, um beijo de saudação.
--Está pronto, Kanon?
--Estou.
Com a ajuda do irmão, Kanon passou ao barco dele. Ambos pegaram o corpo de Hypnos e colocaram junto ao de Thanatos. Derramaram mirra e óleos perfumados sobre os dois, tomando cuidado para não cair dentro da água. Saga pegou a vela que trazia e a deixou cair, ateando fogo sobre os corpos sem vida. Kanon empurrou o barco na direção do mar (5).
--OM MANI PADME HUM – Kanon repetia a prece, seu rosário igual ao de Saga, só que de pérolas negras, entre os dedos. O irmão juntou-se a ele na prece, pedindo em pensamento para que Shiva os guiasse ao caminho certo.
A cerimônia era acompanhada nas margens pelos fiéis dos Templos que rezavam tanto pelos antigos quanto pelos novos mestres, pedindo proteção para eles em sua jornada. Assim partiram Hypnos e Thanatos, mestres do Templo.
Antes do fim daquela noite a profecia se cumpriu. Em uma casa escura e fria nos arredores de Calcutá nascera a terceira criança, o espírito de Shiva estava de volta à terra. Um cavaleiro esperava impaciente na porta da casa. Seu cavalo negro também parecia inquieto. Uma neblina incomoda espalhava-se por toda parte. Um homem corpulento saiu trazendo um embrulho.
--Aqui está. E não esqueça, você nunca me viu e essa criança não nasceu.
--Não se preocupe, fui muito bem pago por meu silêncio.
Máscara da Morte, como era conhecido o cavaleiro, pegou o saco de moedas de ouro, conferiu a soma e guardou em um bolso da capa que usava. Montou no cavalo e pegou o embrulho. Desapareceu rapidamente por entre a névoa. No céu as estrelas estavam veladas pelas nuvens que não haviam se dissipado totalmente.
O cavaleiro não tinha intenção de fazer mal àquela pobre criatura que mal chegara ao mundo e estava sendo rejeitada de maneira tão cruel. Sua intuição nunca falhava. E desta vez ela lhe dizia que aquela criança que se segurava em um dos braços e tentava proteger da gélida noite tinha uma missão muito importante a cumprir.
Recebera ordens de sumir com a criança e era o que faria. Abandonaria o bebê no primeiro templo que aparecesse em seu caminho. Podia ser um mercenário, porém nunca mataria alguém que não pudesse se defender. Estava naquela vida por falta de opção, porque não encontrara outra forma de sobreviver, sendo um jovem que perdera toda a família para a cólera e tivera o dinheiro tomado pelos invasores estrangeiros.
O sol batia sobre os rostos dos gêmeos adormecidos. Um fino lençol de linho negro os cobria até a cintura. Saga abriu os olhos, sonolento, beijando o rosto do irmão para que também acordasse.
--Eu te amo – disse antes mesmo de abrir os olhos.
--Também amo você, Kanon.
--Ah, é? Então prova – disse sorrindo, divertido.
--E se alguém entrar?
--Deixe de ser bobo, Saga. Todos estão cansados de saber que somos muito mais que irmãos. Até as pedras desses templos sabem que nos amamos. E como sabem – riu.
Saga adorava ouvi-lo rir. O riso do irmão lhe lembrava o som de sinos de prata. Deitou sobre ele e o beijou. Sentiu as mãos acariciarem suas costas nuas, o beijo sendo aprofundado. Tinham obrigações a cumprir. Precisavam fazer o ritual de purificação, ele tinha que voltar para o templo do leste.
Antes que pudesse dizer qualquer coisa, a porta se abriu e um farfalhar de tecidos foi ouvido. Separaram-se ofegantes. Um garoto de longos cabelos louros e olhos de um profundo azul-esverdeado, com uma pintinha vermelha semi-oculta pela franja, por volta de seus quinze anos, olhava para os dois com um sorriso encantador.
--Não precisam parar por minha causa – riu, corando levemente.
--Muito bonito, Shakyamuni (6)! Não te ensinaram a bater na porta antes de entrar? – disse Kanon tentando parecer zangado. – Podíamos estar fazendo algo importante.
--Importante como o quê? – perguntou de forma inocente. Inocente demais para a idade.
--Como... – começou Kanon, mas foi interrompido por Saga.
--Esqueça as bobagens do Kanon e venha dar bom-dia a seus mestres como se deve – disse sorrindo para o garoto.
Aquele era o garoto que fora encontrado há quinze anos na escadaria do templo do leste. O possuidor do espírito de Shiva. Era um garoto sério, terno, gentil, atencioso, inteligente e de uma inocência encantadora. Fora criado com todo o carinho pelos gêmeos.
E, como era de se esperar, não pôde fugir à influência de Kanon, também aprontava das suas. A travessura preferida era brincar com cobras, o que deixava Saga em pânico. Adorava dançar. Podia dançar por horas a fio. Sempre havia música nos Templos Gêmeos e o Odissi (7) era a dança mais popular, tanto entre os monges quanto entre as monjas.
Shaka, como fora apelidado, costumava sentar-se ao pé de uma figueira na margem do rio, em um ponto onde a água corria mais rápida e se ouvia um barulho agradável, e meditar a tarde toda. Nessas ocasiões conseguia chamar espíritos, estes lhe ensinavam o que sabiam e lhe contavam o que queria saber.
Detestava ser interrompido, ficava furioso quando acontecia. Tinha, no entanto, a humildade de pedir desculpas quando se exaltava ou era descortês com alguém. Achava que o orgulho era o pior dos defeitos.
Pulou na cama entre os dois, enfiando-se debaixo dos lençóis. Quando era mais novo gostava de dormir no meio deles. Sentia-se protegido, como se o amor daqueles dois fosse capaz de manter todos os demônios longe dele. De fato, grande parte da força dos mestres do Templo estava no amor que sentiam um pelo outro.
Não vestiam roupa alguma que lhes cobrisse os corpos por debaixo dos lençóis. Nem eles nem Shaka se importaram. Ao contrário dos ocidentais, não sentiam vergonha do próprio corpo, tampouco achavam que era algo maléfico ou pecaminoso.
--Bom dia mestre Saga – disse ele dando um selinho em Saga, era a maneira como os que serviam ao Templo se cumprimentavam. Para eles o beijo era o gesto de amizade, carinho e amor mais sublime que poderia existir. Repetiu o gesto com Kanon – Bom dia mestre Kanon.
--Assim está melhor.
--Vim acordá-los para fazermos juntos o ritual de purificação – disse o garoto, revelando o motivo da interrupção. – As toalhas e os óleos perfumados já estão na margem do rio.
--Vamos, então. Estamos um pouco atrasados hoje – disse Saga levantando apressado. O irmão o seguiu de forma preguiçosa, sendo puxado por ele pela mão.
Shaka olhava para eles ainda com um sorriso nos lábios. Achava-os perfeitos. Perguntava-se se um dia teria alguém para amar daquela maneira. Sabia que sim, embora sentisse que essa pessoa estava longe.
Os três submergiram nas águas do Ganges, iniciando o ritual de purificação que deveriam fazer todas as manhãs. Ao acordar, todos os fiéis tomavam um banho, perfumavam-se com óleos e essências, vestiam uma roupa limpa (8). Depois repetiam o mantra sagrado 108 vezes, faziam alguns exercícios de yoga para acordar o corpo e só então iam fazer a primeira refeição e começar as atividades do dia.
Ao concluírem o ritual de purificação Saga, Kanon e Shaka foram para o templo do leste, onde os irmãos costumavam passar o dia. A mesa do café da manhã estava posta no refeitório. Leite de cabra, mel, frutas e pães diversos estavam dispostos sobre uma toalha de linho branco bordada com fios dourados. Os monges e monjas fizeram uma reverência aos mestres e continuaram a refeição.
Em um instante Shaka reparou no homem que comia com eles. Usava uma camisa branca de algodão com mangas longas, uma calça larga cor de malva e sandálias de couro. Os cabelos castanhos, até o ombro, estavam desalinhados como sempre e os olhos verdes expressavam uma tristeza incompreensível.
--Olá, Donko, finalmente veio nos fazer uma visita! – disse o garoto alegremente.
Aquele homem era um velho conhecido do templo. Estudara lá até os doze anos, quando sei pai decidiu que não devia ser monge e sim cuidar dos negócios da família. Donko Desai era dono da maior plantação de chá de exportação de Bengala (9). Aos trinta e cinco anos já havia enfrentado muito sofrimento.
Quando era jovem amara uma mulher, filha de um comerciante francês que não aprovara o romance dos dois. Namoraram escondidos durante um bom tempo, até ela ficar grávida e o pai descobrir. Então June, como ela se chamava, foi afastada dele até a criança nascer e depois mandada de volta para a França. Recebeu uma carta do pai dela dizendo que se filho nascera morto.
Essa era a tristeza de seus olhos. Saber que a mulher que amara não tivera força suficiente para enfrentar o mundo e ficar a seu lado. Quando à criança que ela esperava, duvidava que estivesse morta. Pela data em que Shaka fora abandonado no templo e pelos cabelos louros do menino, suspeitava que ele fosse seu filho. Nunca comentara nada. Ele estava bem tratado no templo, tinha amor, uma boa educação e era feliz.
--Já que meu amigo não apareceu mais em minha casa, resolvi ver como você estava, Shaka.
Cumprimentaram-se e Shaka sentou ao lado para tomar o café da manhã. Saga e Kanon apreciavam a amizade dos dois. Os irmãos tinham a mesma desconfiança de Donko de que eles eram pai e filho. De fato Donko agia como pai do menino. Vivia a mimá-lo de todas as formas e não passava uma semana sem que viesse ao Templo ou mandasse buscar o garoto para sua casa.
--Ele estava de castigo – disse Kanon aproximando-se.
--De castigo? O que você fez agora Shaka?
--Nada de mais...
--Ele estava brincando com cobras novamente – disse Saga indignado. – Eu posso com uma coisa dessas, Donko? Estava dançando na beira do rio com duas najas em volta do corpo! Já pensou no que aconteceria se uma delas o atacasse?
--Elas não iam me atacar – disse indiferente.
--Por via das dúvidas, quero você longe de qualquer ser que rasteje e tenha escamas.
O menino baixou os olhos. Não entendia a preocupação de Saga. Uma cobra, símbolo da imortalidade e do triunfo sobre a morte, jamais o atacaria. Não gostava de ser tratado como um menininho travesso. Deixara de ser criança.
--E quando o castigo dele acaba? Vou à cidade amanhã resolver alguns assuntos com a Companhia Inglesa e gostaria de levá-lo comigo.
--Creio que ele já aprendeu a lição, não é Shaka? – Kanon piscou para ele.
--Tudo bem, pode ir se quiser – disse Saga.
--Será que posso abusar mais um pouco da boa vontade de vocês e pedir que ele fique alguns dias comigo? Aquela casa tem estado muito vazia sem as visitas do Shaka.
Shaka sorriu de orelha a orelha. Adorava a casa de Donko. Era alegre como o templo, sempre havia música e as pessoas eram muito bem tratadas. Gostava de andar nas plantações de chá e ouvir as canções dos trabalhadores. Donko sempre lhe ensinava algo novo e contava histórias que ele não conhecia.
--Pode ir sim – apressou-se Kanon. Adorava Shaka, mas às vezes precisava de um tempo a sós com o irmão.
Assim que terminou de comer Shaka foi arrumar suas coisas e partiu com Donko. A casa dele ficava a trinta minutos do templo. O caminho era cercado por árvores e muito bonito. Perto dali, indo na direção oposta do mesmo caminho havia uma propriedade que pertencera a um inglês cuja família morrera de cólera e estava abandonada há muito tempo.
O portão abriu-se para uma estradinha de pedras cinzentas, podia-se ver a casa ao longe. Uma construção imponente em arquitetura indiana, datada do início do século XVI surgiu diante deles. Era uma casa belíssima de pedra avermelhada, cercada por jardins.
As plantações de chá estendiam-se atrás da casa de Donko a perder de vista. Davam a impressão de um mar verde e calmo que ondulava à mais leve brisa. Homens e mulheres de roupas coloridas cantavam alegremente, emersos até a cintura em meio às plantas. Não havia nada mais belo que o tom de verde adquirido pelas folhas de chá quando o sol do meio-dia refletia nelas.
Na sala de entrada havia um altar de mármore dedicado a Krishna (10), o mais célebre avatar de Vishnu. Cortinas de musselina, tapetes com estampas de elefantes, guerreiros e paisagens e almofadas bordadas espalhavam-se pelo local, dando um ar de conforto e descontração.
Shaka foi ao quarto que costumava ocupar. Estava ansioso pela viagem que fariam. Gostava de ir à cidade. Donko o deixava passear perto do mar enquanto resolvia seus negócios. Sentia saudades do mar.
O sol mal havia despontado no horizonte quando Shaka se levantou e foi fazer o ritual de purificação. Não dormira quase nada. Uma inquietação tomava conta dele. O pouco tempo que dormira fora para sonhar com um barco que chegava e com um lindo menino de cabelos cor de lavanda que não lembrava de conhecer. O menino sorria para ele e parecia estar perdido.
Donko tinha pressa, por isso não demoraram a partir. Era uma hora e meia até a cidade de Calcutá. Tomada pelos ingleses em 1690, tornara-se a capital de seu domínio, comandado pela Companhia Inglesa das Índias Orientais. Em pouco tempo convertera-se uma grande cidade e um grande centro de comércio. O porto de Calcutá era um dos mais movimentados da Índia (11).
Todos olhavam para Shaka encantados. Vestia uma calça larga e uma camisa de algodão branco e um colete azul com bordados dourados. Trazia as mangas da camisa arregaçadas e sandálias de couro nos pés. Uma das exigências que Saga fazia sempre que Donko o levava à cidade era que ele não fosse com as roupas do templo, pois podia ser perigoso. Seus longos cabelos louros estavam presos em uma trança. Um rosário de contas de Jade, pedra símbolo da imortalidade e da franqueza, estava envolto em seu braço direito.
--Escute Shaka, vou estar na cede da Companhia se precisar de mim. Senão nos encontramos no porto, no mesmo lugar de sempre, em uma hora.
Ele assentiu e soltou a mão de Donko, indo em direção ao porto. Andava sem rumo admirando os navios e ouvindo as canções dos marinheiros que trabalhavam sem parar. Ocidentais de todos os tipos também circulavam por ali. Às vezes Shaka ia falar com eles. Donko lhe ensinara inglês e ele falava com perfeição, apesar de não gostar dos sons daquela língua esquisita.
Um pequeno barco aproximava-se do ancoradouro. Podia vê-lo chegar cada vez mais perto, até encostar-se ao cais e ter a âncora jogada ao mar. O porto estava muito tumultuado com o embarque de uma grande carga de tecidos e não pôde ver direito as pessoas que desciam. Mais ocidentais, com certeza.
Não gostava de ver como aqueles estrangeiros chegavam se achando os donos da terra e levavam a riqueza de seu povo embora, deixando a maioria dos habitantes locais passando fome e vivendo na miséria. Gostaria de poder fazer alguma coisa a respeito. Entretanto, sabia que sua missão na terra tratava-se de algo muito maior que expulsar os ingleses, ainda que não soubesse direito o que era.
Sentiu algo diferente. Uma perturbação que o fazia querer se aproximar daquele barco. Parecia-se com o do sonho que tivera. Sorriu pensando que talvez pudesse encontrar aquele menino lindo que lhe tirara o sono naquela noite. Sem sequer saber se o tal menino de fato existia, sentia algo muito bom só de pensar nele. Continuou andando na direção do barco, tinha que tirar aquela dúvida.
Notas:
1- Na Índia existem três estações do ano. A chuvosa vai de meados de junho até setembro, a estação fria de outubro a fevereiro e a estação quente de março até metade de junho.
2- O conceito de Nirvana vem do Budismo. Nirvana seria uma espécie de nada absoluto onde as almas que alcançaram a Iluminação se dissolvem. É o estado de não-desejo, o estado supremo para os budistas. Na fic eu modifiquei um pouco isso (qual a graça de se dissolver no nada, afinal? XD) e o Nirvana virou algo semelhante ao céu dos cristãos, onde os deuses hindus e aqueles que alcançaram a Iluminação vivem pelo resto da eternidade. Alcançar a Iluminação é se libertar do ciclo das existências, o processo pelo qual as almas retornam à terra por várias vidas.
3- Ravana é um demônio do Hinduísmo que aparece no Ramayana, a mais famosa epopéia indiana. O Ramayana conta a história de como Ravana seqüestrou Sita, a esposa do deus Rama e tentou obrigá-la a trair o marido e de como Rama conseguiu derrotá-lo e salvar Sita. Na fic eu mudei um pouco essa história e acrescentei alguns fatos nela pra se encaixar com o restante da história.
4- Tradução de uma parte da música Where Dragons Fly, do Rhapsody.
5- Os indianos hindus costumam atear fogo nos mortos e jogar as cinzas no Ganges, que é o rio sagrado para eles. A idéia do barco veio dos vikings, que colocam os mortos em barcos em direção ao oceano para que eles encontrem o caminho do paraíso e também queimam os corpos. O restante do ritual foi criação minha.
6- O Buddha Siddhartha Gautama nasceu como um príncipe no norte da Índia e pertencia à tribo dos Shakyas, por isso ficou conhecido também como o Buddha Shakyamuni.
7- O Odissi é uma dança milenar indiana que nasceu nos templos da cidade de Orissa, por volta do século II a.C. É uma dança extremamente escultural que caracteriza-se pela harmonia, sutileza e fluidez de movimentos. Os movimentos do corpo e expressões faciais são utilizados para contar uma história.
8- O ritual do banho pela manhã é realizado pela maioria dos hindus e por algumas também por algumas escolas budistas.
9- Bengala é a região da Índia onde se localiza a cidade de Calcutá. Várias plantações de chá se estendem por essa região, sendo Darjeeling a principal cidade produtora. Não consegui muitas informações sobre a plantação de chá na Índia e não sei se realmente já existiam essas plantações nos arredores de Calcutá a época da fic. E me desculpem pelos erros eu possa ter cometido em relação ao assunto do chá.
10- Krishna é a divindade do amor. É ele quem narra a outra grande epopéia indiana, o Bagavat Gita, obra que funde várias doutrinas numa só e até hoje serve de consolo para aqueles que sofrem.
11- Na época da fic Calcutá ainda não se parecia nem de longe com uma cidade, mesmo para os padrões da época, então mudei um pouco a descrição dela. A cidade começou a desenvolver-se mais rapidamente a partir do fim do século XVIII e, principalmente, no século XIX.
Agradeço a Yumi Sumeragi (realmente, ninguém merece a mala da Saori na família, ainda mais a versão carola dela XD) e a Athenas de Aries (Lune é um dos espectros de Hades, não sei muito sobre ele porque nunca li essa saga, mas me apaixonei por uma gravura dele que encontrei e decidi colocar ele na fic também ) pelas reviews! Fiquei muito feliz com elas Obrigada também a todos os que leram o primeiro capítulo. Espero que todos gostem do desenvolvimento da fic! Bjinhos! E lembrem-se: façam essa escritora feliz, deixem review!
