Capítulo 3 – Mu
"Na terra onde os dragões voam nascerá um tesouro capaz de salvar a humanidade e criar um novo mundo, dando amor e vitória àqueles a quem a terra fez seus filhos". Na terra onde os dragões voam estava difícil acreditar em tal profecia. Um tesouro não poderia nascer em meio à tamanha pobreza e desolação.
As planícies ao pé do imponente e intimidador Himalaia estavam secas e áridas. As chuvas não haviam chegado no ano de 1777. O inverno iniciava com todo o seu rigor.
As pessoas da aldeia de Sraddhâ passavam fome e frio. Eram pastores de lhamas que viviam boa parte do ano nas montanhas com os rebanhos e se retiravam para a vila somente no inverno, quando as temperaturas baixavam demais. Ao retornarem aqueles que haviam ficado sempre tinham alimento estocado para sustentá-los durante o período em que neve caía e não se podia plantar.
Não naquele ano. A safra plantada no final da estação quente fora perdida pela ausência da chuva. E os animais estavam minguando, já que as gramíneas que lhes serviam de alimento estavam sendo soterradas pelas repetitivas tempestades de neve. Muitos estavam assustados. Nem o ancião mais velho da tribo lembrava de um período em que houvera tanta neve e tanto frio.
Em março, quando a neve começou a derreter, a população de Sraddhâ fora consideravelmente reduzida, bem como os rebanhos do qual dependia o sustento dos que permaneciam. As temperaturas permaneciam baixas, a neve persistia em derreter.
Uma família, temendo o vento frio que soprava durante a noite, havia se retirado no meio do inverno para sua casa nas montanhas. Uma casa simples de tijolo de barro vermelho, bem protegida do vento por altas muralhas de pedra. As árvores ao redor do caminho que levava a este retiro forneciam lenha a seus habitantes, o que garantia ao menos um pouco de calor.
Os lhamas estavam reduzidos a dois machos e cinco fêmeas, todos animais magros e desnutridos. A família possuía uma única cabra que lhes dava o mínimo de leite. Eram o casal e seus dois filhos. Mahadevi (1), a mulher, estava grávida de seu terceiro filho que deveria nascer por aqueles dias. O parco alimento que conseguiam encontrar era consumido com parcimônia, para que não faltasse a ninguém.
A criança chegou na noite de 27 de março. Era um menino. No momento em que o pegou nos braços Mahadevi soube que seu filho não seria como as outras crianças. Sua pele era tão clara quando a neve, os cabelos lilases e os olhos verdes como duas esmeraldas resplandecentes. Como se a cor da pele e dos cabelos não fosse o suficiente, na testa duas pintinhas roxas pareciam ocupar a posição de uma meia lua crescente.
Na manhã seguinte não havia mais neve em parte alguma, a não ser nos picos da montanha onde ela nunca derretia. Vários rios corriam rápido rumo à planície, enchendo-a de vida. As gramíneas estavam mais verdes que nunca e não havia um rebanho sequer em toda a região que não tivesse ao menos uma fêmea cuidando de crias novas.
Aquela criança trouxera vida e prosperidade para seus pais e para todos os habitantes de Sraddhâ. A vila que, em sânscrito, chamava-se crença podia novamente ter fé na esperança de uma vida melhor. O tesouro que salvaria a humanidade acabara de chegar ao mundo.
A noite estava quente e estrelada, algo muito comum naquela época do ano. Vistas do templo do oeste as estrelas pareciam resplandecer ainda mais. Saga suspirou, recostado ao beiral da janela. Perguntava-se se fora uma boa idéia deixar Shaka ir. Cada vez que o menino saia do alcance de suas vistas ficava morto de preocupação.
Donko nada sabia sobre espíritos de deuses andando em corpos mortais, sobre demônios perversos que poderiam tentar ferir Shaka antes que ele se tornasse um perigo para seus planos ou a guerra entre forças sobrenaturais que poderia estourar de uma hora para outra. Tinha medo que não tomasse os cuidados necessários e expusesse Shaka há algo ruim.
Sentiu-se abraço por trás e reconheceu os braços carinhosos do irmão em torno de si. Sorriu discretamente e continuou olhando as estrelas. Kanon apoiou a cabeça em seu ombro e passou a olhar o céu também.
--Aposto que estava pensando em Shaka – disse.
--Será que Donko que vai cuidar dele?
--É claro que vai. Ele ama aquele garoto como se fosse o próprio filho.
--Eu sei. Só acho que às vezes ele dá liberdade demais ao Shaka. Tenho medo que o deixe andando sozinho pela cidade e...
--Chega, Saga – disse calmamente. – Não pode manter o menino grudado a você. Deixe ele se divertir um pouco. Tenho certeza que ele saberá se defender se for ameaçado.
--Os poderes dele ainda não se manifestaram, Kanon. Ele não tem idéia do que vive dentro dele.
--Acha que devíamos contar?
--Não ainda. Ele precisa estar preparado. E nós precisamos achar os outros dois.
--Tem razão. Sinto que Vishnu não está longe.
--Você também sentiu?
--Sim. Como se ele estivesse se aproximando cada vez mais.
--Hypnos disse que ele viria até nós. E que nós iríamos reconhecê-lo.
--Saga... eu vi sinal – disse de repente.
Estava esperando o momento certo para falar com o irmão. Era chegada a hora de partir e cumprir a missão que Thanatos lhe dera antes de partir. Não seria fácil para nenhum dos dois. Finalmente tomara coragem.
--Sinal? Que sinal?
--Um raio de fogo cortando o céu em direção ao norte, há três dias. Devo partir, Saga. Preciso encontrar o outro garoto. Antes que Ravana o encontre e o pior aconteça.
--E... você sabe onde encontrá-lo? – perguntou um tanto incerto. Sabia que aquele momento chegaria, mesmo sem nunca ter conversado com Kanon a respeito.
--Thanatos me deu algumas orientações. Creio que posso chegar lá.
--É muito longe?
--Um pouco... posso demorar semanas ou... meses... não sei.
--Vai partir quando?
--Amanhã cedo.
--Kanon? – chamou ainda sem virar para o irmão.
--Fala.
--Vê se não arruma outro pelo caminho, seu tarado – riu tentando disfarçar o aperto que sentia no coração.
Kanon fez cara de indignado e virou Saga de frente para ele. Segurou seu rosto fazendo-o olhar em seus olhos.
--Escuta aqui! Eu não sou nenhum tarado! E se você acha que vai se livrar de mim com essa facilidade está muito enganado! Eu vou voltar e você vai ter que aturar pelo resto dos seus dias! Eu amo você, Saga. Não se preocupe comigo está bem, eu sei me cuidar.
Era tudo o que Saga precisava ouvir. Sentiu-se mais aliviado. Não seria fácil suportar a ausência do irmão. Não lembrava de ter passado mais de dois dias longe dele desde que se conhecia por gente. A ligação que havia entre os dois era muito forte. Beijou ternamente os lábios do irmão, afastando-se e apoiando a cabeça em seu ombro.
--Também amo você.
Kanon não poderia deixar de se sentir honrado por ter recebido a missão de encontrar Brahma. O espírito do Criador era o mais poderoso dos três. Sem ele nada poderiam fazer os outros dois além de destruir e preservar a destruição, por isso ele era conhecido como o tesouro que traria amor ao mundo. Se Ravana o encontrasse primeiro tudo estaria perdido para sempre na escuridão e no desespero.
O sol estava a pino no céu, passava um pouco do meio-dia. Um rebanho de lhamas pastava tranqüilamente em algum lugar nas encostas mais baixas da cordilheira do Himalaia. Sentado na grama, perto dos animais, estava um garoto de dezesseis anos. Tinha os cabelos lilases, longos e cheios presos em uma fita de tecido creme.
Seus olhos de um verde profundo concentravam-se em um pequeno cristal que flutuava acima do chão, movendo-se de um lado para outro e refletindo pequenos arco-íris em seu rosto. A pele de um tom muito claro, levemente rosado, diferia de todos os habitantes das montanhas que conhecia. Duas pintinhas roxas em sua testa e alguns fios de cabelos caindo sobre ela davam-lhe um ar místico.
Seu nome era Muaitreya (2), contudo era carinhosamente chamado de Mu. Diferia dos outros garotos de sua idade não só pela aparência física. Seu jeito doce, bondoso e gentil passava calma e segurança a todos. O que ninguém sabia era que atrás daquela doçura e inocência se escondia um poder impressionante.
Desde pequeno Mu percebera que tinha certas habilidades. Podia mover e controlar objetos com pensamento. Era capaz de fazer com que o ar a sua volta e os ventos o obedecessem. Possuía uma enorme criatividade e poder de criação. Gostava muito de música, cantava como um anjo e tocava flauta com perfeição.
Trazia em seus olhos uma tristeza velada que parecia lamentar toda a dor do mundo. Gostava muito de ajudar quem precisasse. Sempre que podia ia até a aldeia, conversava com as pessoas e tentava ajudá-las da melhor forma.
Suspirou deixando a pedra cair em seu colo. Uma gota de suor desceu por seu rosto. Levantou-se, olhou em volta e viu que estava só. Fechou os olhos e um leve vento fresco começou a soprar fazendo as pequenas gramíneas se curvarem. Não sei de onde os seres humanos tiram tanto sofrimento se vivem em mundo tão belo. A vida é tão simples, as pessoas não deveriam criar tantas complicações. Acho que são as complicações que trazem a dor e o sofrimento.
Seus pensamentos foram interrompidos pelo barulho de folhas secas sendo amassadas. Passos vinham em sua direção. Era Devdas (3), seu irmão mais velho. Abriu os olhos e fez o vento acalmar de vagar, para que o outro não notasse nada estranho.
--Você pode ir comer, eu cuido delas enquanto isso – disse indiferente.
Assentiu, no entanto não se moveu. Estava começando a sentir fome. Pensou em todas as pessoas que não tinham o que comer. Puro egoísmo. No mundo há comida para todos e ainda sobra. São pessoas egoístas que querem tudo para si e preferem ver comida estragar a dá-la de graça para quem não tem com o que pagar que fazem do mundo um lugar ruim para todos os que não seguem suas regras.
--Vai ficar aí parado? – perguntou vendo que o irmão não se movia.
--Estava pensando.
--Pensando em quê?
--Nas pessoas... no mundo...
--Não acha tudo isso complicado demais? Você só tem dezesseis anos, Mu, devia agir como um garoto da sua idade e ir atrás de garotas ao invés de se preocupar com problemas dessa profundidade. Deixe isso para os Buddhas.
Devdas não gostava de ser o irmão do garoto que era para todos um exemplo de compaixão para com os semelhantes e amor ao próximo. Não gostava de ter seu comportamento repreendido por não agir como um monge, seguindo o exemplo de seu irmão mais novo.
--Desculpe-me irmão. Não posso deixar de pensar e me preocupar. E quanto a ir atrás de garotas, bem, quando eu sentir amor verdadeiro por alguma delas sim, eu irei atrás. Até lá, não vejo porque deveria. Desejo físico sem amor não acrescenta em nada – disse corando com a última frase.
--Deveria ter se tornando monge.
--Não poderia fazer nada pelos outros em um mosteiro. Quero tentar fazer as pessoas entenderem que o mundo é simples, que a vida é simples. E que podem evitar o sofrimento se aceitarem isso e pararem de complicar tudo. Orgulho, egoísmo, ambição, esses sentimentos deveriam desaparecer do coração de todos. Então o mundo não seria perfeito, mas seria um ótimo lugar para se viver. Um lugar onde cada um receberia o que lhe fosse devido.
--Vá para casa, Mu. Nossa mãe o está esperando com o almoço.
Riu sacudindo a cabeça. Aquele não tinha jeito. Nunca ia prestar atenção no que ele falava, por mais que repetisse. Tomou o caminho de casa protegendo os fios lilases e a pele clara com o manto. Paciência, Mu. A paciência é a maior das virtudes.
Encontrou a mãe aflita na porta de casa. Uma das crianças viera avisar que pessoas estranhas estiveram procurando seu filho na aldeia aquela manhã. Ninguém entregara o endereço, porém era improvável que não o descobrissem mais cedo ou mais tarde. Uma sombra passou sobre seus olhos, dando-lhe a impressão de que algo funesto estava para acontecer.
Dois meses haviam se passado desde a partida de Kanon. Ele andava sem um rumo certo, seguindo para o norte e um pouco para o oeste. Fora a cavalo para ganhar tempo. Durante todo o percurso sentira uma força estranha seguindo-o. Sombras moviam-se por entre as árvores, arbustos e pedras mais rápido do que sua visão podia acompanhar.
Em momento algum pensara que Ravana ia vê-lo partir e não faria nada para impedir que chegasse a seu destino ou encontrasse o menino antes dele. Não subestimava a astúcia daquele velho demônio. Trazia consigo um rosário de contas de diamante. O diamante era a pedra de Brahma, como a granada era a de Vishnu e a jade a de Shiva (4). Os diamantes eram considerados símbolos da inocência, da constância, da fidelidade e da paz.
Era o rosário que os jovens que recebiam o espírito de Brahma deviam carregar, o símbolo de sua missão sobre a terra, que estava impregnado pelo poder do Criador. Fora guardado nos Templos Gêmeos junto com os outros dois durante mil anos e agora estava prestes a ser devolvido ao dono legítimo. Kanon trazia-o envolto no braço direito. O poder daquelas pedras impediria que qualquer um tentasse feri-lo.
Dormia profundamente deitado na relva. O cavalo amarrado a uma árvore próxima. Sonhava com Saga. Estavam juntos no jardim de um dos templos. Saga o beijava de forma doce. Podia sentir seus lábios umedecidos, o toque macio da língua do irmão, que passou a suas bochechas.
--Saga... para... ta me babando todo – resmungou rindo. – Saga... quer parar? Eu sei que sou irresistível, mas não precisa babar desse jeito, amor...
Abriu os olhos, sonolento. Não era Saga que estava à sua frente. Deu um pulo e gritou como só ele era capaz de fazer. Um lhama grande, peludo e gordo que estivera lambendo seu rosto desembestou a correr pela encosta da montanha.
--Eu não acredito nisso! Era só o que me faltava! – disse furioso, limpando o rosto, e olhou para os céus como se esperasse ser ouvido. – Isso é praga sua Saga! Eu sei que é! Seu ciumento obsessivo! Você me paga quando eu voltar!
Levantou, juntou suas coisas e passou o pé pelo circulo que havia traçado em torno de si e do cavalo para desfazê-lo. Era uma magia antiga que garantia proteção (5). Não podia correr nenhum risco. Se ele não conseguisse cumprir a missão e perdessem Brahma perderiam tudo.
--Encosta da montanha? – perguntou-se só então percebendo que a enorme montanha se erguia à sua frente.
Há dias via a montanha se aproximar cada vez mais. Finalmente chegara. Precisava se apressar e procurar o rio. Nuvens tampavam o sol de tempos em tempos, aumentando a sensação sombria que se apoderara dele. Parou tentando ouvir barulho de água.
Um som muito fraco podia ser ouvido. Me espere, Saga. Estou voltando. E vou levar o menino comigo. Pensou ao sentir os pés molhados. Uma vertente se derramava por entre a turfa verde. Começou a segui-la montanha acima, observando o sol que se movia para o oeste de quando em quando, esperando a primeira sombra que antecederia a escuridão.
Era fim de tarde. Mu e sua família conversavam sobre as atividades do dia sentados na grama na frente de casa. Apesar do sol estar quase se pondo o calor continuava. O garoto estava inquieto e não parava de olhar para os lados. Seu coração aflito.
Narasima (6), o filho do meio que ainda não havia retornado, chegou correndo. Sua expressão era de pavor. Estava encharcado de suor e havia um pouco de sangue em suas roupas. Caiu exausto, mal podendo falar.
--Fujam... ladrões...
--Acalme-se meu filho – disse Mahadevi oferecendo-lhe um pouco de água. – Fale com calma.
--Precisamos sair daqui – disse Mu.
--Ladrões mãe. Mataram todos na vila... colocaram fogo nas casas... não sobrou nada...
--Como assim, meu filho? – perguntou o pai. – O que poderiam querer numa vila simples como Sraddhâ?
--O espírito de Brahma... ninguém sabia... por isso mataram... eles estão chegando... não há tempo... fujam...
--Não vou deixar que matem meu rebanho, vamos Devdas, temos que proteger os animais – o pai saiu acompanhado do filho mais velho.
O rapaz caiu sem forças. Mahadevi olhou para o filho mais novo. Tudo parecia claro para ela. Recebera um presente do Criador. Fora abençoada trazendo seu espírito de volta ao mundo. Precisava protegê-lo. Pegou-o nos braços correndo o mais que podia em direção a uma gruta muito bem escondida na montanha.
Ele protestava dizendo que não era mais uma criança para ser carregada, que a família devia ficar unida. Chamava pelo pai e pelos irmãos. Estes se preocupavam em proteger o rebanho e não lhe deram ouvidos.
--Escute, meu filho – disse Mahadevi quando chegaram. – Os deuses me abençoaram me dando você. Preciso que faça algo para mim, em nome desse grande amor que tenho por você, meu menino. Mantenha-se vivo. Não importa o que aconteça, mantenha-se vivo. Assim que eu sair, coloque uma pedra na entrada desse local e só saia quando estiver seguro, você saberá quando ir. Não esqueça que eu o amo... e cumpra sua missão com honra e dignidade.
Ela beijou a testa do garoto e dirigiu-se para a saída. Mu sabia que devia ser assim. Haviam coisas que não podiam ser mudadas ou todo o destino poderia ser mudado rumo a uma catástrofe. Ainda tentou conseguir forças para chamar aquela mulher que tanto amava de volta e protegê-la. Não conseguiu. Era daquela maneira que tinha que ser. O choro havia entalado em sua garganta.
Usou seus poderes para fechar a entrada com uma enorme pedra. Não tardou a ouvir gritos horríveis. O barulho de animais sendo mortos. O fogo consumindo a grama, a casa e tudo aquilo que tanto amava. Seu mundo, sua família, seu lar estavam ardendo em chamas. Deixou que as lágrimas caíssem. Um forte vento soprava fora da gruta, arrancando as folhas das árvores.
Seguia a trilha sentindo um cheiro acre de fumaça e carne queimada. Aquilo não estava certo. Kanon fez o cavalo aumentar a velocidade. O vento parecia querer arrastar tudo com ele. As folhas das árvores grudavam aos montes em seus cabelos que insistiam em lhe tampar a visão.
A última sombra que antecede a escuridão surgiu sobre a terra e ele viu o fim do caminho. Pedras cobertas de fuligem, ainda quentes. Um monte disforme, que parecia ter sido uma casa, desabado sobre o chão, a palha ainda queimando. Cheiro de sangue.
Ouviu um choro baixinho e foi ver o que era. Um menino que mais parecia um anjo estava sentado em uma pedra, os cotovelos apoiados sobre as pernas, o rosto apoiado nas mãos fechadas. Suas lágrimas caíam como se quisessem lavar daquela terra aquele cheiro acre de morte.
Kanon viajara todos aqueles quilômetros com a intenção de encontrar Brahma. Sabia que o espírito do Criador estava diante de si, chorando como uma criança desamparada entre carcaças de animais mortos e fumaça. Nada poderia tê-lo preparado para aquela cena. Aproximou-se sem saber o que fazer.
O menino levantou os olhos verdes e olhou para ele. Sabia que não era uma ameaça. A ameaça havia passado. Kanon também não sentia mais a presença dos servos de Ravana.
--Eu poderia ter evitado... poderia sim... eles estariam vivos agora se eu não tivesse medo de mudar o destino... foi minha culpa...
--Não deve se sentir culpado... não sei o que aconteceu aqui, mas...
--Eles estavam atrás de mim. Se eu tivesse ficado poderia salvá-los...
--Se tivesse ficado aqui teria sido morto... Não chore por isso. Eles estão bem. A morte não deve ser encarada como algo triste.
--Quem é você? – perguntou com a voz ainda carregada de tristeza.
--Sou Kanon, um dos Mestres do Templo. Vim de muito longe para lhe devolver isto e pedir que venha comigo.
Entregou o rosário à Mu. O garoto passou a examinar as pedras. Sorriu. Elas lhe eram tão familiares como se ele próprio as tivesse criado. Lembrava-se vagamente de ter feito outros dois rosários semelhantes, porém com outras pedras. Parecia ter sido a tanto tempo que a lembrança se perdera.
--Precisamos tirar você daqui, antes que eles voltem – disse Kanon preocupado. Sabia que as sombras logo se dariam conta de seu erro e voltariam atrás do garoto.
--Para onde vamos?
--Para os Templos Gêmeos. Você vai estar seguro lá. E terá resposta para as perguntas que desejar fazer. Confia em mim?
--Confio – não fazia idéia do que eram os Templos Gêmeos, mas queria muito sair dali.
Deu a mão para Kanon e o acompanhou até o cavalo que fora amarrado ali perto. Pôde ver o corpo de Narasima mutilado exatamente onde ele caíra após trazer a notícia que dera tempo para que sua vida fosse salva. Fez uma prece silenciosa para que aqueles que haviam sido sua família encontrassem seu caminho e não sofressem.
Partiram de volta aos Templos Gêmeos imediatamente. Precisavam viajar rapidamente para evitar que as sombras os alcançassem. Mu permaneceu quieto boa parte do caminho. Apenas depois que teve certeza de que podia confiar em Kanon e sua dor havia acalmado é que se soltou um pouco e começou a conversar com ele. O mestre do templo do oeste estava cada vez mais impressionado com aquele garoto.
Notas:
1- Mahadevi é o nome da esposa do deus hindu Shiva. Também é chamada de Parvati e é filha das Montanhas do Himalaia e irmã do rio Ganges.
2- Na verdade é Maitreya. Significa "o amoroso". Na China é conhecido como o Buddha da felicidade. A tradição budista acredita que virá daqui a trinta mil anos, para restaurar o Dharma quando os ensinamentos de Siddhartha desaparecerem.
3- Devdas é um filme indiano que me indicaram quando eu estava começando a escrever a fic. Nunca vi o filme todo, só os clipes de dança (foi daí que tirei a descrição do Odissi, que aparecerá mais adiante) e usei a trilha sonora pra escrever algumas cenas. O nome do personagem principal é Devdas, então resolvi fazer essa homenagem
4- Essa parte eu inventei. O diamante ficou com Brahma porque é uma pedra que representa pureza, a inocência e a constância, a granada representa Vishnu por sua relação com o amor, com o coração, e a jade representa Shiva por estar associada com a imortalidade e da proteção, características que Shiva representa.
5- No Ramayana conta-se que Rama traçou um círculo ao redor de Sita quando precisou deixá-la sozinha, dentro desde círculo nada poderia feri-la, mas ela foi atraída para fora por Ravana e acabou sendo presa por ele. Em muitas religiões o círculo tem poder de proteção e o Hinduísmo é uma delas.
6- Nome do Leão-Homem que foi um dos avatares de Vishnu. Brahma tinha dado invulnerabilidade a um Demônio durante o dia e durante a noite. O avatar matou o demônio até ao crepúsculo.
Agradeço a Yumi Sumeragi (semana que vem o Shaka volta pra aprontar mais um pouco XD Obrigada pela propagando que vc ta fazendo de Hiny e pela força que me deu e ainda ta me dando com ela! Sem vc a fic não teria saído ), Athenas de Aries (espero que goste desse cap! Adorei fics Mil Perdões e As Sete Cidades O Meu Amor! Mu e Shaka são tão perfeitos!), Ia-Chan (sou uma pesquisadora obcecada '' e os assuntos são tão interessantes que eu ia ficando com vontade de saber mais conforme ia pesquisando, isso ajudou bastante também. Morro dos Ventos Uivantes é incrível! Donko e Shion são tudo! Vou ficar esperando vc atualizar Flagelo do Coração! Fico muito feliz que você esteja gostando da fic ) e Litha-chan (muito obrigada pelos elogios a fic vai continuar sendo atualizada todos os sábados. E por falar nas suas fics, quando vc vai atualizar Chance de Amar? Me apaixonei pela sua fic ). Agradeço também a todos os que estão acompanhando a fic e não deixaram review. Não esqueçam: comentários são sempre bem-vindos! Façam uma escritora feliz, deixem review!
Sábado que vem as coisas começam a ficar mais interessantes Shaka encontra Lune e Donko conhece Shion, o que a mala da Saori vai achar de tudo isso? Não percam o próximo capítulo XD
