Capítulo 6 – Conversas e Folhas de Chá, parte II

Uma semana havia se passado desde a chegada da família Heathcliff à Índia. Shion estava morto de vergonha pelo comportamento de Radamanthys, tinha repreendido o sobrinho e o feito jurar que não tomaria outro porre nem voltaria para casa de madrugada enquanto estivessem hospedados na casa de Donko. Saori continuava a se achar a dona da casa e estava esgotando a paciência de Samia.

A casa de Shion começara a ser reformada. O jardim estava quase pronto. O telhado e as aberturas estavam trocados e a tinta começara a ser aplicada no interior. As paredes externas, em pedra cinza, mostraram-se muito bonitas depois de limpas e não precisariam ser pintadas. Shion acabou o café e pediu a Donko que fosse com ele à cidade para ajudá-lo com o que faltava.

Sua digníssima esposa foi com eles para se enfiar na igreja. Estava furiosa porque o marido devolvera à carruagem e teve que ir a cavalo. Parou de reclamar depois que ele lhe disse que uma boa cristã não deveria exigir luxos que seu marido não podia pagar. Não gostara nada de saber que ele não a deixaria cuidar dos detalhes do novo lar.

Entrou na igreja sem olhar para trás. Queria rezar e pedir perdão por toda a raiva que estava sentindo e encontrar o ministro para falar de seu filho. Precisava de alguém que a ajudasse a libertar Lune do espírito maligno que estava em seu corpo.

Encontrou o consolo que precisava no sacerdote que tomava conta da pequena catedral. O pastor Tatsumi parecia ser tão dedicado às causas religiosas quanto ela própria e ficou particularmente interessado no caso de Lune. Dizia-se especialista em exorcismos, por isso viera realizar sua missão naquela terra ímpia aonde o mal parecia ser senhor absoluto.

--Fique tranqüila, irmã, libertaremos seu filho desse mal de uma vez por todas – disse ele levantando-se e indo cuidar dos negócios da igreja. – Reze e peça ajuda aos Céus, ela será de extrema necessidade. Que Deus a abençoe e a acompanhe de volta a seu lar.

Ela agradeceu. Ajoelhou-se e voltou a rezar. Ia precisar de muita oração. Conseguira um poderoso aliado em sua luta contra o Maligno. O reverendo era a segunda autoridade britânica na Índia, sendo inferior apenas ao representante da Companhia. Shion não poderia detê-la nem ficar contra ela. Sua vitória era certa.


Próximos à catedral, Donko e Shion andavam pelo mercado. Era uma espécie de calçadão de pedras cinzentas, apinhado de barraquinhas que vendiam desde jóias preciosas e tecidos caros a temperos e incensos. Uma em especial chamou a atenção de Shion. Estava cheia de estatuetas diferentes e exóticas. Donko explicou que eram os deuses do hinduísmo, os mesmo que a Tradição dos Templos Gêmeos seguia.

--Cada um dos deuses tem uma finalidade, características que representam e símbolos próprios. Todos eles são parte do Brahman (1), a essência universal, a Força Maior que criou a Divina Trindade e a encarregou do universo.

--A Divina Trindade?

--São os três deuses principais. Brahma, o criador, Vishnu, o preservador e Shiva, o destruidor e libertador. Eles, junto com Kali, deusa da fertilidade, são responsáveis pela manutenção do Dharma. Dharma é a ordem natural do mundo. Se ele for quebrado, o caos toma conta do universo, podendo levar ao fim de tudo. De tempos em tempos, o Dharma é ameaçado por demônios malignos que o querem destruir para dominar o mundo. Os Templos acreditam que nessas épocas a Divina Trindade envia seus espíritos para combaterem os demônios e impedirem que o mundo seja atingido.

--Não é muito diferente do cristianismo. Eu, particularmente, acho que ambas são formas de servir o mesmo Deus. E este aqui? – perguntou curioso, segurando uma estátua com cabeça de elefante.

--É Ganesh (2) está na porta de quase todas as residências. Na minha casa há um santuário para ele perto do portão de entrada. Ele é considerado o removedor de obstáculos, tanto materiais como espirituais. Escolheu muito bem, é o protetor dos negócios – disse sorrindo.

--E este outro? Parece que o vi em sua casa...

--É Krishna, um dos avatares ou reencarnações de Vishnu. É a divindade do amor, ajuda na luta contra todos os demônios, internos e externos. Tem força, poder e piedade. O tom azulado da pele representa o infinito. Há um livro que fala sobre ele, onde ele próprio se intitula como "o amor puro dos amantes, que lei nenhuma pode separar".

Shion corou com a frase. Donko também.

--Acho que Lune ia gostar...

Shion pegou uma imagem de Ganesh e duas de Krishna, uma para seu escritório e outra para Lune. Ficou em dúvida ao ouvir o preço. Não podia se dar ao luxo de gastar tanto.

--Deixa, eu pago. Como um presente de amigo – acrescentou vendo que Shion ia recusar.

--Obrigado. Espero poder retribuir em breve.

--Tem uma casa de chá ao estilo inglês perto daqui. Podemos almoçar lá e depois procurar o carpinteiro para ver dos seus móveis.

--Tudo bem. Depois disso só vão faltar as cortinas, roupas de cama, almofadas e tapetes. O restante eu trouxe de Londres. Quero ver como vai ficar minha casa, não tenho muito jeito para lidar com essas coisas – riu.


O sol do meio-dia batia sobre as águas do lago e formava pequenos arco-íris com as gotículas de água da cachoeira. Shaka e Lune estavam sentados na grama. O inglês trazia um exemplar de Romeu e Julieta nas mãos e lia em voz alta.

--O que chamamos rosa, sob uma outra designação teria igual perfume. Assim Romeu, se não tivesse o nome de Romeu, conservaria a tão preciosa perfeição que dele é sem esse título. Romeu, risca teu nome, e, em troca dele, que não é parte alguma de ti mesmo, fica comigo inteira.

Shaka sorriu e corou. Gostaria de ter Lune inteiro para si. Tomou o livro de suas mãos e continuou ele mesmo a leitura, pela fala de Romeu que se seguia.

--Sim, aceito tua palavra. Dá-me o nome apenas de amor, que ficarei rebatizado. De agora em diante não serei Romeu.

Foi a vez de Lune sorrir e entrar na brincadeira.

--Quem és tu que, encoberto pela noite, entras em meu segredo?

--Por um nome não sei como dizer-te quem eu seja. Meu nome, cara santa, me é odioso, por ser teu inimigo; se o tivesse diante de mim, escrito, o rasgaria.

--Minhas orelhas ainda não beberam cem palavras sequer de tua boca, mas reconheço o tom. Não és Romeu, um dos Montecchios?

--Não, bela menina; nem um nem outro, se isso te desgosta.

--Dize-me como entraste e porque vieste. Muito alto é o muro do jardim, difícil de escalar, sendo o ponto a própria morte - se quem és atendermos - caso fosses encontrado por um dos meus parentes.

--Do amor as lestes asas me fizeram transvoar o muro, pois barreira alguma conseguirá deter do amor o curso, tentando o amor tudo o que o amor realiza. Teus parentes, assim, não poderiam desviar-me do propósito (3).

Shaka olhava-o nos olhos, falando com uma firmeza como se fosse o próprio Romeu. Lune engoliu em seco e fechou o livro. Estavam muito próximos um do outro. Olhou para os lábios de Shaka, querendo tê-los entre os seus novamente. O outro percebeu e sorriu.

--O que foi? – perguntou Shaka, vendo que Lune tinha fechado o livro. Tirou alguns fios de cabelo que caiam sobre o rosto de Lune, tendo o cuidado de tocar a face dele com a ponta dos dedos.

Cada gesto, cada palavra, cada olhar Shaka estavam carregados de amor. Percebera no primeiro olhar que trocaram. Aquele garoto o amava acima de tudo. E era correspondido na mesma medida.

A confusão havia passado. Somente certezas povoavam seu coração. A certeza de que amava Shaka. A certeza de que queria ficar com ele pelo resto daquela vida e por todas as outras. A certeza de que nada nem ninguém poderiam arrancá-lo de sua alma. Pousou sua mão sobre a de Shaka que estava em seu rosto. Os dedos entre os seus pareciam feitos de veludo.

--Nada... Vamos almoçar? – acrescentou ouvindo os sinos tocarem ao longe, chamando todos para a refeição do meio-dia.

Levantou e puxou Lune pela mão, fazendo com que ficasse de frente para si. Depositou um beijo em seu rosto. Foi abraçado por Lune, que deitou a cabeça em seu ombro, beijando-lhe o pescoço de leve, provocando-lhe um arrepio involuntário.

--Vamos. Senão ficaremos sem comida – riu Shaka.

Chegaram ao pátio onde estavam as mesas de mãos dadas. Trocavam olhares de quando em quando. Nenhum conseguia tomar a iniciativa e se declarar. Não precisavam apressar as coisas, melhor deixá-las acontecer em seu tempo certo. Samia sentou-se ao lado dos dois, não podendo deixar de notar o que se passava entre eles. Estava feliz por Shaka. Queria que seu filho agisse da mesma maneira e parasse de tentar esconder o que sentia.


As portas de vidro da Tea Leves abriram-se, fazendo ser ouvido o barulho de uma sineta de prata. Donko e Shion entraram e pediram o almoço. O indiano não gostava muito de comida inglesa, achava-a insípida e sem tempero. Antes o ambiente formal e respeitado e a comida ruim da Tea Leves do que a baderna do Chalak Chalak. Não poderia levar um homem como Shion àquele botequim, por melhor que fosse a comida de lá.

--Folhas de chá... gostei do nome – comentou Shion, sentando-se em uma das cadeiras estofadas em seda verde-clara. – Ainda mais agora que já sei como é uma folha de chá.

Os dois riram. O coração de Donko enchia de alegria ao ouvir o riso de Shion. Ele não queria sentir o que estava sentindo. Seu desejo era esquecer. Não podia deixar que aquele sentimento bom e agradável que o fazia adorar a companhia do outro, se transformasse em amor. E por acaso já não era amor?

--Shion, o que você pensa em fazer de seus negócios? – perguntou achando uma desculpa para manter os olhos fixos naquelas duas ametistas tão tristes.

--Não sei muito bem por onde começar. Pensava chegar e contar com a ajuda do representante da Companhia. Tinha como certo que seria uma pessoa de bem. Abel não é nada confiável... o que me deixa sem saber que rumo tomar. Não sei como as coisas funcionam por aqui.

--Posso afirmar que não é tão simples quanto te falaram na Inglaterra. Não sem a ajuda do Abel. Há vários exportadores que trabalham para a Companhia, eles compram de pequenos produtores a preços miseráveis e revendem à quantias absurdas. Mas é o Abel que cuida dos contatos, que faz o intermédio entre os compradores e os vendedores.

--Quer dizer que não tenho chance sem ajuda dele?

--Não exatamente. Os sócios da Companhia pagam uma anuidade para pertencerem a ela. Se você pagar como deve, Abel não poderá impedi-lo de agir como bem entender. Só precisa ser um pouco mais rápido que ele e procurar as pessoas certas.

--Durante a viagem eu pensava em abrir um escritório aqui na cidade, para facilitar as coisas. Acha que é uma boa idéia?

--Muito boa. Especialmente se o abrir perto do porto, no caminho do forte Saint William. Assim os ingleses que chegarem em busca de mercadoria passarão antes por seu escritório. Será uma vantagem muito grande para você.

--Preciso ver isso também... e os plantadores de chá? Irão confiar em mim?

--Você não precisa deles, Shion. Tem uma plantação de chá quase tão grande quanto a minha. E poderá negociá-la ao preço que quiser. Coloque o preço três libras a menos que os outros e vendera tudo antes que eles notem o que você fez. É a tática que eu uso e nunca tive problemas. Sabe que pode contar com a minha ajuda, para o que precisar.

--Obrigado.

--Fico feliz em ajudar. Não vai buscar sua esposa para almoçar? – perguntou lembrando-se de Saori que estava na igreja.

--Ela acredita que o jejum purifica a alma, vamos deixá-la jejuar e rezar. Assim ela nos deixa comer em paz – disse com a voz carregada de amargura.

--Shion, desculpe a intromissão, mas se as coisas chegaram a esse ponto, por que não se separa dela? A religião de vocês permite isso, não é?

--Porque ela é a mãe do meu filho. De acordo com as leis da Igreja, se nos separamos Lune fica aos cuidados dela. Tenho medo do que ela pode fazer... não quero que meu filho sofra mais do que já sofreu.

--Entendo. Não há jeito de vocês se entenderem?

--Não. Não sinto mais nada por ela. A amargura e a indiferença dela secaram meu coração.

--Não diga isso. Você é jovem, pode se apaixonar novamente.

Donko tocou de leve a mão de Shion que estava sobre a mesa, recuando ao perceber o que fazia. Shion sentiu um calor agradável invadi-lo. Tinha vontade de prender aquela mão na sua e pedir que Donko o ajudasse a esquecer toda aquela dor.

Durante a viagem, quando não tinha o trabalho para distraí-lo, Shion sentiu o peso da solidão cair sobre si, a falta que fazia um abraço, um beijo, palavras amigas em uma hora difícil. Sentia-se frágil. O muro de fria indiferença que criara em torno de si havia desabado dentro do mar. Não conseguia manter o comportamento sisudo e amargurado de sempre, não conseguia abster seu coração de sentimentos e ser forte.

Toda essa fragilidade parecia transparecer em seus olhos, unida a uma profunda tristeza. Levantou os olhos para encarar os de Donko. Não entendia aqueles sentimentos confusos que tomavam conta de si. Aquela ternura que o invadia quando olhava o indiano, a vontade de ficar perto dele, de abraçá-lo e se perder naquele abraço. Deus, por favor, me faça esquecer. Não posso sentir isso por outro homem... é um pecado punido com a morte... isso não pode estar acontecendo comigo.


Afastou as cortinas cor-de-vinho que pendiam atrás da mesa de mogno. Uma pequena porta com fechadura de prata apareceu. Apressou-se em tirar a chave do bolso da casaca e afundar-se na escuridão que passava pelo vão da porta aperta. Acendeu algumas tochas e o interior de uma sala de paredes de pedra fria pode ser vislumbrado.

Um altar de pedra negra encontrava-se ao fundo. Sobre ele descansava a estátua do mais terrível demônio existente nas crenças indianas. Acendeu os incensos que estavam sobre o altar e chamou por seu mestre, torcendo para que não demorasse a aparecer. A imagem passou a emitir o conhecido brilho das aparições, um vento soprou e as velas se apagaram.

--Encontrei os dois, mestre – disse o homem que entrara há pouco. – E meu informante afirmou que um dos mestres do Templo partiu há uma semana. Ninguém sabe para onde foi. Desconfio que tenha ido buscar o terceiro. Aguardo suas ordens.

Minutos se passaram como se ouvisse palavras sussurradas em seu ouvido.

--Entendido. Vou providenciar para que tudo saia como deseja. Se o monge estiver indo atrás do garoto, chegará tarde demais para encontrá-lo com vida. Suas sombras farão o trabalho que ordena. Volto assim que tiver notícias para receber ordens quanto aos outros dois.

Fez uma reverência e esperou sua recompensa. A luz avermelhada que brilhava em torno da imagem de Ravana, pois era este o demônio sobre o altar, passou a seu corpo. Caiu no chão com um grito que provavelmente não seria ouvido além das paredes de pedra. Ao levantar-se mais um pedaço de sua alma humana estava morto, o poder de Ravana invadia aos poucos seu corpo e seu coração, eliminando seu verdadeiro espírito e se apossando dele sem que percebesse.

Mal sabia que o poder sobrenatural que julgava receber como recompensa pelos favores que fazia ao mestre nada mais era que a alma de Ravana tomando posse de seu corpo. Saiu, certificando-se de que não havia ninguém na sala contígua, e voltou aos afazeres do dia.


Os raios de sol do fim de tarde refletiam os tons rosados e azuis das cortinas e almofadas. Os risos de três pessoas ressoavam pelos corredores da casa de Donko Desai. Na sala, sentados sobre o fino tapete trazido da Pérsia, estavam Samia, Shaka e Lune. Entre os garotos estava um tabuleiro retangular de madeira nobre, com doze buracos, distribuídos em duas fileiras de seis buracos cara uma. Nas extremidades menores encontravam-se duas cavidades cheias de pequenas pedras preciosas.

Shaka e Samia tentavam ensinar ao garoto inglês um popular jogo indiano, o chamado Mancala (4). Era um jogo que exigia concentração e raciocínio, onde as pedrinhas eram distribuídas igualmente entre os doze buracos, para depois serem colhidas pelos jogadores. Lune estava um pouco atrapalhado, este era o motivo das risadas.

Passos pesados subiram a escada. Saori apareceu na porta mais morta do que viva, seus joelhos doíam e o estômago roncava de fome. Desde o café da manhã não comia nada. Não podia reclamar. O jejum lhe faria bem à alma.

--Alguém me traga um copo d'água! – ordenou.

Samia já não agüentava mais aquela estranha dando ordens em sua casa. Shion era um amor de pessoa, Lune era tão gentil e educado quanto o pai, Radamanthys não causara mais problemas depois daquela madrugada em que chegara bêbado, somente ela insistia em ser descortês ao extremo.

--A senhora sabe o caminho da cozinha, por que não vai lá e pega? – disse Samia com um sorriso irônico nos lábios.

--Lune, você vem comigo. Precisa rezar e pedir perdão pelos pecados que com certeza cometeu em minha ausência – bufou explodindo de raiva. Estava pronta a descontar toda a raiva no filho para deixar seu coração em paz novamente.

--Oras, Saori! Lune ainda é uma criança, não pode ter tantos pecados assim. E ele vem comigo, precisamos conversar – disse sorrindo para o filho.

Saori saiu pisando fundo. Queria ir logo para sua casa. Definitivamente aqueles selvagens precisavam aprender a ter respeito com seus superiores.

--Desculpem... eu realmente sinto muito pelo comportamento dela.

--Você não tem culpa, Shion – disse Samia. – Cada um é responsável pelos seus próprios atos, e somente por eles. Não procure assumir a culpa pelas grosserias de sua esposa.

--Agradeço a compreensão. Vamos Lune?

O menino levantou e segurou timidamente a mão que o pai oferecia. Ainda não se acostumara àquelas demonstrações de afeto por parte de Shion. Foram para seu quarto, fechando a porta atrás de si. Shion sentou na cama e tirou um pequeno embrulho de dentro do casaco.

--Isto é para você. Um presente de Donko, agradeça a ele depois.

Não precisava explicar a Lune que gostaria de dar o presente ele mesmo, mas não tinha dinheiro para pagar. Uma das poucas coisas que sabia sobre o filho era que não precisava de palavras para que ele o entendesse. Somente um olhar bastava.

--Krishna... é lindo pai... Obrigado.

--Se sua mãe perguntar, diga que fui eu que te dei. Para evitar que ela arrume mais confusão.

--Não se preocupe, ela não vai ver – disse sorrindo.

--Lune, sei que não tenho sido um pai muito presente. Que dei a você disciplina e indiferença quando deveria ter dado carinho e atenção. Quero que saiba que se fiz isso foi porque achava que seria o melhor para você...

--Eu sei. Não estou cobrando nada. O senhor não precisa explicar.

--Eu estava errado. Não deveria ter agido assim, nem deixado que sua mãe o castigasse da maneira que sempre fez. Não quero que sofra... você é... muito importante para mim – disse de vagar. Era um pouco difícil conversar tão abertamente com Lune.

--Eu amo o senhor, pai...

Lune sentou no colo de Shion e o abraçou. Por anos tinha desejado um contato assim. Sentia muita falta do pai.

--Quero que saiba que estou aqui para o que precisar.

--Pai... se por acaso o senhor se apaixonar por outra pessoa, eu não vou ficar contra. Quero que o senhor seja feliz e sei que não é ao lado da minha mãe.

--Lune... – ia dizer que ele estava enganado, que não ia se apaixonar novamente. Foi interrompido.

--É só pro senhor saber. Não vou ficar contra de maneira nenhuma. Seja quem for a pessoa que o senhor amar, vou estar ao seu lado.

Dizia isso pensando em Donko. Tinha certeza que ele e seu pai eram almas gêmeas, mais cedo ou mais tarde teriam que se acertar. Não queria que esse momento fosse adiado por Shion achar que ele não aprovaria esse tipo de relação. Quem sou eu pra condenar meu pai, estando apaixonado como estou por outro garoto? Queria mais que ele fosse feliz ao lado de Donko que era um bom homem e o amava de verdade.


--Vai ficar aí parado na porta, Donko? – perguntou Samia ao ver que o filho não se movia.

Donko soltou um suspiro e foi cumprimentar a mãe e Shaka, que permaneciam na sala. Pensava incessantemente em Shion. Na maciez de sua pele, em como seria tê-lo sussurrando palavras de amor em seu ouvido, em como seria beijá-lo.

--Está distante outra vez. Não vai me contar o que acontece com você?

--Não é nada, mãe – sorriu sem-graça.

--E esse nada por acaso se chama Shion? – insistiu ela.

Ele baixou os olhos e sorriu, sem conseguir negar. Puxou uma almofada e sentou ao lado da mãe e do garoto.

--Não consigo esconder nada de vocês dois, não é?

--Nem teria porque esconder. Somos sua família, filho.

--Já falou com ele? – perguntou Shaka curioso.

--Não... Shion é ocidental, e nós sabemos muito bem o que os ocidentais acham desse tipo de amor. Ele jamais aceitaria algo assim.

--Nós não escolhemos o amor, ele nos escolhe e simplesmente acontece. Negá-lo é escolher o caminho do sofrimento eterno. Se o amor o escolheu para Shion, não negue.

--Eu não nego. Não adianta negar.

--O que pensa em fazer?

--No Templo me ensinaram que a missão daqueles que amam é lutar pela felicidade da pessoa amada. É cuidar dela e fazê-la feliz, mesmo que o sentimento nunca seja correspondido. É o que eu vou fazer. Cuidar para que ele seja feliz, mesmo que seja longe de mim e que ele nunca me corresponda.

--Ele gosta de você, Donko – disse Shaka sério. – Eu vi nos olhos dele. Só que tem medo de assumir porque acha que é pecado. Ele não vai ser feliz longe de você. Ele te ama.

--Se ele me amasse... tudo estaria contra. Ele tem princípios diferentes dos nossos. Tem uma esposa da qual não pode se separar, um filho que talvez não aceite...

--Lune não vai se opor.

--Como você pode ter certeza, Shaka?

--Ele sabe que vocês se amam, se fosse contra já teria dito.

--Como assim ele sabe? – perguntou Donko muito surpreso.

--Lune pode sentir o que as pessoas sentem quando olha nos olhos delas.

Samia e Donko se entreolharam. Um estrangeiro com poderes sobrenaturais era algo a se levar em consideração.

--Eu não devia ter dito isso...

--Por que não, Shaka?

--Porque ninguém mais sabe. A mãe dele vai querer matá-lo se descobrir.

--Não se preocupe, ela não vai saber – tranqüilizou Samia. – E quanto a você, Donko, pare de complicar as coisas. Se ele te ama não há porque não lutar por esse amor. Tudo o que precisa é ter um pouco de paciência com ele.

E teria. Donko estava disposto a ter toda a paciência do mundo. Não se convencera de que a suposição de Shaka estava certa. O menino poderia ter se enganado. Shion podia sentir por ele uma grande amizade, um carinho de irmão. Qualquer coisa ao invés de amor. Preferia não imaginar o inglês correspondendo seus sentimentos. Caso acreditasse e estivesse enganado, suportar a decepção estaria além de suas forças.


As horas escoaram lentamente. O sol veio encontrar Lune dormindo profundamente. As cortinas da janela aberta tremulavam com a brisa que passava por ela. Pássaros cantavam na tamareira do lado de fora. O rangido da porta sendo aberta fez com que ele se mexesse.

Shaka entrou se deparando com o que, para ele, era a mais sublime aparição do amor. Os lençóis de linho enrolavam-se pelo corpo do garoto adormecido. Deitava-se de lado, com a mão esquerda sobre o travesseiro bordado. O torso e a perna esquerda escapando para fora das cobertas. Um sorriso inocente brincando nos lábios rosados.

Ajoelhou-se ao lado da cama. Sua mão foi encontrar a pele aveludada do inglês, subindo em uma caricia casta até onde o lençol começava a encobri-la. Mordeu o lábio inferior apreciando a sensação. Os olhos violeta se abriram para encarar os dois lagos de azul cristalino que estavam diante de si.

--Bom dia, Lune. Dormiu bem? – perguntou acariciando o rosto do outro.

Adorava aquele tipo de carícia. A mão de Shaka quente e macia sobre seu rosto. As respirações próximas. Pendeu o pescoço, aumentando o contato e sorriu deliciado.

--Sonhei a noite toda – respondeu.

--Sonhos bons?

--Sonhos lindos – disse sentando e puxando Shaka para cima da cama.

--Você é lindo – disse dando-lhe um beijo no rosto. Mais um beijo no pescoço e um terceiro no ombro. Ouviu um gemido baixinho. O braço de Lune enlaçou suas costas. Deitou a cabeça em seu ombro, quase sentando no colo do inglês. – Eu tenho que ir, Lune. Mestre Saga veio me buscar.

--Pode pedir pra ele te deixar ficar mais uns dias – mantinha os olhos fechados, sentindo o perfume de sândalo que os cabelos úmidos de Shaka exalavam.

--Não. Ele precisa de mim. É meu mestre e não posso deixá-lo sozinho agora. Deixaria seu pai sozinho se a pessoa que ele ama fosse viajar sem dizer quando voltaria?

--A pessoa que seu mestre ama foi viajar?

--Foi cumprir uma missão muito longe daqui.

--Eu não sabia... Você deve ficar ao lado dele. Vou sentir saudades, Shaka.

--Não sinta. Vá me visitar antes de sentir. O templo do leste não fica longe, pode ir quando quiser. Vá todos os dias – sorriu.

--Eu vou – enrolava uma mexa do cabelo louro entre os dedos.

--Promete?

--Prometo. Por Krishna.

Shaka corou ao ouvir o nome da divindade do amor. Em seu nome os amantes faziam promessas, esperando que a força dele protegesse o amor e o mantivesse vivo.

--Vai ter que cumprir.

--Shaka...

Ia pedir um beijo. Desconhecia o motivo do indiano não mais ter tocado seus lábios. Saga entrou pedindo desculpas pela intromissão.

--Vamos, Shaka?

--Vamos – disse soltando-se do abraço. – Tchau, Lune. Vou esperar você.

Lune segurou-o pelo braço e beijou-lhe o rosto com carinho. Voltou a deitar e fechou os olhos. Saori não o deixaria pisar no templo tão cedo. Suspirou, os dedos brincando com o bordado amarronzado do travesseiro. Guardaria em sua mente o rosto do amado, seu perfume, sua voz.


Sonhos estranhos povoavam seu sono. Sonhos que lhe mostravam um poder oculto dentro de si, uma entidade que repousava esperando ser acordada. Radamanthys acordou assustado. Suava frio e tinha as mãos trêmulas. Vestiu-se com pressa, tomou as armas de caça que trouxera da Inglaterra e pegou o cavalo do tio emprestado.

Recebera permissão de Donko para caçar nos arredores de sua propriedade, desde que não matasse o que não pudesse ser consumido. Precisava ficar sozinho. Nada melhor que andar um pouco entre as árvores, onde outros seres humanos não seriam encontrados com tanta facilidade.

Ouviu galhos se quebrarem à direita. Passos leves demais para um animal de grande porte ou muito perigoso. Perfeito. Desceu do cavalo e seguiu naquela direção. A mata densa, composta por árvores enormes, samambaias, orquídeas e bromélias, além de vários arbustos e musgos, permitia pouca visibilidade do que estava além de meio metro.

Segurava o cavalo pela rédea em uma mão. Em outra uma enorme arma de fogo para caçar elefantes, um pouco de exagero e excesso de precaução por parte do inglês. Vestia um gibão verde escuro que se confundia com a vegetação, o resto das roupas e o cavalo eram negros. A luz tinha dificuldades em penetrar naquele local.

Na parca claridade pôde perceber a silhueta de uma mulher sentada em um tronco de árvore. Cantava uma música triste. Lágrimas caíam por seus olhos semicerrados. Chegando o mais perto que pôde sem chamar para si a atenção da jovem, percebeu que estava bastante machucada. Seu vestido de linho negro estava rasgado, deixando-a quase desnuda.

Abraçava o próprio corpo, expressando uma angústia e uma raiva contida fora do comum. Os cabelos de um violeta tão escuro que parecia ser negro lhe caiam longos pelas costas e tapavam a visão de seus olhos em uma franja que caia sobre eles. O canto cessou de repente. Um par de olhos violeta, minimamente mais claros que os cabelos, viraram na direção do homem que observava.

Ela levantou enfurecida e começou a gritar em uma língua que Radamanthys não entendia. Sentiu um calafrio com a mudança tão repentina. Toda a raiva contida parecia se esvair e transtornar a expressão da garota, que também gesticulava de forma irracional.

Bela e terrível, foi como lhe pareceu. Sentia um poder emanando dela, semelhante ao que ele próprio possuía nos sonhos que lhe assolavam. Porém, imensamente maior e mais perigoso. Um vento forte começou a soprar. As árvores pareciam ter se estreitado ao redor de Radamanthys e ficado maiores. Os galhos estendiam-se sobre ele, como se estivessem prontos a agarrá-lo e estrangulá-lo.

Estava apavorado, tremendo. Montou o cavalo e saiu em galope, afastando-se o mais rápido que pôde. Só parou no pátio da casa de Donko, onde o sol brilhava forte e a manhã não mais parecia sinistra e assustadora. Decidiu que comentar sobre o incidente poderia lhe trazer problemas. Shion acharia que bebera demais, Saori que fora uma visão do Maligno e os anfitriões poderiam pensar que estava louco. Ficaria calado, melhor para ele.

Respirou fundo sentindo o ar quente invadir seus pulmões e devolver a vida a seu coração. As pernas tremiam um pouco e estava pálido. Nada que um gole ou dois de vinho não resolvessem. O que nem todos os litros de vinho que pudesse encontrar e beber resolveriam seria a imagem que ficara gravada em seu coração. A da jovem triste, cantando enquanto lágrimas lhe banhavam o rosto. Que teria acontecido a ela para que se ferisse daquela maneira?

Cheio de perguntas sem resposta, parcialmente em pânico e com a palidez daqueles que haviam conhecido a visão de um espírito superior desperto, Radamanthys entrou em casa. Foi direto para a adega, esquecer os pensamentos inúteis com um bom Vinho do Porto daqueles que Shion trouxera consigo.

No coração da mata a jovem permanecia chorando. Lembranças de línguas de fogo consumindo tudo aquilo em que acreditava e de homens terríveis e ensandecidos atacando as sacerdotisas e violentado-as até a exaustão estavam gravados em seus pensamentos. Arrasada, ferida e com o coração em frangalhos ela fugira, correndo por horas incontáveis por dentro da floresta.

Odiava os homens. Criaturas podres e virulentas, não mereciam compaixão. desejava destruir a todos. Era deles a culpa por todas as tragédias e barbaridades que tumultuavam o mundo. Sem eles não haveria guerras, destruição ou qualquer tipo de violência e as mulheres poderiam viver em paz. Queria vingança e faria qualquer coisa para tê-la.


Notas:

1- O conceito de Brahman vem do Hinduísmo. Brahman é a verdade suprema, o espírito que rege o universo. É a alma ou a essência interior de todas as coisas. Está além de qualquer conceito e não pode ser compreendido pela razão nem pode ser adequadamente descrita com palavras. O Brahman está em tudo e é tudo. Segundo as crenças hindus, Brahman (o Divino, como também é chamado) se tornou o mundo através de seu próprio sacrifício e, posteriormente, o mundo se tornará Brahman novamente. Na fic eu modifiquei um pouco esse conceito e Brahman tornou-se uma espécie de deus supremo, semelhante ao Deus único dos cristãos.

2- Ganesh é um deus com cabeça de elefante, filho de Shiva e Parvati. É a primeira divindade a ser invocada em qualquer ritual. É considerado o grande removedor de obstáculos, tanto materiais como espirituais, e protetor dos negócios. Sua cabeça representa a inteligência, e a cobra em volta do seu pescoço, a energia cósmica. Seu veiculo é um rato, que simboliza a igualdade do maior e do menor perante os olhos de Deus. Ganesh está relacionado a qualidades como prudência, diplomacia, sagacidade e firmeza. É o Deus mais venerado na Índia e se encontra em todos os lares. É colocado na entrada da casa para que deixe passar somente energias positivas expulsando as energias negativas.

3­- Trecho retirado de Romeu e Julieta, de William Shakespeare.

4- Mancala é um jogo de origem africana, com mais de 7000 anos de existência, jogado em vários países do mundo, inclusive a Índia. Trata-se de um jogo com profundas raízes filosóficas. É jogado, habitualmente, com pequenas pedras ou com sementes. A movimentação das peças tem um sentido de "semeadura" e "colheita". Cada jogador é obrigado a recolher sementes (que neste momento não pertencem a nenhum dos jogadores), e com elas semeá-las suas casas do tabuleiro, mas também as casas do adversário. Seguindo as regras, em dado momento o jogador faz a "colheita" de sementes, que passam a ser suas. Ganha quem mais sementes tiver no final do jogo. É um jogo em que não há sorte envolvida, mas exclusivamente raciocínio lógico e matemático.

Obrigada a Athenas de Aries (Logo o Lune vai começar a visitar o templo, pra infelicidade da mãe dele hehehe. Afogar a Saori no Ganges seria maldade com os hindus, a água ia ficar com uma qualidade péssima XD Mas ela vai ter o fim que merece), Ia-Chan (Lune não é tão inocente assim e logo vai começar a aprontar as dele! Donko e Shion vão se acertar, mas vai demorar um pouco porque Shion é muito cabeça dura. Você tem razão, a Saori é mal comida XD) e Yumi Sumeragi (Donko babando cada vez mais pelo Shion hehehe. O Shaka não tem mais concerto, convivência excessiva com o tarado do Kanon, tadinho hehehe. O Rada saiu do controle, vai ficar cada vez mais brega daqui pra frente XD). Fico feliz que vocês estejam gostando da fic e deixando reviews, o apoio de vocês é muito importante. Obrigada também aos que acompanham a fic e não deixam review. Não sejam tímidos, comentem a fic!

No próximo capítulo: quem foi que o Rada viu na floresta? Shaka vai agarrar o Lune? Shion vai aceitar a declaração do Donko? Atualização no sábado!