Capítulo 4 – A Chegada de Vishnu

As águas do Golfo de Bengala eram cortadas com velocidade pelo pequeno Star Hill. Ao longe se podia divisar uma pequena mancha negra que se alargava rapidamente. O vento soprava forte, aproximando-os cada vez mais da terra. O mês era novembro. O sol brilhava num céu sem nuvens, o clima era ameno.

Para os ingleses, acostumados com o frio e a umidade constantes, era uma novidade. Saori não parava de se abanar, achando que nem o inferno seria tão quente. Radamanthys subia pelas paredes, mal podendo esperar o barco ancorar para poder sair atrás de mulheres.

Shion recuperara um pouco do animo e da esperança da juventude. A sombra de um sorriso podia ser vista em seu rosto vez por outra. Aquele clima, aquele céu estrelado à noite e, principalmente, a ausência da neblina constante que pairava sobre Londres e seus arredores estava fazendo bem a ele. Estava cheio de planos e queria colocá-los em prática o mais rápido possível.

Seu filho não parava na cabine. Passava todo o tempo que podia conversando com Julian e com os marinheiros, estava aprendendo muito com eles. Sua pele estava levemente bronzeada, deixando um pouco evidente o tom azulado. Saori estava histérica pensando que o filho tinha pegado alguma doença desconhecida.

Queria que ele ficasse na cabine com ela, rezando e cuidando de seus enjôos. Lune sabia que a punição não seria nada leve. Praticamente deixar de rezar por quase cinco meses, desobedecer à mãe, ouvir as histórias pagãs do capitão e seus homens, tudo seria cobrado quando chegassem. Podia sentir a dor de seus joelhos sobre os grãos de milho ou ainda a cera quente caindo em suas costas.

Nada importava. Estava chegando em casa. Os vultos dos edifícios e dos templos de Calcutá podiam ser vistos à distância. Altas palmeiras perfilavam-se ao longo do cais. O cheiro da maresia misturava-se com o de especiarias e incenso. O barco ancorou e Shion foi chamar Saori.

Ela apareceu a muito custo, reclamando sem parar. Apoiava-se em Shion e parecia prestes a colocar o almoço para fora. Tampava os olhos com o leque de madrepérola e seda negra para não ver os marinheiros sem camisa.

--Que calor horrível, isto parece o inferno de tão quente!

--Pensei que senhoras dignas e religiosas como você não soubessem como é o inferno, Saori – alfinetou Shion, já sem paciência para aquelas reclamações sem-sentido. Ela nada disse. Uma boa cristã não discutia com o marido.

--Um barco deve ter chegado na semana passada, avisando que viríamos. Temos que nos apresentar na cede da Companhia Inglesa. Deve ter alguém nos esperando lá – disse Radamanthys aparecendo ao lado do tio. – Também vamos precisar de um intérprete que nos acompanhe, não sei nem que língua esses selvagens falam.

--Não sei por que você os considera selvagens, primo. Nem os viu ainda. Talvez sejam mais civilizados que nós.

--Não se meta em conversa de adultos, pirralho.

--Ah, mas você é muito adulto, não é?

--Como esse pirralho está petulante! Não devia ter descuidado dele tia. Veja só como ficou!

Saori olhou feio para o filho. Resolveria o problema assim que a comida parasse de revirar em seu estômago.

Shion apoiava-se na amurada, com Saori segurando seu braço. Calcutá descortinava-se à sua frente. O forte Saint William (1), maior construção da cidade e lugar onde ficava a cede da Companhia Inglesa, destacava-se em pedra escura e arquitetura em estilo inglês do final do século XVII.

Vários templos em diferentes estilos, pedras e cores espalhavam-se, misturando-se a casas com enormes jardins, barraquinhas que vendiam as mais diversas mercadorias e prédios de outros estabelecimentos. Uma catedral cristã também podia ser vista.

O porto era muito limpo. Estava apinhado de gente que transitava de um lado para o outro, realizando as mais diversas atividades. Saori agora resmungava dos homens com o torso nu que trabalhavam no cais. Estava achando aquilo o fim do mundo. Era um escândalo.

Radamanthys estava encantado com as mulheres que andavam com vestidos, blusas e saias de tecidos leves, muitas com a barriga de fora e decotes que Saori jamais usaria, embora nada tivessem de indecentes. Nada mais normal com o calor que fazia.

Uma música carregada de tristeza e, ao mesmo tempo, doce e alegre podia ser ouvida, vindo de algum lugar próximo. Os acordes eram muito diferentes dos tocados na Inglaterra ou em qualquer salão ocidental. Passavam uma emoção única e contraditória. Lune tinha um sorriso bobo nos lábios.

O capitão foi ter com eles para avisar que podiam descer. Também parecia muito alegre com a chegada. Tinha muitos amigos em Calcutá que estava com vontade de rever.

--Vou levá-los até a Companhia – disse ele em seu tom alegre e jovial de sempre. – Lá eles mandarão alguém vir buscar suas coisas. É melhor que venham todos, assim poderão ter uma idéia de como é a cidade e o povo indiano.

Era um pouco complicado andar no meio de toda aquela gente. Homens passavam com enormes caixas de madeira, obrigando os passantes a se esquivarem. O colorido das roupas enchia os olhos. Conversas e canções em inglês e hindi (2) podiam ser ouvidas em toda parte. Lune surpreendeu-se ao reconhecer aquela língua. Era o idioma das canções que ele costumava cantar quando se distraía. Ficou pasmo ao perceber que, diferentemente das outras vezes, podia compreender o significado de cada palavra.

Olhava em volta com curiosidade. Distanciou-se um pouco dos pais e não percebeu quando foi separado deles por um grupo de carregadores que passava apressado. Quando se deu conta, estava perdido no meio da multidão sem saber o que fazer.

Calma, Lune. Não entre em pânico. Dá pra ver a bandeira inglesa lá naquele canto, deve ser pra lá. Melhor, pergunte a alguém. Você entende o que eles falam, por que não saberia falar também? Respire. Concentre-se, procure as palavras certas, pensava tentando se acalmar. Não era tão terrível se perder num lugar como aquele.

Terrível seria o castigo que receberia de Saori por sua irresponsabilidade. Um castigo a mais para ser juntado à lista dos que receberia pelos "pecados" cometidos durante a viagem. Como se ter uma mãe como Saori já não fosse castigo suficiente. Olhou em volta procurando alguém não muito ocupado para pedir informação. Precisava se apressar, não queria que Shion ficasse preocupado.


Donko entrou no forte Saint William sem nem ter idéia do que queriam com ele. Abel, o encarregado da Companhia Inglesa das Índias Orientais, o esperava em sua sala. Era um aposento grande, ricamente decorado com móveis de mogno vindos da Inglaterra e cortinas da melhor seda da Índia. Os tons escuros, principalmente vinho e negro, davam um ar sombrio e ao mesmo tempo pomposo ao local.

Abel era um homem extremamente reservado. Vivia sozinho em uma mansão nos arredores da cidade. Era frio e calculista e dava valor somente ao poder e ao dinheiro. Tinha cabelos e olhos azuis, de um tom muito claro. Vestia roupas ocidentais de corte refinado e costura impecável.

--Bom dia, Donko. Está atrasado – disse friamente.

O produtor de chá suspirou não querendo começar a discutir. Tinha verdadeiro horror àquele homem. Achava-o mesquinho, arrogante e ganancioso além da conta. A antipatia em pessoa. Mantinha negócios com ele por pura falta de opção.

--Mesmo um inglês pode perdoar cinco minutos de atraso, não pode? – disse mantendo-se simpático e alegre. Não seria aquele ser intragável que estragaria seu bom humor.

--Sem gracinhas, por favor. Vamos direto ao assunto. Um barco está chegando hoje da Inglaterra com uma família que vai tomar posse da propriedade abandonada ao lado da sua. Quero que os leve até lá e os ajude no que precisarem. São uma família ilustre e é de meu interesse que sejam bem tratados e que nada lhes falte.

--A casa está abandonada há anos. Vai precisar de reforma, com certeza. Eles pretendem cultivar chá? Onde vão ficar até a reforma ser concluída?

--Não sei se pretendem reativar os campos de chá da propriedade ou se vão se dedicar exclusivamente ao comércio. Terá de perguntar a eles. Creio que não haverá problema em ficarem na sua casa por um tempo. Não vai se negar a ajudar os conterrâneos de seu pai, ou vai?

Donko sentiu seu estômago revirar de raiva. Quem aquele homem pensava que era para colocar estranhos em sua casa e sem pedir permissão? Ia dizer umas boas verdades a ele quando Atlas, secretário de Abel, os interrompeu.

--Com licença, senhor – disse. – Eles já chegaram.

--Excelente! Pode pedir que entrem.

Um homem de longos cabelos louros e farta franja caindo sobre os olhos violeta entrou na sala. Parecia perturbado.

--Bons dias, senhores. Meu nome é Shion. Pediram que me apresentasse à Companhia ao chegar. Trago uma carta de recomendação – disse entregando um papel enrolado e lacrado por um sinete vermelho.

Abel estendeu a mão e o pegou. Leu atentamente, depois sorriu.

--Ah, sim. Estávamos a sua espera, senhor Shion. Sou Abel, encarregado da Companhia Inglesa das Índias Orientais neste território. Seja muito bem-vindo à Índia. Deixe-me apresentar Donko Desai, ele será seu vizinho.

Só então Shion reparou no homem de pele morena e cabelos castanhos que estava parado a seu lado. Sentiu um calor diferente ao apertar sua mão. Aqueles olhos verdes lhe traziam conforto, ternura e alegria. Donko estava um tanto abobado. Nunca vira um homem tão belo em toda a sua vida. A pele clara de Shion e suas feições delicadas lhe davam um ar angelical, como se fosse se desfazer no ar ao mínimo toque.

--Muito prazer em conhecê-lo. Sinto muito chegar trazendo problemas, mas preciso pedir sua ajuda, senhores.

--Algo errado? – perguntou Abel, com fingido interesse.

--Meu filho perdeu-se enquanto vínhamos para cá.

Saori entrou na sala, seguida por Radamanthys.

--Senhor meu marido, precisamos procurar nosso filho antes que os selvagens façam mal a ele. Não sabemos do que esses filhos do demônio são capazes! – disse ela furiosa.

Shion engoliu em seco. Donko por pouco não pulou no pescoço dela. Reação típica de fanáticas inglesas recém-chegadas que achavam que não poderia haver civilização longe de suas igrejas e de seus ministros.

--Está é Saori, minha esposa – disse exasperado fazendo as apresentações. – E Radamanthys de Wyvern, nosso sobrinho.

--Com todo o respeito, cara senhora, não precisa se preocupar com seu filho. Não há selvagens nesta terra e ninguém fará mal a ele – disse Donko. Seu pai era inglês, mas a mãe, de quem herdara as terras e tudo o que possuía, era indiana. A Índia era seu lar, os indianos seu povo. Não conseguia controlar a raiva quando eles eram chamados de selvagens filhos do demônio.

--Diga-me como é o menino e mandarei que meus homens o procurem. Até o final do dia vamos encontrá-lo.

--Perdoe-me pelo inconveniente. Como disse, não queria chegar trazendo problemas.

--Problema nenhum – disse Abel em fingida gentileza. Sabia que Shion era muito influente e respeitado na Inglaterra, ter sua amizade seria de grande valia. – Não é a primeira vez que acontece. Crianças ficam fascinadas com o porto, com o colorido, com a diferença da Inglaterra. Seu filho não é o primeiro nem o último menino recém-chegado a se perder. E também não será o primeiro a não ser encontrado.

Cínico, pensou Donko. Não conseguia entender como Abel era capaz de ser tão fingido. Shion começou a descrever o filho enquanto Radamanthys consolava a tia e esta ameaça Lune de todas as formas possíveis em pensamento. Mais tarde se acertaria com ele. Tinha muito que cobrar do garoto, ele passara da conta na viagem e agora os fazia passar aquela vergonha. Lune não perdia por esperar.


Não muito longe do forte Saint William, Shaka andava apressado sem cuidar muito por onde ia. Tropeçou e caiu por cima de alguém. A queda o fez fechar os olhos. Podia sentir o corpo debaixo do seu, quente, macio. Foi como se um pequeno raio passasse por seu corpo. Abriu os olhos para encontrar duas ametistas a encará-lo confusas.

Ao ser empurrado para o chão, o outro menino segurara sua cintura. Shaka podia sentir as mãos em volta dela. Uma vontade de abraçar aquele menino e ficar ali para sempre tomou conta dele. Era o garoto do sonho.

Lune encarava o menino de cabelos louros e olhos azuis achando-o a perfeita imagem de um anjo sorrindo para si. Seu coração batia tão forte que parecia querer sair pela boca. O momento em que seus olhos se encontraram pareceu durar uma eternidade e poucos segundos.

Finalmente um dos dois reagiu. Shaka levantou-se de vagar e estendeu a mão para ajudar o outro. Ambos coraram ao contato sem saber por quê. Estavam um de frente para o outro, as mãos unidas.

Uma melodia forte, de ritmo alegre era tocada com instrumentos de corda e percussão por músicos de rua. A voz suave de uma mulher entoava a letra triste que contava a história de um amor que nem a distancia fora capaz de separar. Ritmo alegre e letras tristes. As músicas expressavam a contradição que os indianos viam no mundo, a mescla entre luz e escuridão, tristeza e alegria.

--Desculpe, estava distraído e não vi você – disse o menino louro num inglês impecável. Lune pensou que devia ser filho de algum comerciante vindo da Inglaterra. – Meu nome é Shakyamuni, mas pode chamar de Shaka.

--Eu... sou Lune – o sorriso bobo que ele tinha nos lábios dobrara de tamanho.

--Seja bem-vindo à Índia, Lune.

Como a boa educação que recebera no templo mandava, aproximou-se e deu um selinho em Lune. Um ato inocente, sem qualquer malícia ou segundas intenções. O mundo se dissolveu, deixando somente a música e os dois. Foi um toque rápido, porém ambos sentiram o coração disparar, o toque doce dos lábios do outro, uma sensação tão boa que não dava vontade de se separarem.

--Por que você fez isso? – perguntou o garoto de cabelos cor de lavanda, corando absurdamente. Fora seu primeiro beijo. E ele não estava zangado por ter sido com outro garoto.

--Desculpe de novo. Não quis ofendê-lo. Às vezes esqueço que os ocidentais têm outros costumes. Convivo pouco com pessoas que não são do meu povo, então não sei muito bem como se comportam.

--Não me ofendeu – apressou-se em dizer. – É que do lugar de onde eu vim não é comum dois... dois garotos... se... é... – Lune se enrolou com as palavras e não conseguiu terminar a frase.

--Se beijarem para cumprimentar? Como vocês cumprimentam então? – perguntou Shaka curioso.

--Nós damos as mãos. Assim.

Só então Lune percebeu que não havia soltado a mão do garoto desde que levantara com sua ajuda. Corou de leve. Mostrou a ele como os ingleses costumavam cumprimentar. Sentiu falta do calor da mão do outro em sua quando a largou.

--Que coisa mais sem graça isso de apertar a mão... é um gesto tão frio e distante... Você chegou agora?

--Foi. Estou meio perdido. Distraí-me olhando o porto e me perdi dos meus pais.

--Sabe para onde eles estavam indo?

--Para a cede da Companhia Inglesa das Índias Orientais.

--É fácil! É aquele prédio grande ali, o forte Saint William – apontou para o topo da construção que podia ser visto de onde estavam, a bandeira inglesa tremulava no alto. – Eu te levo lá! Já está mesmo na hora de eu ir.

--Você mora aqui? – perguntou enquanto andavam ao longo da avenida ladeada por palmeiras que Lune vira do barco. Sem que percebessem, suas mãos voltaram a se unir.

--Não. Moro no templo do leste. É um templo muito bonito que fica às margens do rio.

--Seus pais cuidam do templo?

--Não conheci meus pais de verdade, fui deixado nas escadarias do templo quando ainda era bebê. Saga e Kanon cuidaram de mim. São como se fossem meus pais.

--Sinto muito.

--Eu não. Adoro aquele lugar, e aqueles dois são os melhores pais que eu poderia querer. E ainda tem o Donko, ele também sempre cuidou de mim. Foi quem me trouxe pra cá hoje.

--Esse Donko também mora no templo?

--Não. Ele é proprietário de uma plantação de chá. É um dos poucos indianos associados à Companhia. Vou apresentar ele a você! Ele está lá tratando de não sei o quê...

--Pensei que você fosse ocidental – disse distraído.

--Todos pensam. Por causa do cabelo claro.

--E pelo seu inglês. Você fala muito bem.

--Obrigado. Donko me ensinou, ele achou que seria útil. Mas eu não gosto muito não. Prefiro hindi e sânscrito, tem sons mais bonitos.

--Também acho.

--Sabe falar?

--Consigo entender.

--Quem te ensinou? – perguntou curioso.

--Ninguém. Eu... só sei – disse um pouco sem graça, pensando que Shaka ia achar que estava ficando doido.

--Entendo. Talvez você tenha sido indiano numa outra vida – sorriu.

Lune olhou-o intrigado. À frente deles estendia-se a escadaria de largos degraus de pedra que culminava na porta do forte Saint William.

--É aqui. Vamos? – perguntou Shaka. O outro assentiu e eles entraram.

Saori foi a primeira a ver o filho. Deu outro escândalo ao vê-lo entrar conversando na maior alegria e de mãos dadas com um garoto de roupas estranhas.

--Lune Heathcliff, onde você estava? Tem noção da vergonha que nos fez passar? – disse ela entre dentes, controlando o tom de voz para que não a ouvissem. – Isso não vai ficar assim, você sabe que não vai! Espere até chegarmos em casa. E você quem é? – perguntou rudemente olhando para Shaka.

Antes que ele pudesse responder Shion apareceu com Radamanthys, Abel e Donko. Abraçou o filho aliviado por ele estar bem. Lune estranhou um gesto de carinho tão explicito e íntimo. Nunca, em todos os seus dezesseis anos de vida, lembrava-se de ter sido abraçado pelo pai.

--Você está bem, meu filho?

--Eu estou. E o senhor? – estava perplexo com uma mudança tão brusca no comportamento do pai.

Afastou-se um pouco e olhou-o nos olhos. Havia uma luz diferente neles. Amor. Pode reconhecer imediatamente. Shion podia não saber ainda o que se passava em seu coração. Podia negar, podia ignorar. Contudo, estava acontecendo. Ele encontrara sua alma gêmea e não poderia fugir a vida toda.

Olhou para o lado e sorriu. O motivo da mudança estava em pé, ao lado de seu pai. Um homem de cabelos castanhos encaracolados com quem ele simpatizou logo de cara. Ele e seu pai pareciam opostos. Lembrou das músicas que ouvira, que eram a expressão de opostos que se completavam e que não podiam viver um sem o outro. Os olhos daquele homem apresentavam a mesma luz que os de seu pai.

--Senhores, lhes apresento meu filho, Lune – disse Shion visivelmente mais tranqüilo, dirigindo-se a Donko e Abel.

--Muito prazer, Lune – disse Donko estendendo a mão. – Vejo que encontrou o Shaka no caminho.

--Na verdade foi ele que me encontrou – sorriu.

Saori resmungou insatisfeita. Não poderia sair coisa boa dali. Precisava afastar o filho daquele garoto o mais rápido possível.

--Mas que crianças adoráveis! – exclamou Abel chegando mais perto dos meninos. – E quem é este outro? Seu filho Donko? Nunca me disse que tinha um.

--É como se fosse. Sempre considerei Shaka um como um filho.

Abel estendeu a mão para Shaka como tinha feito com Lune. Ele apertou a mão oferecida a contragosto. Definitivamente não havia gostado daquele homem. Sentia sua gentileza fingida, carregada de más intenções. O filho de Shion notara uma aura negra pairando em torno dele.

--Ele me lembra muito você, Donko – ironizou Abel. Shaka olhava para ele como se tivesse vontade de reduzi-lo a cinzas.

Uma força fora do comum emanava dos garotos. Abel pôde sentir e começou a formular hipóteses em sua mente. Tinha quase certeza de que eram eles. Dois garotinhos indefesos. Vai ser muito mais fácil do que eu imaginava. Mas onde está o terceiro? Precisaria cuidar disso mais tarde. Não podia deixar que se tornassem um problema, melhor eliminar os três antes que começassem a atrapalhar seus planos.

--Agora que estão todos aqui, acho que podemos ir. Se nos apressarmos chegamos em minha casa para o almoço – disse Donko quebrando o silêncio incômodo que se instalara entre eles.

--Sua casa? – perguntou Radamanthys surpreso.

--Permitam-me que eu explique – ofereceu-se Abel. Shion começava a se incomodar com aquele tom meloso que ele usava – A propriedade que o senhor Shion recebeu está abandonada há muitos anos, precisa de uma boa reforma, móveis novos, empregados.

--Pensei que isso tivesse sido providenciado – disse Saori. A idéia de ficar na casa de um nativo não lhe agradava.

--O navio que trazia a notícia de sua chegada teve alguns contratempos no caminho e só chegou ontem. Não tivemos tempo de preparar nada. O senhor Donko se ofereceu gentilmente – nessa parte Donko pigarreou mostrando-se visivelmente descontente – para abrigá-los na casa dele até que a sua fique pronta. Como são praticamente vizinhos a obra poderá ser acompanhada de perto, para que fique ao gosto de vocês.

--Cuidaremos da reforma depois de ver a casa – disse Shion. – Gostaria de agradecer a ajuda dos senhores e pedir um último favor. Preciso de alguém que tire nossa bagagem do barco e a leve para onde vamos ficar. Julian Solo, o capitão, tomará conta da embarcação para mim.

--Ótimo. Vou cuidar para que suas coisas cheguem à casa do senhor Donko ainda hoje.

--Então vamos – disse Donko não agüentando mais aturar a presença de Abel.

Abel cedeu uma carruagem para Saori e Radamanthys. Shion pediu um cavalo e foi prontamente atendido. O representante da Companhia estava se esforçando em agradá-lo e conseguir sua confiança. Lune foi no cavalo de Shaka, o que deixou sua mãe a ponto de espumar de raiva.

--Pode segurar minha cintura se quiser, assim não tem perigo de você cair – disse Shaka, vendo que Lune estava um pouco afastado dele e tentava se afirmar segurando ao lado da cela.

O garoto inglês aproximou-se mais, deixando seu corpo encostar de leve no de Shaka e passou os braços em torno da cintura dele. Fechou os olhos sentindo a maciez do corpo do outro, o perfume de sândalo que exalava dele. Gostava daquele contato. Corou sem saber direito o porquê. Shaka sorria, um pouco vermelho também. Tinha vontade de soltar as rédeas do cavalo e tocar aquelas mãos, segurá-las entre as suas.


Logo se afastaram da cidade e entraram em um pequeno trecho de mata que a separava das fazendas de chá e dos diversos templos da margem do Ganges. Altas árvores, arbustos e diversas plantas nativas rodeavam o caminho, impedindo que o interior da mata fosse visto. Chegaram a um ponto em que, fazendo-se uma curva fechada para a direita, havia uma estrada um pouco menor.

--Esta estrada leva às suas terras, senhor Shion. Seguindo reto passamos pelo por um dos Templos Gêmeos e chegamos à minha casa, mas uns quarenta e cinco minutos a pé, pouco menos que isso a cavalo. Gostaria de ver suas terras?

--Se não se incomoda, prefiro voltar depois do almoço. Sem querer ser abusado, estou morto de fome – disse com um sorriso envergonhado que encantou Donko.

Não entendia direito o que estava acontecendo com ele. Shion lhe inspirava uma torrente de sentimentos e sensações desconhecidas. Não que ele estivesse reclamando. Só queria entender o que era.

--Podemos ir na frente? – perguntou Shaka. – Queria mostrar o templo pro Lune.

O garoto fez aquela cara que só ele sabia fazer e que praticamente obrigava as pessoas a cederem. Afinal, quem teria coragem de negar algo àquele anjo?

--Tudo bem se seu filho entrar no templo? – pediu a Shion. – Sei que vocês ingleses são muito religiosos e não gostam dessas coisas...

--Problema algum – respondeu Shion sorrindo.

Não via mal no filho conhecer a cultura da terra à qual pertenceriam daquele dia em diante. Os planos de voltar à Inglaterra estavam definitivamente sepultados. Estava gostando demais de sua nova pátria para considerar a hipótese de voltar à antiga.

--Pode ir, Shaka. Apenas tome cuidado no caminho e, por favor, fique longe das cobras ou Saga vai querer me matar.

Shion não entendeu essa última observação. Preferiu não perguntar. Saori colocou a cabeça fora da janela da carruagem ao ouvir o som de cascos de cavalo se afastando ligeiros.

--Aconteceu alguma coisa? – perguntou olhando em volta.

--Não aconteceu nada.

--E Lune?

--Ele está bem, não se preocupe. Sei cuidar de meu filho, ao contrário do que pensa, senhora minha esposa.

Donko pôde reparar que Shion não tinha boas relações com a esposa. Outro casamento de aparências, sem dúvida. Saori parecia ser insuportável. Ela voltou a entrar na carruagem, achando melhor ficar quieta antes de passar vergonha na frente daquele selvagem nativo. Tudo o queria era voltar para Londres.

Seu marido estava muito estranho. Parecia não querer mais manter nem as aparências do casamento. Ela estava preocupada. Achava que era tudo culpa do filho e do pacto que ele tinha com o demônio. Olhou para Radamanthys, percebendo que o sobrinho cochilava recostado no banco.


--Por que ele pediu que você ficasse longe das cobras? – perguntou Lune quando se afastaram um pouco.

O cavalo andava rápido pela trilha, fazendo os cabelos dos dois esvoaçarem. Alguns fios haviam soltado da traça de Shaka e faziam cócegas no rosto de Lune.

--Porque eu gosto de brincar com elas. E elas sempre têm histórias divertidas pra contar. Mas o mestre Saga não gosta, ele acha perigoso, não entende que elas nunca me machucariam – respondeu como se estivesse dizendo a coisa mais natural do mundo.

--Elas falam com você?

--Mais ou menos. Elas não usam palavras.

--E falam sobre o quê?

--Histórias de antigamente. Elas vivem muito mais tempo que os seres humanos. Algumas têm séculos de histórias para contar. Por viverem tanto tempo nós as consideramos como símbolo do triunfo sobre a morte, da imortalidade. Por isso Shiva as usa como braceletes ou uma coroa na cabeça.

--Shiva é aquele que destrói os males do mundo e guia as almas ao seu caminho depois da morte, não é?

--É sim. Como você sabe?

--Não sei. São como lembranças... coisas que eu lembro sem saber de onde vieram.

--Às vezes isso também acontece comigo. Mestre Saga diz que quando somos muito sensíveis ao mundo espiritual podemos lembrar com mais clareza das outras vidas.

As árvores diminuíram de repente. À direita surgiu o enorme edifício do templo do leste. O sol do meio-dia batia em cheio nele, fazendo-o resplandecer como se fosse feito de ouro. Do outro lado estendia-se uma pequena extensão de terras planas, cobertas de grama e pequenas flores, com enormes figueiras da Índia espalhadas. Terminava em uma escada que descia até tocar a água do Ganges.

A água era rasa por alguns metros, onde os monges costumavam tomar banho pela manhã, e depois começava a tornar-se mais funda. Lune reconheceu os miosótis de seus sonhos, o barulho relaxante do rio, as flores de lótus boiando perto da margem. Do outro lado havia um edifício exatamente igual, só que negro como a noite e que não refletia luz alguma.

--Chegamos – disse Shaka parando na frente do templo e descendo do cavalo. – Quer ajuda?

Lune fez que sim. Ele estendeu os braços e esperou que o garoto saltasse. Os pés do inglês bateram no chão e ele ficou olhando para Shaka. Estavam muito próximos, podiam sentir a respiração um do outro. Coraram e sorriram.

--Aquele ali é o rio Ganges, o rio sagrado. E lá do outro lado fica o templo do oeste. Sei que de dia pode parecer assustador, mas à noite é como se todas as estrelas do céu refletissem nele.

--Tudo isso é lindo. Eu lembro desse lugar... as flores de lótus... o rio...

Parecia perdido em suas lembranças. Shaka o deixou olhar o quanto quisesse. Não tinha dúvidas de que Lune vivera ali em alguma de suas outras vidas. E de que ele o havia conhecido. Em poucas horas juntos já pareciam amigos de longa data.

--Pode ficar aqui e olhar tudo com calma. Vou entrar e pedir permissão à Saga para levar você lá dentro. É uma das regras. Ninguém entra sem a permissão dele.

--Tudo bem.

Atravessou a estrada, pisando na grama enquanto Shaka desaparecia atrás dos portões que se abriram para ele. Foi andando lentamente até chegar à escada. Desceu o suficiente para poder tocar as águas do Ganges ao se abaixar. Seus olhos estavam úmidos de lágrimas. A beleza do lugar era tanta que lhe dava vontade de chorar. Fez uma prece silenciosa agradecendo aos deuses por o terem conduzido de volta ao seu lar.


No salão central do templo Saga fazia a prece do meio dia, queimando incenso e recitando o mantra sagrado em frente ao altar da Trimurti. Shaka parou na entrada e esperou que ele acabasse. Ao vê-lo se levantar, correu até ele e se jogou em seu colo.

--Bom dia, mestre Saga!

O mestre do templo quase caiu para trás. Shaka não era mais o menininho leve que parecia mais uma pena em seus braços. Deu-lhe um beijo e o colocou no chão com cuidado.

--Já de volta Shaka? Pensei que fossem demorar mais.

--Donko só foi lá buscar uns ingleses que vão ficar na casa dele. Parece que depois vão morar na casa abandonada aqui do lado.

--E onde está Donko?

--Vindo mais de vagar com os outros. Tem uma mulher chata com eles que quis vir de carruagem – disse alegremente.

--Shaka! Não deve falar desse jeito de pessoas que mal conhece.

--Mas é verdade! Ela é uma chata mesmo! – Saga fez cara feia e ele resolveu mudar de assunto. – E o mestre Kanon?

--Kanon precisou viajar.

Saga deu um sorriso triste. Só então Shaka percebeu que seus olhos estavam um pouco vermelhos e inchados.

--Como assim? Onde ele foi? Vocês não brigaram, não é? – perguntou preocupado.

--Não, nós não brigamos. Kanon foi cumprir uma missão que recebeu do mestre dele há muito tempo. Ele queria esperar você para se despedir, mas não havia tempo.

--Quando ele volta?

--Em alguns meses.

--Você está com saudades. E preocupado com ele também.

O mestre assentiu. Shaka o abraçou dando-lhe um beijo no rosto. Os gêmeos sempre o haviam ensinado a ser carinhoso e prestativo com aqueles que amava. A tristeza de seu mestre apertava seu coração.

--Não precisa. Vou pedir aos espíritos bons que cuidem dele. Ele vai voltar logo, não se preocupe.

--Se ele não voltar logo, nós vamos buscá-lo – disse sorrindo. - Você está diferente. Aconteceu alguma coisa na cidade?

Shaka baixou os olhos e sorriu, o rosto corando um pouco.

--É que... eu conheci um garoto lá... e... acho que gosto dele...

--Me conte direito essa história.

--Eu sonhei com ele essa noite. Ele vinha em um navio e sorria pra mim. Aí hoje, lá na cidade, vi um navio parecido ancorar e fui lá ver. Esbarrei com esse garoto no caminho. É como se nós nos conhecêssemos desde sempre. Só que ele não sabe do sonho... eu não falei nada porque nos conhecemos há umas poucas horas e eu sei que os ocidentais às vezes não gostam dessas coisas.

--E onde está esse menino?

--Ali fora. Vim pedir a você se ele pode entrar.

--Sabe que não posso deixar qualquer pessoa entrar no templo.

--Acho que ele pode entrar. Ele se lembra daqui. Diz que tem lembranças desse lugar, da nossa língua e da Divina Trindade.

--Está bem, vá buscar o garoto.

Shaka agradeceu e foi correndo buscar Lune. Saga sentou-se em posição de lótus. Estava intrigado com a história de um ocidental lembrar de lá. Não era algo que se via todos os dias.


Os portões do templo se abriram e Lune pôde contemplar os jardins. Monges andavam de um lado para o outro, cuidando de seus afazeres. No pátio de entrada algumas monjas dançavam ao som de música animada. O cheiro de incenso deixava o ar deliciosamente perfumado.

--Mestre Saga, este é Lune – disse Shaka quando entraram no salão onde Saga esperava.

Ao botar os olhos no garoto Saga percebeu quem era. Não havia dúvidas de que estava diante do espírito de Vishnu. O tom azulado da pele falava por si. Vishnu tinha esse tom de pele para simbolizar o infinito. Os olhos expressavam um amor por tudo o que o rodeava e uma felicidade que só Vishnu podia expressar.

--Encantado em conhecê-lo. Sou Saga, mestre do templo do leste – disse levantando e estendendo a mão, à maneira ocidental.

Lune ficou em dúvida se devia cumprimentar o mestre do templo daquela maneira. Poderia representar um desrespeito à cultura deles.

--O que foi? – perguntou Saga vendo que o menino permanecia parado.

--Shaka me disse que vocês não costumam cumprimentar assim... não queria ofender seus costumes.

--Não estará ofendendo.

Sorriu e apertou a mão do mestre. Olhou de esguelha para o altar atrás de Saga. Lembrava daquelas imagens. A Divina Trindade. Sabia que devia fazer uma reverência e foi o que fez.

--Shaka me disse que tem lembranças de nossa terra.

--Sim. Desde pequeno.

--Por isso fez a reverência? Crê na Divina Trindade?

--Sim. Eles são os representantes da Força Maior que os criou e ordenou que cuidassem do universo, dando-lhes poderes para tal. Brahma tem o poder de criar, Vishnu de preservar e Shiva de destruir.

--É isso mesmo. Seja bem-vindo, Lune. As portas deste templo estarão sempre abertas para você.

--Obrigado – agradeceu timidamente.

--Vão almoçar conosco?

--Não, Donko já deve estar chegando. Nós vamos com ele. Posso ficar uns dias lá, não posso, mestre?

E lá vinha Shaka com aquela expressão de cachorrinho sem dono. Kanon tinha uma expressão parecida quando queria muito alguma coisa. Só lhe faltava o poder de convencimento de Shaka.

--Pode. Só não vá dar trabalho ao Donko. E, por Shiva, fique...

--Longe das cobras... eu sei – disse chateado. – Obrigado por me deixar ir! – beijou a bochecha de Saga e pegou Lune pela mão. – Vamos, eles estão chegando.

Saga saiu com eles para falar com Donko, fazer a mesma lista de recomendações que fazia toda vez que ele levava Shaka para sua casa. E para esclarecer aquela história de ingleses morando ao lado de seu templo. Não ia querer problemas com os novos vizinhos.

Gostou muito de Shion e o convidou para aparecer no templo quando quisesse, para conversarem um pouco. Achou que Shaka tinha razão ao dizer que Saori era uma chata. Ela mal lhe dissera "bom dia" e ficara dando indiretas, dando a entender que o achava servo do demônio. Radamanthys lhe impressionou. Emanava um poder que talvez nem soubesse possuir, poderia trazer problemas aos meninos.

Despediu-se, certo de que precisava que Kanon voltasse logo. Os Três tinham que ser reunidos e preparados para a batalha que se aproximava. Os inimigos não demorariam a se reunir e começar a planejar o ataque. Sentia-se feliz e mais leve por saber que Vishnu conseguira chegar a eles são e salvo. Parecia ser um menino maravilhoso, assim como Shaka. Virou às costas a estrada e voltou ao templo para almoçar com os demais.


Notas:

1- A construção do Forte Saint William foi concluída em 1781 e ele fica no centro da cidade. Foi construído como cede da administração inglesa e também como proteção contra algum ataque que pudesse servir. Sua função como sede da Companhia Inglesa das Índias Orientais é só uma suposição minha.

2- O hindi é uma das línguas mais faladas na Índia, junto com idioma pali e o inglês.

Aqui estou eu com mais um capítulo! Agradeço a Athenas de Aries e Yumi Sumeragi pelas reviews! Espero que vcs gostem desse capítulo! Obrigada a todos os que estão acompanhando a fic! A opinião dos leitores é muito importante, deixem review!