Capítulo 7 – A Dádiva Suprema
A estação quente chegou trazendo o aroma dos jasmins e inúmeras outras flores que desabrochavam e rivalizavam com o cheiro de especiarias e sândalo. Quatro meses haviam se passado desde a partida de Kanon, que coincidira com a chegada de Shion e sua família. Os ânimos estavam relativamente tranqüilos em Calcutá e seus arredores.
As visitas de Lune ao templo e de Shaka à casa de Donko eram muito mais freqüentes do que Saori poderia desejar. Ela passava as tardes na cidade, a rezar na igreja ou tomar chá com uma das muitas amigas que fizera, todas inglesas, religiosas e de boas famílias que também tentavam a riqueza em solo indiano. Não conseguira sua tão sonhada carruagem de volta.
A reforma da casa estava concluída. Os móveis, responsáveis pela mudança não ter sido realizada, estavam sendo entregues naquela manhã. Shion acabara por relevar um ótimo gosto para a decoração. Com a ajuda de Samia, Lune e Shaka escolhera as cortinas, tapetes e almofadas, todas coloridas e alegres para o desespero da esposa.
O aparelho de jantar de porcelana chinesa, herança da bisavó de Shion, estava sendo colocado com todo o cuidado possível sobre o aparador de cedro, que parecia novo depois de polido e dos vidros trocados. Vasos de jasmim entravam nos braços de criadas recém-contratadas a quem Saori não parava de dar ordens.
Lune arrumava seu quarto com um esmero que nunca tivera. Um cômodo do tamanho exato para seu gosto. Uma cama de dossel com uma colcha de casimira cor de lavanda e mosqueteiro em musselina da mesma cor, cheia de almofadas e travesseiros em tons de laranja, bordadas em verde e marrom. A cômoda baixa com um espelho de moldura entalhada já cheia de essências e óleos perfumados. Um armário de duas portas em outro canto, uma escrivaninha e os dois criados mudos.
Sobre a escrivaninha seus tão queridos livros de Shakespeare e um volume em couro negro intitulado Bhagavad-Gita (1) que ganhara de Shaka. Em um dos criados mudos a imagem de Krishna, ao lado de um incensário onde queimava um incenso de rosa branca. Flores estavam espalhadas pelo quarto e uma brisa morna entrava pela janela.
Tanto ele quanto Shion haviam deixado suas roupas ocidentais um pouco de lado, para serem usadas apenas na cidade, elas eram abafadas e desconfortáveis para aquele clima. Usavam calças e camisas de algodão com coletes de seda e sandálias de couro. Saori não largava seus vestidos negros e suas roupas ocidentais por nada, preferia morrer de calor na terra do que arder no inferno pela eternidade por vestir-se de forma despudorada e indecente. Radamanthys pouco se importava com a roupa desde que ela atraísse mulheres.
Não que pensasse muito em outras mulheres desde a aparição na floresta. A jovem misteriosa não saía de sua cabeça nem com todas as garrafas de bebida que encontrasse pela frente. E ele realmente tentava esquecê-la dessa forma. Tornara-se freqüentador assíduo do Chalak Chalak, tendo até alguns amigos de bebedeira com quem aprendera os jogos locais.
Shion estava aprendendo a cuidar do chá. A partir da Camellia sinensis (2), a planta do chá, pode-se obter vários tipos de chá, de acordo com o tratamento a que as folhas são sujeitas. Ele decidira-se pelo chá preto, o popular chá das cinco que se bebia na Inglaterra. Donko lhe ensinava atenciosamente o processo pelo qual as folhas deveriam passar.
Os laços de amizade entre os dois haviam se estreitado com o passar das semanas e dos meses. O inglês estava deixando de ser o homem triste e taciturno de sempre. Nos olhos de Donko nenhuma sombra podia ser vista, a luz intensa que brilhava neles espantava qualquer uma.
De amor fingiam nada saber. Um por preferir amar em silêncio e assim poder ficar perto do amado e ajudá-lo; outro por temer o pecado que acreditava estar cometendo. Por quanto tempo aquela situação se manteria, não sabiam dizer.
O inglês organizava os livros no escritório. Em poucos dias teria início primeira colheita de chá de suas terras. Estava apreensivo. Sempre havia a possibilidade das folhas não fermentarem direito e a produção se perder, ou então de não conseguir comprador.
Riu lembrando do que Donko dissera no dia anterior quando manifestara suas preocupações. "Não fique prevendo desgraças, Shion, ou elas podem acontecer de verdade", fora o que ele dissera. Sua pior desgraça já acontecera. Estava cometendo o pior dos pecados, mesmo sem nunca tê-lo previsto.
Seu pecado tinha lindos olhos verdes, uma pele morena que queria muito tocar e lábios que pareciam ser tão doces e suculentos quanto às tâmaras de seu jardim. Todas as noites levantava de madrugada para rezar e pedir perdão. Acordava no meio da noite suando frio, com lembranças de sonhos que ele mesmo não se acreditava capaz de ter sonhado.
Quando acordado se surpreendia desejando que os sonhos se tornassem realidade. Que pudesse estar nos braços de Donko daquela forma. Então se lembrava das fogueiras que vira na Inglaterra. De todos os que morriam pelo mesmo pecado. Do tamanho da falta que nem sua morte na fogueira seria suficiente para expiar. Sua alma estava perdida pela eternidade e ele nada podia fazer. Lutar contra aquele sentimento mostrara-se além de suas forças.
--Pai? – chamou Lune entrando no escritório. Não gostava de ver o pai pensativo, triste, voltando a se isolar de todos como fazia na Inglaterra.
--Entra – disse abrindo os olhos que mantivera fechados e sorrindo ao menino.
Lune entrou e parou ao lado do pai, desistindo do que ia fazer.
--Sou um pouco grande para sentar no seu colo, não é? – envergonhou-se.
--A culpa é minha por não ter te dado colo quando devia – respondeu puxando o menino pela mão para que sentasse.
Durante aqueles meses Lune estivera mais próximo do pai do que nunca. Quando não estava com Shaka, estava com ele. Shion queria compensar todos os anos de abandono e indiferença, dar ao filho o amor que ele, por pura ignorância, não dera. Porém, não fazia idéia dos sentimentos que o garoto nutria pelo jovem amigo de cabelos louros e olhos azuis.
--O que está acontecendo com o senhor? Estava tão feliz logo que chegamos, e agora está aí, triste, deprimido.
--Não aconteceu nada, filho. Está tudo bem – mentiu.
--Não, não está. O senhor está sofrendo. Por que não me conta? Falar pode aliviar seu coração.
--Não há nada para ser falado.
Shion baixou os olhos. Falar seria admitir para outra pessoa seu pecado e torná-lo ainda maior. Não podia contar ao próprio filho que nutria sentimentos tão sujos por outro homem. Às vezes tinha vontade de gritar para tirar aquele nó que se fazia na garganta quando pensava no assunto.
--Eu não sou cego, pai. Sei que vocês se amam. Pare de se sentir culpado e seja feliz.
As palavras caíram como um balde de água fria num dia de inverno. A pele clara de Shion perdeu a pouca cor que tinha.
--Do que você... do que está falando? – perguntou confuso.
--O senhor e o Donko – sorriu sussurrando para que ninguém mais os ouvisse. – Percebi o amor de vocês no dia em que chegamos. O senhor pode negar o quanto quiser, mas não pode tirar o que está aí dentro.
Colocou a mão sobre o coração do pai. Shion sabia que era a verdade. Podia negar para os outros, negar da boca para fora. Jamais conseguiria apagar aquele sentimento de seu coração. Colocou a mão sobre a do filho. O nó na garganta o sufocava. Sentia-se frágil ao ponto de parecer ridículo. Queria chorar, queria gritar, queria sumir para não ter que explicar a Lune o que lhe acontecia.
--Lune... eu nem sei o que dizer a você... Juro que não queria sentir o que sinto... queria poder continuar amando sua mãe, ou não amar ninguém... é horrível... é tão...
--Tão o quê? Vai dizer que é asqueroso, repugnante? Me diga, pai, o senhor se sente assim? Realmente tem nojo de si mesmo por estar apaixonado? – disse de forma branda.
--Eu não sei o que sinto... tudo o que posso distinguir dentro de mim é culpa. Uma culpa tão grande que me sufoca. Nunca fui assim... Fui um bom cristão, sempre agi de acordo com as leis de Deus. Sua mãe, minha esposa, foi a única mulher da minha vida... não sei o que deu em mim... quando o vi...
--Por favor, pai. Não vai dizer que foi o demônio que se apossou do senhor. Isso é conversa da minha mãe, não do senhor. O que sentiu quando o viu? – perguntou sorrindo docemente. Histórias de amor o fascinavam, principalmente quando eram reais e tinham final feliz.
--Eu... me senti confortado, feliz... completo. E com o passar dos dias foi ficando mais forte. Quando olho pra ele, sinto que meu mundo todo está ali, e que não preciso de mais nada para ser feliz – um vago sorriso passou por sua face, os olhos brilharam ao pensar em Donko.
--Então por que se tortura dessa maneira? Por que um bando de mal-amados, reprimidos que não suportam a felicidade alheia disseram que é ruim, que é errado?
Teve que sorrir. A veemência com que o filho defendia o amor era impressionante. Lune o fazia querer mandar as conveniências às favas e ir correndo dizer a Donko o que sentia por ele.
--Não é tão simples. Não são um bando de mal-amados reprimidos dizendo que é ruim. É a lei de Deus, Lune. Nem eu posso ir contra.
--Quem garante que essa lei não foi acrescentada nas escrituras por mal-amados reprimidos? O senhor sabe tanto quanto eu que deus nenhum condena o amor.
--Lune! – repreendeu.
--O amor é sagrado, pai. É o reflexo mais perfeito da Força Maior que criou tudo. É o reflexo mais perfeito da face de Deus. Encontrar o amor verdadeiro é encontrar o pequeno caminho para a felicidade, é receber a maior dádiva que Deus pode nos dar.
O que o garoto dizia fazia um sentido absurdo. No entanto, fora uma vida inteira sobre a sombra de preconceito, senso moral e religião que diziam que era pecado. Não conseguiria superar de um dia para o outro. Não deixaria de sentir-se um pecador indigno de repente. Abraçou o filho procurando um pouco de conforto.
--Eu estou aqui, pai. Estou do seu lado e dou meu apoio a esse amor tão bonito que o senhor sente pelo Donko. Pode contar comigo para o que precisar.
--Acho que já conversamos demais sobre isso por hoje – disse Shion respirando fundo e tentando voltar ao normal. A conversa o deixara bastante abalado.
--Como quiser – sorriu.
--Terminou de arrumar seu quarto?
--Terminei. Vamos ficar aqui hoje?
--Vamos. Não há razão para continuarmos incomodando Donko e Samia.
--O senhor não está pensando em se afastar dele, está?
Shion abriu a boca para dizer que o assunto estava encerrado. Lune entendeu e completou:
--Tudo bem. Mas pense com carinho no que eu disse.
--Queria conversar com você sobre sua mãe. Agora que está na casa dela, sei que vai voltar a tratar você como tratava na Inglaterra. Não quero que isso aconteça. Nada de jejuns forçados, orações exageradas ou ajoelhar em grãos de milho, fui claro? Se ela insistir quero que me chame.
--Eu não me importo pai, sério mesmo. Ela pode fazer o que quiser com meu corpo. O que interessa é que nos meus sonhos, nas minhas crenças e na minha alma ela não pode tocar.
--Mas eu me importo. E se ela insistir com aquelas atitudes doentias quero que fale comigo.
--Está bem – concordou. – Não consigo entender por que ela não gosta de mim...
--Ela gosta de você, só não sabe demonstrar.
--Não, ela não gosta. A única coisa que vejo nos olhos dela quando olha pra mim é ódio.
Shion sentiu o coração apertar. Era muito triste perceber que uma mãe odiava o próprio filho. Ainda mais sendo um garoto tão adorável como Lune.
--Eu amo você, meu filho. Você é o que eu considero mais importante, o motivo por eu não ter me arrependido nem por um instante de ter casado com a sua mãe.
--Também amo o senhor – disse beijando a bochecha do pai. – Posso passar a tarde no templo?
--Pode, só não volte tarde.
--Tudo bem.
Uma das criadas os interrompeu, batendo de leve na porta.
--Com licença – entrou. – O senhor Desai e sua mãe estão aí, vieram ver se precisam de alguma ajuda.
--Obrigado – disse Shion. – Diga que estamos indo.
--Está vendo, ele não consegue ficar longe do senhor – riu Lune levantando para que o pai fizesse o mesmo.
O inglês não respondeu. Seguiu para a sala receber os amigos, como um bom anfitrião deveria fazer. Além do mais, tinha negócios a tratar com Donko. Lune almoçou e foi andando ao templo, não vira Shaka no dia anterior, sentia saudades.
O templo do leste estava em clima de festa. Depois de quatro meses de uma tristeza velada pela ausência de Kanon e pelas crises de choro que constantemente acometiam o mestre que ficara, preparavam-se para recebê-lo de volta. Saga sonhara com seu retorno, chegaria na próxima madrugada. A música voltara a ser alegre, pessoas dançavam nos jardins e Saga tentava curar suas olheiras com compressas de cânfora e malva.
Estava deitado em seu quarto, pensando em quantas horas ainda demoraria para ver o irmão, para tê-lo em seus braços e beijá-lo até não sentir mais os lábios. A possibilidade de Kanon ter ficado com outra pessoa durante a viagem nem passava por sua cabeça. Kanon era tarado sim, mas tarado por ele, fazia questão de afirmar.
No pátio externo Shaka e Lune conversavam. A tarde estava quente e abafada. Nuvens acumulavam-se anormalmente naquela época do ano. Chuvas não eram comuns na estação quente. Lune desejava que chovesse para aliviar um pouco o calor que estava demais. Algumas jovens dançavam ali perto ao som de uma música doce e leve.
--Eu nunca vi você dançar – comentou Lune olhando para as jovens.
--Quer ver? – perguntou Shaka com um sorriso indecifrável no rosto.
O garoto fez sim, seus cabelos cor de lavanda ondulando com o movimento de cabeça. Shaka o puxou pela mão para mais perto de onde as meninas dançavam. Cochichou algo para os músicos e depois para elas. Ajoelhou-se no chão perto de Lune para começar.
--Esta música chama-se Maar Dala (3). É a história de uma jovem que se apaixonou por alguém que não notou esse amor, mas nem por isso ela se entregou a tristeza. E continuou a amar, até morrer de amor. As músicas expressam a dualidade entre alegria e tristeza, luz e escuridão, melodia e letra, a dualidade que existe em tudo no mundo e que deve ser mantida em equilíbrio, para que o Dharma não seja rompido.
Uma garota de cabelos negros e olhos verdes, que tinha saído a um pedido de Shaka, voltou trazendo o que parecia uma almofada muito pequena, coberta de pérolas que fazia um barulho de chocalho. Shaka pegou e agradeceu.
--A dança é o equilíbrio. Cada movimento, cada expressão indica um sentimento, uma emoção. Os gestos não podem destoar nem da melodia nem da letra. Ela une os sentimentos contraditórios de letra e melodia em um único. Por isso ela é uma das formas mais perfeitas de oferenda à Trindade e de louvor à Força Maior que os criou.
Shaka tocou com uma das mãos a almofada de pérolas, que retiniu como pequenos sinos de prata. Na terceira batida a música começou a tocar e ele a cantar. O início era calmo. Permanecia ajoelhado no chão, suas mãos e rosto falam pelo resto, oscilando entre sorrisos tentadores e olhares tristes.
De quem é este passo?
De quem é esta sombra?
Havia uma batida em meu coração;
quem entrou aqui?
Quem esparramou esta cor vibrante em cima de mim?
Eu morri de felicidade minha felicidade me matou
Me matou...
Lune observava sem fala. A voz de Shaka era bela como a de um anjo e tão tentadora quando do mais sedutor demônio que sua mãe pudesse imaginar. Shaka revelava sua personalidade quando dançava. O espírito de Shiva, o senhor dos dançarinos, manifestava-se de forma impressionante. Seu olhar refletia a luz do sol como as águas do Ganges ao meio-dia.
Quem esparramou esta cor vibrante em cima de mim?
Eu morri de felicidade;
está me matando...
Deus, está me matando...
A lua não decorou minha palma,
nem eu contraí qualquer relação com as estrelas.
Nem eu fiz qualquer reclamação de Deus...
Eu escondi toda tristeza;
com risada eu agüentei cada injustiça.
Eu abracei espinhos até mesmo,
e estava ferido através de flores.
Sim, mas quando eu elevei minhas mãos em oração,
Eu implorei a Deus por você!
Deus, eu o implorei!
O ritmo acelerou. Shaka levantou de súbito, os braços descrevendo arcos, equilibrava-se na ponta dos pés, indo de um lado para o outro e girando como um rodamoinho. Sua fina túnica de linho rodava deixando ver um pouco das pernas bem torneadas. Lune engoliu em seco, a respiração acelerada, o corpo começando a arder.
A música tornou-se novamente tranqüila, Shaka foi ao chão novamente, muito mais perto dele que antes. Suas mãos quase o tocavam contando a história da música através de movimentos precisos e graciosos. Lune estava pasmo, para não dizer completamente abobado. Os lábios entreabertos, as mãos fechadas, apertando o tecido da blusa. Estava trêmulo.
Quem esparramou esta cor vibrante em cima de mim?
Eu morri de felicidade;
me matou...
Deus, me matou...
me matou...
De quem é este passo?
De quem é esta sombra?
Havia uma batida a meu coração;
quem entrou aqui?
Seu amado em nada lembrava o ar inocente que costumava ter. Era de uma lascívia doce e encantadora, diferente de tudo. O som da sítara e dos tambores sobressaíam-se, junto com um coro das vozes dos músicos. Shaka cessou o canto, voltou a levantar e a dançar rapidamente. Lune não conseguia tirar os olhos dele. De repente, tudo cessou. Com um giro repentino Shaka parou sobre a ponta dos pés e os instrumentos calaram-se.
O garoto aproximou-se em quanto os músicos e as meninas saíam discretamente. Sentou ao lado de Lune percebendo o estado em que este se encontrava. Sorriu, corando tanto quanto o outro. Não fazia idéia de que sua dança era capaz de deixar alguém daquela maneira. Ainda mais Lune, que tanto amava. Permitiu-se sentir envaidecido.
--Gostou?
Shaka era provocante até mesmo em sua inocência. Lune mexeu a boca, mas não conseguiu dizer nada. Queria poder atirar-se no Ganges e apagar aquela chama que ardia dentro de si. Chama acessa por Shaka.
--Foi... perfeito – disse tentando acalmar a respiração.
Se havia um momento em que palavras faziam-se necessárias, o momento era aquele. Precisavam esclarecer algumas coisas de uma vez por todas.
--Shaka... Sabe o beijo que você me deu aquele dia? – disse tomando coragem. O indiano assentiu. – Foi o meu primeiro beijo...
Sentiu uma onda de culpa invadi-lo. Sabia que para os ocidentais o primeiro beijo podia ser muito importante. Não queria estragar o de Lune.
--Desculpe... eu não sabia... não fiz por mal...
--Eu desculpo se você me beijar de novo – disse quase num sussurro.
Sentiu a mão de Shaka segurar sua nuca e puxá-lo para perto. Os lábios se tocaram, um toque leve, rápido. Shaka afastou-se um pouco para voltar depois se aproximar e começar um beijo mais intenso. Entreabriu os lábios e tomou os de Lune entre os seus. Nunca beijara ninguém daquela maneira. Não sabia direito o que fazer. Seu coração parecia querer saltar do peito. As mãos trêmulas de Lune enlaçaram-lhe a cintura e o puxaram para mais perto. Deitou sobre ele de vagar, mordendo-lhe o lábio inferior.
Lune deixou escapar um gemido. Era melhor sensação de sua vida. O corpo de Shaka sobre o seu, as bocas unidas. Acariciou-lhe as costas timidamente. Os dedos de Shaka enrolando uma mecha de seu cabelo, a língua dele procurando a sua. Achou que ia perder a consciência, embevecido com aquelas sensações. Correspondeu com todo o amor que guardava dentro de si e sabia ser para Shaka.
--Foi meu primeiro beijo de verdade – disse Shaka, os lábios ainda sobre os de Lune. – E fico por muito feliz por ter sido com você.
--Amo você, Shaka...
--Mesmo sabendo que é contra a sua religião?
--Minha religião é a mesma que a sua. E ela não condena o amor.
Beijaram-se novamente, esquecendo o resto do mundo. Não seria fácil, Saori faria de tudo para separá-los e Shion poderia apoiá-la. Nada importava. O amor verdadeiro tinha a proteção e a benção dos deuses, ninguém ia destruir o que sentiam ou conseguir separá-los.
A tradição do chá das cinco inglês teria começado com a duquesa de Bedford, que achava muito longo o intervalo entre o almoço e a ceia. Para aplacar a fome, conta-se, ela chamava as amigas para comer bolinhos, biscoitos e outros quitutes enquanto tomavam xícaras de chá preto com um pouco de leite. O costume estendera-se ao Oriente, chegando com os colonizadores. Em Calcutá as distintas senhoras inglesas que acompanhavam os maridos e pais na busca da fortuna fácil faziam questão de organizar chás todas as tardes.
Naquela tarde morna de março estavam todas reunidas na casa de Ártemis Beclynden, esposa de Ikarus Beclynden, importante negociante de chá e seda. Saori, é claro, não poderia faltar a essas reuniões. Para ela – e para as outras distintas senhoras também – as pessoas civilizadas deveriam se unir para preservar a moral e os bons costumes, não era porque estavam longe da Inglaterra que se tornariam bárbaros.
Conversavam sobre os mais diversos assuntos: bordados, problemas domésticos, filhos, religião e a selvageria dos nativos. O que muitas delas negligenciavam era que os "nativos" produziam o melhor chá, os melhores tecidos e possuíam uma cultura riquíssima e muito mais desenvolvida em certos aspectos que a européia.
--Por que não trouxe seu filho, Saori? Meu Hagen tem a idade dele, creio que poderiam tornar-se amigos – disse Ártemis.
--Deus sabe o quanto eu peço para que meu filho faça boas amizades! Meu marido não entende o mal que está fazendo ao menino. Imaginem vocês que ele vive enfiado naquele antro de servidão ao demônio que fica perto de nossa casa!
Todas tamparam a boca com o guardanapo, soltando uma exclamação de terror e indignação. Os templos eram muito mal-vistos entre a pequena sociedade inglesa que vivia em Calcutá e arredores.
--Seu marido por certo não percebeu o que se passa. Deve abrir os olhos dele, querida. Quanto a seu filho, peça ao pastor para conversar com ele e o traga para as aulas da igreja nos domingos. É o melhor que pode fazer.
--Conversei com o pastor, ele disse que eu deveria esperar estar na minha casa, que nada adiantaria fazer estando meu filho na residência de servos do Maligno. Agora que estou em minha casa não esperarei mais um dia. Farei de tudo para expulsar o espírito do mal que assola aquele menino – disse resoluta.
Entre mordidas em bolinhos e goles de chá, as outras concordaram. Saori era uma boa mulher. Todas tinham pelo menos um pecado do qual se envergonhar, Saori parecia não ter nenhum e carregava humildemente o fardo de um filho atormentado pelo Mal. Era digna de toda a admiração e respeito.
--Soube que seu marido é amigo daquele selvagem que se acha civilizado porque possuí um punhado de terras e algum dinheiro guardado – comentou Éris. Do grupo de senhoras ela era a mais ferina, sempre procurando os defeitos e pecados de cada pessoa para menosprezá-la.
--Uma boa esposa não questiona as amizades do marido – disse Saori. – Se meu marido mantém amizade com um selvagem como aquele certamente tem seus motivos, os quais não serei eu a questionar.
--E quando vai nos convidar para um chá em sua casa? – perguntou Marin tentando apaziguar os ânimos, aquelas conversas e intrigas mesquinhas a entediavam.
--Bem, a casa está sendo arrumada. Creio que o chá da segunda que vem pode ser lá, se todas concordarem.
--Vai ser ótimo! Podemos aproveitar e levar nossos filhos para que conheçam o seu. Por certo ele deve estar de amizades com aquele menino do templo por não conhecer outros melhores – disse Éris que não perderia a oportunidade de criticar a casa de Saori, seu filho e comer de graça, já que o chá da segunda antes seria em sua casa.
--Falando daquele garoto – disse Ártemis – nada me tira da cabeça a idéia de que ele é filho de algum inglês. Pensem comigo, o menino é louro de olhos azuis e com a pele clara daquele jeito não pode ser filho de nativos.
--Eu cheguei aqui pouco antes dele ser encontrado no templo. A notícia de um menino louro abandonado no templo se espalhou como fogo de palha pela cidade. Eu e meu Aiolia nos oferecemos para criar o menino como se devia – disse Marin – mas os monges simplesmente não nos deixaram chegar perto. Naquela época Mime era recém-nascido, não me custaria amamentar mais um. Uma obra de caridade por uma criança que deveria ser cristã e teve a má sorte de ser largada no mundo.
--Deviam ter exigido ao representante da Companhia que lhes desse o menino! – exclamou Éris.
--Aiolia fez isso. Naquela época o representante era o finado William, aquele que abandonou o bom senso e se converteu ao paganismo para casar com uma selvagem. Até o sobrenome inglês ele renegou! Tem cabimento uma barbaridade destas?
--Um inglês renegando o sobrenome? – perguntou Saori incrédula.
--Exatamente! Foi a condição que o finado Devdas Desai impôs para que se casasse com a filha dele – respondeu Éris, sempre bem-informada. – Minha mãe ainda lembra do dia em que o jovem William chegou nesta terra como representante da Companhia, um jovem de valor, com certeza. Teve a vida desgraçada pela filha do velho Desai que o enfeitiçou.
--E o que aconteceu com ele?
--Morreu. Devorado por tigres em uma expedição à Deli. Não encontraram nem os ossos. Isso foi a uns cinco anos atrás. E Donko herdou tudo o que possuía, inclusive a influência. É por isso que o senhor Abel ainda o atura na Companhia, por causa do pai. Se não fosse isso já o teria escorraçado e lhe tomado as terras.
--É mesmo um despropósito um indiano ter todo aquele dinheiro – reclamou Ártemis. – Uma das maiores fortunas da Índia!
--Que nada, Ártemis! Quando ele morrer vai passar à Coroa Inglesa. Donko não tem herdeiros e parece que nem se interessa em casar.
Saori mastigava um pedaço de bolo, pensativa. Então o marido de Samia fora devorado por tigres. Com certeza castigo da Providência por sua servidão tão devotada aos demônios do inferno.
Na fazenda de Shion, que ele batizara de Crystals of Stars, o canto dos trabalhadores começava a ser ouvido. Adubavam a terra ao redor dos pés de chá para que eles brotassem fortes logo após a colheita, preparavam o terreno onde as folhas secariam e os dois armazéns onde o processo seria finalizado e o chá aprontado para ser vendido. Donko andava ao lado dele por entre as plantas.
--Mais umas duas semanas e dá pra colher – disse Donko analisando as folhas.
--Não sabia que chá dava flor – comentou Shion admirando as pequenas flores brancas da Camellia sinensis, parando alguns passos à frente do indiano.
Donko foi juntar-se a ele e acabou tropeçando em uma raiz saliente. Caiu por cima de Shion, segurando sua cintura e cabeça, tentando protegê-lo do impacto. O inglês o abraçou, sentindo-se ligeiramente atordoado com a sensação que o corpo de outro homem sobre o seu lhe causava. Era inebriante, alucinador.
Os lábios juntaram-se num beijo voraz, cheio de desejo que não podia mais ser contido, antes que um dos dois se desse conta. As línguas lutavam avidamente pelo maior contato possível. Donko sentia dor nas mãos machucadas contra o solo de terra bruta, mas nada era tão avassalador quanto o calor que tomava conta de seu corpo a partir daquele beijo.
De repente, Shion lembrou de que era justamente outro homem sobre si. Demorou a ter forças para esboçar qualquer reação que não corresponder às investidas do indiano. Quando o fez foi para empurrá-lo para baixo, se soltar e levantar horrorizado.
Seu rosto evidenciava claramente o assombro por tamanho ato de amor, paixão e ousadia. O gosto meio amargo, meio doce do chá, o gosto dos lábios de Donko, na sua boca, deixando-o deliciado e cheio de culpa. As pernas não ajudavam para que pudesse andar e ir embora.
--Deus! Isso jamais poderia ter acontecido – exclamou dando alguns passos para trás, desorientado e inexpressivo.
--Por que não, Shion? – perguntou Donko com doçura, levantando e indo para perto do amado. – Acaso acha que foi errado? Acha que o que sentimos um pelo outro é errado?
--Eu... não...
--Não negue – interrompeu-o. – Pensava que você jamais ia me corresponder, mas depois desse beijo... Eu o amo, Shion. Vai ter coragem de negar que sente o mesmo? De negar um sentimento como este? – sua voz mantinha-se calma, carregada de afeto. Era difícil para Shion e ele entendia.
--É pecado – respondeu com a voz embargada pelas lágrimas de um choro contido.
--É amor. São nossas almas que chamam uma pela outra, o que importa se nossos corpos são iguais?
--Eu... preciso... preciso pensar... ficar sozinho – deu as costas ao indiano e começou a andar rapidamente, sem uma direção certa, só queria ir para longe dele.
--Shion! – chamou Donko indo atrás dele.
--Me deixa Donko!
Melhor não insistir. Ele precisava ficar sozinho e pensar. O moreno de olhos verdes quedou-se sozinho em meio às folhas, de tom tão escuro quanto seus olhos. Tinha medo de que Shion pensasse e resolvesse se afastar. Agora que sabia que seu sentimento era correspondido nada o impediria de lutar por ele. Faria Shion mudar de idéia. Encontrara sua alma gêmea e não a deixaria escapar.
Shion entrou em casa apressado, fechou a porta e encostou-se nela. A respiração descompassada, o coração batendo rápido. Seus lábios oscilavam entre um sorriso bobo e uma expressão profunda de culpa. Nem nos primeiros dias de casados, quando Saori ainda permitia que a beijasse, sentira tamanho arrebatamento em um beijo. Provara nos lábios de Donko o gosto da Dádiva Suprema do Amor.
Notas:
1- Bhagavad Gita é um texto religioso Hindu. Faz parte do épico Mahabharata, embora seja de composição mais recente que o todo do livro. Na versão que o inclui, o Mahabharata é datado no século 4 a.C. O texto, escrito em sânscrito, relata o diálogo de Arjuna com seu mestre Krishna, uma das encarnações de Vishnu. No desenrolar da conversa são colocados pontos importantes da filosofia indiana. Esse texto contém os principais ensinamentos da filosofia do movimento Hare Krishna.
2- O chá é proveniente das folhas da Camellia sinensis. Atualmente, cerca de 3 mil produtos levam o nome de chá mas, na verdade, podem ser considerados chás mesmo, somente aqueles que tenham em sua composição essa planta. No início do século XVI, somente os ricos consumiam chás na Europa. As senhoras tomavam chá em casa e os homens, nos cafés. Apenas em 1717, com a expansão dos negócios de Thomas Twining - fundador da conhecida marca de chás inglesa Twinings - e a abertura do Tom´s Coffee House, as mulheres puderam degustar a bebida fora de casa.
3- Maar Dala é hindi e quer dizer "me matou". É uma das músicas da trilha sonora do filme Devdas. Recomendo para quem quiser baixar, é uma música de ritmo forte e muito bonita. Os pedaços que aparecem na cena que se segue são uma tradução feita por mim da tradução inglesa. A historinha da música fui eu que inventei. A coreografia do Shaka foi baseada no clipe da música, que também passa no filme.
Bella chegando feliz e sanltitante, distribuindo balas com gorro de Mamãe Noel. Olá a todos que acompanham a fic! Desculpem o atraso, era pra sair ontem, mas me embananei com o Natal e não consegui publicar. Por falar nisso, um Feliz Natal para todos! E muito obrigado a Ia-Chan (Lune estava mesmo doido pra beijar o Shaka XD E Donko deu mais um passo, ou um tombo XD e agarrou o Shi! Espero que vc continue gostando da fic!) e Yumi Sumeragi (adorei seus apelidos pro Rada, são a cara dele XD Mais Donko e Shion pra vc! E carolas tb! Muito obrigada pelos elogios, espero continuar merecendo eles ). E obrigada também ao pessoal que acompanha e não comentou ainda. Dêem uma força a uma escritora meio perdida, comentem e digam se a fic ta boa ou ruim! A ajuda de todos é muito importante!
No próximo capítulo: Kanon volta com o Mu e os meninos se encontram. Shion vai aceitar Donko, ou vai mandar o pobre pastar folhas de chá? Não percam, sábado a atualização XD
