Capítulo 5 – Conversas e folhas de chá

Aos olhos de Shion, Lune e Radamanthys, a casa de Donko era um perfeito palácio, mais belo que qualquer construção inglesa que tinham visto. Tudo muito limpo e organizado, um perfume de canela e flores no ar. Pavões andavam pelos jardins floridos e frescos, pela sombra que as árvores faziam.

Saori desceu da carruagem um tanto exasperada. Está bem que ela esperava ter de ficar numa palhoça e que aquela casa parecia ser muito melhor, mas nada a convenceria de que não eram selvagens que viviam ali.

Uma bela senhora de longos cabelos castanhos ondulados, olhos azuis e pele morena apareceu no topo das escadas para recebê-los. Usava um vestido de seda azul-celeste estampado em dourado da melhor qualidade. Seus olhos eram contornados de preto e sombreados de azul, os lábios traziam um brilho rosado. Suas jóias a faziam parecer uma rainha.

--Trouxe visitas, Donko? – perguntou intrigada.

Shion pensou que fosse a esposa e Donko. Sentiu-se ligeiramente incomodado com a possibilidade. Seu incômodo só aumentou quando ele se aproximou sorrindo e depositou um beijo rápido em seus lábios.

--Não sabia que voltaria hoje, minha mãe.

Mãe? Pensou Saori, escandalizada com aquele gesto. A senhora realmente não aparentava a idade que tinha, parecendo muito mais jovem do que era. Viúva há cinco anos, ainda sentia a perda do marido. Fora muito difícil conseguir a permissão de seu pai para casar com um inglês. Somente por amá-lo demais havia conseguido, e sob a condição de que seu marido adotaria um sobrenome indiano, para que os filhos que tivessem pudessem herdar os bens da família.

Donko era o único filho e a mãe o enchia de mimos o tempo todo. Ela sim tinha certeza de que Shaka era seu neto e fazia questão de que ele lhe chamasse de avó. Abraçou o menino e tratou de conhecer as visitas. Não as esperava nem gostou muito da idéia de hospedar estranhos.

Estivera viajando para visitar uma prima doente. Voltara para casa há poucas horas e já tinha que cuidar de acomodar aquela gente. Parou de se importar com o trabalho quando viu o brilho nos olhos do filho ao olhar para Shion. Conhecia-o bem demais para perceber que ali tinha coisa.

--Valha-me Deus! – disse Saori sentindo as pernas amolecerem e o corpo ceder ao ver o altar de Krishna que estava ali. – É o demônio, Shion!

Lune teve vontade de rir. Shaka não conseguiu segurar e riu mesmo. Pensou no que aquela "distinta senhora" faria se visse a imagem de Kali (1). Shion queria um buraco para se esconder da vergonha que estava sendo obrigado a passar. Seria o cúmulo do desrespeito se Saori afrontasse as tradições das pessoas que os estavam abrigando com tão boa-vontade.

--Ingleses recém-chegados, mamãe. Dê um desconto, por favor – pediu Donko em voz baixa. Sabia que sua mãe, tanto quanto ele, detestava pessoas que chegavam de fora se achando melhores que eles por possuírem outra cultura e faltavam ao respeito com suas tradições.

Samia saiu da sala, voltando pouco depois com um copo de água. Saori estava sentada em uma poltrona, com Radamanthys tentando acalmá-la. Ofereceu a água torcendo para que ela se engasgasse. Lune sentara-se nas almofadas e conversava com Shaka. Achava incrível o dom que a mãe tinha de despertar a inimizade e desagradar a todos com seu fanatismo, preconceito e falta de respeito pelo que era diferente do mundinho pequeno em que vivia.

--O almoço está sendo servido – disse a mãe de Donko.

O repicar de sinos foi ouvido. Levantaram-se e foram não à sala de jantar, mas para o pátio de trás da casa. Era um lugar cercado de árvores, calçado de pedra cinza. Quatro mesas enormes estavam arrumadas e várias pessoas conversavam alegres. Eram os trabalhadores que cuidavam das plantações de chá.

--É um costume nosso fazer as refeições com os trabalhadores. Espero que não se importem – disse Donko.

Shion notou que ele chamara as pessoas de trabalhadores e não de empregados. Parecia saber o nome de todos. Andava entre eles, cumprimentando, perguntando da família e puxando conversa. Saori fez cara feia de ter que comer com os subalternos.

--Shaka.

Donko fez sinal para que o menino levantasse. Quando estava ali era sempre o menino que conduzia as orações, como quase monge do templo. Na casa de Donko seguia-se a mesma tradição dos Templos Gêmeos. O garoto pegou uma bela concha branca que lhe era oferecida e virou-se em direção ao leste. Todos ficaram calados observando.

--A Brahma, agradecemos pela criação de mais este dia – ele soprou a concha e todos repetiram o mantra sagrado vinte e sete vezes, de forma incrivelmente rápida. Virou-se para o norte e prosseguiu. – A Vishnu, agradecemos por preservar este dia e zelar por nossas atividades – soprou a concha novamente e o mantra foi repetido mais 27 vezes. Virou, então para o sul. – A Kali, agradecemos pela fertilidade da terra que nos deu o alimento que vamos consumir – outro sopro e mais vinte e sete repetições. Por fim virou-se para o oeste. – A Shiva, agradecemos por destruir o mal no final deste dia, permitindo que comecemos novamente amanhã e por libertar a todos aqueles que partirem desta vida no dia de hoje – soprou a concha e as últimas vinte e sete repetições do mantra foram ouvidas, completando as 108 (2).

Devolveu a concha e a refeição foi iniciada. Saori pedia perdão a Deus por ter presenciado aquela cena de adoração aos demônios. Lune sorria, encontrara seu lugar no mundo. Havia repetido o mantra discretamente junto com os outros, segurando seu rosário de contas debaixo da mesa. Shion achara aquele ritual muito belo em sua simplicidade. Nem um dos rituais da Igreja da Inglaterra, com toda a sua pompa e cerimônia, lhe tocara tanto o coração.

Para ele não era servidão ao demônio, era apenas uma forma diferente de adorar ao mesmo Deus que ele servia. A comida estava deliciosa. Os temperos indianos deixavam a carne de carneiro com um sabor diferente, especial. Saori não tocou na carne, era sexta-feira e seria pecado. Lembrou de castigar Lune por isso mais tarde. Para a sorte do garoto, ela não notou que ele falava hindi tão bem quanto os habitantes locais.


Após a refeição, um banho foi oferecido aos hóspedes. Há meses não tomavam banho com outra água que não a retirada do mar. Lune foi o primeiro a aceitar, tinha uma mania com limpeza quase tão grande quanto à dos indianos. Tomaria banho todas as manhãs se Saori não proibisse.

--Podem usar um pequeno rio que fica um pouco afastado da casa e da plantação. Vai garantir mais privacidade – disse Samia providenciando toalhas limpas e óleos perfumados.

--Rio? Não tem tina? – perguntou Saori incrédula. Não tomaria banho em um rio onde qualquer selvagem poderia vê-la.

--Tem, mas só usamos em dia de chuva. Quando fica impossível usar o rio.

--Eu vou preferir a tina, obrigada. Não vou me expor tomando banho num lugar onde alguém pode me ver.

--Eu não me importo com o rio – disse Lune, indiferente.

--Nem eu. Não gostaria de ofender os costumes de vocês – apoiou Shion.

--E os nossos costumes como ficam, senhor meu marido? Nós somos os cristãos aqui – disse Saori cheia de si, como se o fato de ser cristã a fizesse melhor que os outros e obrigasse a família de Donko a fazer todas as suas vontades.

--Ficam para quando estivermos em nossa casa, senhora minha esposa – respondeu Shion exasperado.

Radamanthys não se importou. Seguiu Donko e Shion a caminho do rio.

--Vem Lune, vou mostrar um lugar lindo pra você! – disse Shaka pegando uma toalha, um sabonete de canela e um vidro de óleo de almíscar e puxando o menino pela mão antes que a mãe dele pudesse impedir.

Samia ficou com a desagradável tarefa de mandar preparar a tina para Saori. Tinha um sexto sentido muito forte e ele lhe dizia que aquela mulher era encrenca na certa. Simpatizara muito com Shion. Era um homem gentil, educado e que não desprezava nem desfazia dos costumes alheios. Lembrava muito seu falecido marido, tinha a mesma doçura triste e melancólica que vira nos olhos de seu William. E Donko parecia ter um gosto muito parecido com o seu.

Teve muita vontade de afogar Saori na tina e dizer que fora um acidente. Como boa seguidora das tradições do Templo que era acreditava que tudo o que uma pessoa fazia voltava para ela mais cedo ou mais tarde. Deixaria que o tempo se encarregasse de dar uma lição naquela mulherzinha desprezível que se achava melhor que todos.


Seguindo uma trilha muito estreita que saia do jardim, chegava-se a uma pequena cachoeira que caía por entre pedras cobertas de musgo para um lago não muito fundo de águas claras. O lugar era cercado de árvores e coberto de grama. Samambaias e orquídeas deixavam o recanto ainda mais belo.

--Que lugar lindo – disse Lune olhando em volta.

--Achei que fosse gostar.

Olharam-se por alguns segundos, um pouco constrangidos.

--Vou virar de costas enquanto você toma banho – disse Shaka. – Se precisar de alguma coisa é só pedir.

Shaka sentou em uma pedra, de costas para a água e começou a cantar baixinho. Ouvia o barulho da água de Lune espirrava, sentia o perfume do sabonete de canela que Samia havia dado ao garoto. Tinha muita vontade de virar e ver como ele era.

--Você canta muito bem – disse Lune, a voz pouco trêmula por causa da água fria.

Shaka corou e agradeceu. Não conseguia entender por que corava a cada palavra que Lune lhe dirigia. Nunca havia ficado tão tímido perto de alguém e ao mesmo tempo se sentido tão à vontade. Seu coração batia mais rápido só de saber que Lune estava ali perto.

--Shaka...

--Hum?

--Pode me alcançar a toalha? – pediu envergonhado. Tentara pegar a toalha de dentro da água sem conseguir.

O garoto virou de vagar para ver Lune com os braços encolhidos junto do corpo, tremendo de frio e com os pés ainda dentro da água. Os cabelos molhados grudavam-se às costas e ao rosto. A pele emanando o perfume de almíscar e canela. Shaka mordeu o lábio e andou de vagar, sem tirar os olhos dele.

--Aqui está – disse passando a toalha pelas costas de Lune e ajudando-o a se secar. – Você fica ofendido se eu disser uma coisa? – perguntou um pouco envergonhado.

--Nada do que você disser poderá me ofender, Shaka – disse com um sorriso doce.

--Você é lindo...

Passou a mão levemente pelo rosto do outro, contornando seus lábios com o polegar. Como era suave. Teve muita vontade de beijá-lo. Não o fez somente porque sabia que Lune poderia não gostar.

--O... obrigado...

Sentiu um calor agradável percorrer seu corpo com aquele toque. Estava tão vermelho quanto poderia ficar. Terminou de se secar e vestiu a roupa, apressado. Pensava no beijo que tinha ganhado de Shaka pela manhã. Seu primeiro beijo. Mesmo sabendo que Shaka fizera aquilo apenas para cumprimentá-lo, não conseguia tirar da cabeça.

--Vamos? Quero te mostrar a plantação de chá. É mais bonita bem ao meio-dia, quando o sol bate em cheio nela. Mas acho que você vai gostar do mesmo jeito.

--Vamos sim!

--Lune... você se sente mal se eu segurar a sua mão? É que tenho essa mania... mas se você não gosta...

--Tudo bem. Não me sinto mal.

--Não conheço muito os ocidentais, então se eu fizer alguma coisa que te incomode, pode dizer que eu mudo.

--Nada do que você fizer pode me incomodar – disse corando. Tinha que arrumar um jeito de parar de parecer um pimentão cada vez que dissesse algo a Shaka. – E se eu fizer algo que você não gostar, pode falar também.

--Digo o mesmo que você, nada do que fizer pode me incomodar.

Sorriram um para o outro e foram andando de mãos dadas rumo à plantação de chá. Lune achou-a maravilhosa. Tal qual Shaka havia dito, parecia um mar de folhas verdes, ondulando com os leves ventos que incidiam sobre ela. A sensação de estar imerso em meio às plantas, só com os ombros e a cabeça para fora, sentindo o toque aveludado das folhas de chá causava arrepios na pele. O canto dos trabalhadores era agradável e o lugar encantador.


Shion observava o chão coberto de pó e folhas secas do que seria sua nova casa. Algumas aberturas estavam danificadas, os vidros haviam sido quase todos quebrados e o telhado precisava ser concertado. As paredes, tanto internas quanto externas, pareciam implorar por uma pintura. Os móveis estavam todos lá dentro, precisando de reparos e de polimento urgente. O jardim estava um verdadeiro desastre, pior que cemitério abandonado.

--Quanto tempo acha que vai levar pra tornar isso habitável? – perguntou a Donko.

--Depende de quanto você quer gastar.

--Para ser sincero, não tenho muito disponível... preciso guardar um pouco para começar os negócios...

--Só vou lhe dar um conselho. Não peça dinheiro ao Abel. Aquele homem não presta, vai cobrar favores seus pelo resto de sua vida se ficar devendo a ele.

--Percebi que ele é um falso interesseiro. Não pretendo pedir a ele mais do que já pedi. Vou mandar a carruagem de volta hoje mesmo. Aprendi e não me meter com esse tipo de gente.

--Faz muito bem. Respondendo a sua pergunta, acho que pode ter tudo pronto em uns dois ou três meses. O carpinteiro é primo da minha mãe, posso falar com ele para que apresse o polimento dos móveis. Com a pintura vai ser mais difícil, dependendo das cores que quiser terá que mandar vir a tinta de fora.

--Acho que não posso me dar a esses luxos. O que tiver na cidade estará perfeito. Aliás, não chovendo dentro da casa e reparando o muro para que os animais não entrem está perfeito para mim.

A simplicidade de Shion encantou o indiano. Pensou que todos os ingleses eram afetados, arrogantes e com mania de grandeza como Abel.

--E a plantação?

--Não faço idéia... A minha vida toda fui comerciante, não entendo nada de chá além das variedades que vendem em Londres e as que não vendem. Nunca vi uma folha de chá no pé.

--Vamos dar uma olhada na plantação quando acabarmos aqui. Está descuidada, mas as plantas são da melhor qualidade. Acho que você vai gostar.

Shion sorriu. Sentia-se muito bem ao lado de seu vizinho, como se fossem velhos amigos.

--É muito difícil de cuidar de uma plantação de chá?

--Não quando se têm pessoas competentes ajudando e quando se trata os trabalhadores com dignidade e respeito.

O comerciante inglês interessou-se pela produção do chá. Donko lhe deu todas as informações a respeito dos cuidados com a planta, que eram relativamente simples, e de como negociá-la para obter lucros exorbitantes. É claro que os lucros de Donko eram destinados em sua maior parte ao bem-estar de seus trabalhadores, com quem os dividia. Ele ficava apenas com o suficiente para manter a casa e continuar a levar a vida à qual estava acostumado.

--Trabalhadores contentes rendem mais – disse a Shion. Os dois saíram da casa e sentaram no pátio interno, sobre um banco empoeirado de pedra. – Sem falar na satisfação de vê-los felizes e levando uma vida digna, sem passar fome, tendo até certos luxos que dificilmente conseguiriam vindos de castas inferiores.

--Castas?

--Aqui a sociedade é dividida em cinco castas. Uma não pode querer mais do que tem direito e ninguém pode mudar de casta, a menos que nasça de novo. Um sistema muito injusto, na minha opinião. Trato todos os meus trabalhadores de forma igual, porque todos são seres humanos. Aqui ninguém trabalha mais do que pode.

--É muito nobre de sua parte. Espero conseguir tratar os meus da mesma maneira.

Antes dessa conversa, Shion sequer podia imaginar-se sentado, comendo na mesma mesa com seus empregados e dividindo seu lucro com eles. Donko falara de uma forma que o fez sentir desumano. Queria mudar, queria ajudar as pessoas se pudesse, como Donko fazia.

--Sabe, Donko, estou adorando esse lugar. A Inglaterra é tão diferente. Tão fria e impessoal perto do calor humano que percebi aqui.

--Fico feliz que esteja gostando. A maioria dos ingleses vem apenas para levar as riquezas embora e nem repara na terra ou em qualquer outra coisa.

--Quero ficar. Reconstruir minha vida nesse lugar. Se depender de mim nunca mais coloco os pés fora daqui.

--Você nem parece inglês – disso rindo. – Voltando as assunto da reforma, se quiser posso pedir à minha mãe que acompanhe sua esposa à cidade, para visitarem a loja de tecidos, escolherem as cortinas, almofadas, roupas de cama.

--Agradeço a atenção, prefiro cuidar disso eu mesmo, com a ajuda de meu filho. Os gostos de Saori são sombrios e caros demais. Não quero minha casa toda cheia de cortinas e almofadas negras.

--Desculpe se sou indiscreto, afinal nos conhecemos apenas há meio dia. Vocês não se dão muito bem, não é?

--Não nos suportamos, seria melhor dizer.

Tinha um sorriso irônico nos lábios.

--Casamento arranjado?

--Pior que isso. Casei com ela porque a amava, mais do que qualquer coisa. Depois que casei descobri que eu amava uma ilusão, e que a realidade em nada se parecia com ela. Saori é uma fanática religiosa das piores, uma mulher seca, amarga que não suporta felicidade ao redor de si. Ela conseguiu arruinar todos os sonhos e sentimentos bons que eu tinha.

Não sabia direito porque estava contando sobre sua vida pessoal àquele homem que mal conhecia. Confiava nele. E precisava desabafar com alguém. Há dezessete anos que sofria em silêncio com aquele casamento fracassado, não conseguia mais guardar tanta amargura dentro de si.

--Sinto muito... Não deve deixar que um amor infeliz arruíne seus sonhos. Pode sonhar de novo. Tem um filho lindo pelo qual lutar, e ainda é jovem, pode reconstruir sua vida.

--Não é tão simples. Sinto-me culpado... todos esses anos tenho deixado que ela crie o menino sozinha. Achei que seria melhor se ele fosse criado bem longe de sentimentos como o amor, para que não sofresse como eu sofri. Foi um grande erro. Saori o atormenta e martiriza de todas as formas porque ele se nega a ser como ela. E eu nunca fiz nada para impedir.

--Nunca é tarde para mudar.

--Tem razão... acho que estou começando a sonhar de novo.

--A Índia faz isso com as pessoas que são capazes de ouvir seus corações. É uma terra mágica.

--E você? Nunca se casou?

--Não. Amei apenas uma vez na vida e foi um desastre completo.

--Por quê? Desculpe, não precisa responder se não quiser. Creio que estou invadindo sua vida – disse sorrindo sem jeito.

--Você respondeu minhas perguntas, não vejo porque não responder as suas. Porque o pai dela não aprovava. Ele só permitiria se eu me convertesse ao cristianismo e abandonasse minhas crenças por ela. Hoje percebo que não a amava tanto assim, a ponto de renunciar a tudo em que acredito. Nós... fomos amantes por um tempo. Então ela ficou grávida e o pai descobriu. Ele a trancou em casa até a criança nascer e depois a mandou de volta para a França, que era onde morava a família. Nunca mais soube dela.

--E a criança?

--O pai dela me disse que nasceu morta. Eu não acredito que tenha sido assim. Você viu o Shaka? – perguntou sorrindo.

--Pensei que fosse seu filho quando ele entrou no forte.

--Não só você. Ele foi abandonado no templo na mesma época em que meu filho nasceria. A mãe dele tinha cabelos louros, o que não era nada comum por aqui há quinze anos. E minha mãe cisma que ele tem os olhos azuis da família dela.

--Se me permite dizer, ele se parece muito com você.

--Eu amo aquele menino. Apesar de não ter nada que prove minha suspeita, meu coração sabe que ele é meu filho.

--Por que você o deixou no templo?

--Porque ele é bem cuidado lá. Saga e o irmão dele, Kanon, o amam tanto quanto eu. Ele está seguro, está recebendo uma educação excelente. E podemos nos ver sempre.

--É um garoto maravilhoso.

--Seu filho também. Eles parecem estar se dando muito bem.

--Fico feliz com isso. Lune nunca teve amigos. Sempre foi um garoto muito só, vivia escondido entre livros que Saori não queria que ele lesse e as orações que ela o obrigava a fazer durante o dia todo. E apesar disso, nunca o ouvi reclamar.

--Não se importa de Shaka ser quase monge de um templo que, segundo a religião de vocês, é pagão?

--Não conheço muito bem as crenças do templo, então não posso julgá-lo. De qualquer forma, não acho que seja ruim para meu filho. Essa é a terra dele agora, quero que a conheça e Shaka pode ajudar.

--Você realmente não parece inglês – riu Donko.

Estava mais encantado com Shion a cada minuto.

--Está ficando tarde, melhor olharmos a plantação e voltarmos. Não é bom andar por essas estradas durante a noite.

--Vamos – disse Shion. – Eu só queria pedir desculpas pela Saori. Ela tem esse gênio ruim e não sabe medir as palavras.

--Não precisa se desculpar. Eu é que tenho que pedir desculpas por ter sido tão intrometido com minhas perguntas.

--Não foi. Agradeço pela conversa, eu estava precisando – sorriu.

--Quero que saiba que já o considero um amigo, Shion.

--Obrigado. Também o considero um amigo.

Donko lhe estendeu a mão e ele apertou. Sentiu a mão de Shion, gelada e branca como a neve da montanha entre a sua. Ele tinha mãos de quem nunca segurara nada além de livros e papéis e uma pena para escrever, mãos delicadas e finas que Donko queria segurar entre as suas e não soltar antes de estarem aquecidas. Muito diferentes das suas, que estavam calejadas pelo trabalho no campo e eram quentes. O comerciante gostou do toque. O calor das mãos do indiano parecia lhe aquecer a alma.


A noite caíra nos arredores de Calcutá. Em uma das muitas janelas da casa de Donko um garoto de cabelos cor de lavanda olhava as estrelas. Fora um longo dia, cheio de novidades e surpresas. Fechou os olhos, apreciando o vento leve que acariciava seu rosto. A lembrança do beijo voltou tão vívida que podia sentir os lábios de Shaka sobre os seus. Não sabia direito o que estava sentindo. Só sabia que o queria perto de si. Queria ouvi-lo cantar, segurar sua mão e sentir seus lábios novamente.

Foi arrancado de seus devaneios pela costumeira batida ríspida na porta. Estava demorando a recomeçar o pesadelo. Abriu a porta para encontrar a mãe vestida de negro como sempre, parecendo um urubu com cara de poucos amigos. Ela o empurrou para o lado, entrou e trancou a porta.

Sem nada dizer, Saori tirou um pequeno embrulho do bolso do vestido e despejou o conteúdo no chão. Grãos de milho. Era previsível que ela não fosse tentar nada mais agressivo na casa de estranhos. Estendeu o Livro de Orações ao filho.

--Ajoelhe-se. Está na hora de expiar os pecados que cometeu por todo esse tempo. Durante a viagem o Inimigo foi astuto e me impediu de puni-lo, mas isso acabou. Ajoelhe-se e peça perdão.

Enquanto fosse milho ele não ia reclamar. Ajoelhou e começou a ladainha de sempre. A certa altura não sabia mais o que dizia. Só conseguia pensar nos lábios de Shaka e em como seria bom beijá-lo novamente. Sabia que era um pecado punido com a morte na fogueira na Inglaterra. Não estava mais na Inglaterra. E, ainda que estivesse, nada faria para tirar de seu coração aquele sentimento tão bonito.


Lia um volume de capa negra à luz das velas. Viu um par de olhos azuis entrarem segurando uma pequena lamparina. Fez sinal para que se aproximasse e deitasse com ele. Largou o livro, voltando sua atenção para o menino. Donko esperou que começasse a falar. Ele nada disse.

--Algum problema, Shaka? – perguntou em um tom gentil e atencioso.

--Não sei se é um problema. Eu queria conversar.

--Pode falar.

--É que... acho que estou gostando de uma pessoa...

--É o Lune, não é?

--Como você sabe? – virou-se para Donko, surpreso.

--Conheço você, Shaka. Percebi que o olha de um jeito diferente, que seus olhos brilham quando está perto dele. Além disso, você não o largou o dia todo e fica vermelho com quase tudo o que ele te fala.

--E isso é ruim?

--Amor verdadeiro nunca é ruim.

--Como vou saber se é amor verdadeiro?

--Pergunte a seu coração. Abriria mão de qualquer coisa pela felicidade dele, inclusive da sua própria?

Shaka pensou um pouco, sua expressão era indecifrável. Pergunta difícil e séria a que Donko lhe fizera.

--Se fosse pra ele ficar feliz, acho que sim... De que adiantaria eu estar feliz se ele fosse sofrer? Não quero que nada de ruim aconteça a ele.

--Mesmo que ele ame outra pessoa ou nunca chegue a sentir por você o que sente por ele?

--Mesmo assim – respondeu firmemente.

Donko sorriu. Pensou na mesma pergunta que fizera a Shaka. Talvez ele não amasse realmente aquela mulher que entrara em sua vida tantos anos antes. Não fora capaz de renegar suas crenças e aceitar as francesas, apesar de saber que seria a única maneira do pai dela o aceitar como genro. Não. Amor de verdade é muito maior. Aquilo foi só um arrombo de adolescente. Só se ama de verdade uma vez na vida e nunca mais se esquece. Ela já foi esquecida.

--Que foi? Eu disse alguma coisa errada? – perguntou o menino confuso.

--Não. Fico muito feliz por você, Shaka. Seu primeiro amor não poderia ser mais sincero e verdadeiro.

--Eu beijei ele – confessou timidamente.

--Shaka! E eu pensando que você era inocente... deve ser a convivência com o Kanon...

--O que tem o Kanon?

--Nada – disse Donko, desviando o assunto. Toda Calcutá sabia da fama de tarado que o mestre do templo do oeste possuía, embora não soubessem o porquê dessa fama. – Me explique direito essa história de beijo.

--Foi pra cumprimentar.

--Você sabe que os ocidentais não cumprimentam assim – disse franzindo a testa.

--Mas apertar a mão é tão sem-graça... E que queria tanto beijar ele... Aí fingi que não sabia...

--Isso é coisa que se faça, Shakyamuni?

--Eu juro que não foi por maldade, Donko. Mal toquei os lábios dele... e me senti no paraíso. Eu só... não sei o que deu em mim... Sei que foi errado, que eu não devia ter mentido pra ele... vou pedir desculpas... eu acho – enrolou-se procurando palavras, sem conseguir dizer o que queria.

--Espero que peça sim.

--E você? – perguntou com um sorriso nos lábios.

--Eu o quê?

--Você gostou do pai do Lune, não gostou?

--Oras, Shaka! Isso é jeito de falar? O pai do Lune é casado.

--Grande coisa. Duvido que ele goste daquela chata metida.

--Definitivamente você tem que parar de conviver com o Kanon...

--Não fuja do assunto, Donko! Eu vi! Você gosta dele sim.

--Shaka...

--Quê?

--Vai dormir e esquece esse assunto – disse batendo com o travesseiro na cabeça de Shaka de brincadeira. O garoto riu.

--Ta bem. Mas que você gosta, isso gosta.

Ele saiu antes que Donko pudesse lhe acertar outra travesseirada. Shaka tinha razão. Estava gostando de Shion. Muito mais do que deveria. Não via mal nenhum em amar outro homem. No entanto, era preciso pensar duas vezes antes de deixar um sentimento como aquele por um inglês, casado e puritano, desenvolver-se e se tornar algo mais sério. Deitou e apagou as velas, tentando apagar também a imagem daquele anjo que povoava seus pensamentos.


Radamanthys havia sumido depois de tomar um bom banho e vestir a melhor roupa que tinha. Pegara o cavalo de Shion emprestado e fora cuidar de seus próprios interesses, o que certamente envolvia mulheres e algum bar de quinta categoria onde pudesse achar qualquer coisa forte para beber. Não precisou procurar muito pelos becos de Calcutá para encontrar o que desejava.

Estava em um botequim chamado Chalak Chalak (3), que em hindi queria dizer Espirrar Espirrar. Encontrara um grupo de marinhos ingleses que o havia apresentado tão simpático lugar e bebia com eles. Uma mulher das mais baratas e vulgares sentava-se em seu colo.

Estava tão bêbado que enxergava as coisas dobradas e começava a achar que entendia a língua engraçada que os habitantes locais falavam. Não sabia que bebida era aquela. Com certeza era da boa. Não precisara de mais que três garrafas para ficar bem alegre.

Ele merecia. Depois de cinco meses trancado em um navio sem uma única mulher além da tia carola que, obviamente, jamais agarraria, precisava de uma farra daquelas. Como em todos os lugares, havia um grupo de músicos tocando. Tanto a letra quando a melodia eram alegres.

Meteu-se a dançar junto com os outros, passando vergonha. Não sabia os passos, para não dizer que não conseguia parar de pé. A sexta garrafa foi demais para ele, que caiu desacordado no chão.

Para sua sorte, um dos homens era marinheiro do Star Hill e sabia que ele estava hospedado na casa do senhor Desai. Foi levantado e colocado no cavalo. Não era nada bom andar pela trilha da mata à noite. Ele não podia dormir no boteco, então resolveram arriscar. Nem Donko nem Samia gostaram de serem acordados de madrugada e receberem um bêbado em estado lastimável, esperavam que fosse a primeira e a última vez.


Notas:

1- Kali é um dos avatares de Parvati, esposa de Shiva, transformada na mais terrível deusa do Hinduísmo. É a divindade que atua na eliminação do Ego, mostrando que tudo é temporal. Aparece sempre carregando vários crânios nas mãos, para lembrar aos homens a mortalidade de si mesmos. Sua imagem mais conhecida apresenta-se coberta de sangue, com a língua para fora e envolta em cobras.

2- Essa prece é mais uma das minhas invenções doidas. A idéia de soprar a concha pra agradecer vem dos incas, que sopravam uma concha, virando-se para os quatro pontos cardeais para agradecerem pela fertilidade da terra. As 108 repetições são feitas pelos hindus e budistas várias vezes por dia, podendo variar de acordo com a escola que seguem e a região em que moram.

3- Chalak Chalak é o nome de uma música da trilha do filme Devdas. O clipe dela foi gravado em um bar indiano, muito parecido com o que eu imaginei pra esse bar que o Radamanthys freqüenta.

Os pais de Donko, William e Samia são personagens originais criados por mim com a ajuda da Yumi Sumeragi.

Muito obrigada a Litha-chan (Nhaaaa! Eu tenho fãs! #toda boba# Obrigada mesmo pelos elogios, fico muito feliz que vc esteja gostando tanto das fic! Shion logo vai começar a acabar com a alegria da Saori! Sim, Shaka é o mais saidinho dos três, afinal ele foi criado pelo tarado do Kanon XD Não sei exatamente qual a cor dos cabelos do Lune, pq não cheguei a ler o mangá, aí achei uma imagem linda dele com os cabelos lavanda e resolvi colocar assim) e Ia-Chan (Saori é uma mala, Shion não vai aturar ela por muito mais tempo XD Tb fiquei com pena do fofinho do Mu, mas logo ele vai chegar feliz e a salvo no templo e vai encontrar o Shaka e o Lune! Espero que goste desse cap!) pelas reviews e a Yumi Sumeragi por me aturar e ter tanta paciência com as minhas loucuras!

Agradeço também a quem está lendo e é tímido pra comentar, tia Bella também adora vcs! E lembrem-se: façam uma boa ação, comentem a fic e deixem uma escritora feliz! Digam se está bom, se está ruim, fiquem a vontade pra falaram qualquer coisa!

No próximo capítulo... Shion vai chutar a Saori? Shaka vai contar a verdade pro Lune e dizer que gosta dele? Radamanthys vai encontrar o caminho de casa? Coisas estranhas começam a acontecer. Próxima atualização: sábado que vem. Beijinhos da tia Bella!