Capítulo 8 – A Divina Trindade se Reúne

No céu nuvens escuras prenunciavam tempestade, um vento gélido soprava cortante. Lune apoiava os braços no peitoral da janela aberta. Fechou os olhos e imaginou a água caindo límpida sobre a terra. O som de um raio pôde ser ouvido e as gotas de fato começaram a cair. O garoto sorriu, achando a coincidência engraçada.

No templo do leste, Saga olhava atônito para o céu. Nunca, em todos os anos de sua vida, tivera notícias de chuva durante a estação quente. A menos que estivesse ficando louco ou caduco, o acontecimento só poderia significar uma coisa. Os poderes de Vishnu se manifestaram. Pensou. Kanon, você precisa se apressar.

Lembrou de uma tarde quente de abril, há muitos anos atrás. Ele e Kanon estavam sentados debaixo de um limoeiro, deviam ter uns oito anos. Kanon olhava para ele com uma expressão indecifrável, mordia o lábio inferior como fazia sempre que estava nervoso ou queria muito alguma coisa. Quando lhe perguntou o que queria, ele sem mais nem menos pegou um limão e atirou em sua cabeça. Olhou-o intrigado, passando a mão na cabeça dolorida.

--Ta maluco, Kanon? Por que você fez isso?

--Você é muito tapado, Saga! Por que será que se joga um limão na cabeça de uma pessoa? – perguntou como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.

Na verdade era óbvio, Saga é que não pensou na possibilidade. Na Índia havia o costume das mulheres jogarem um limão na cabeça daquele que queriam como marido (1). Se acertassem a fruta o casamento havia sido aprovado pelos deuses e seria feliz, se errassem deveriam procurar outro eleito.

--Eu amo você, Saga, apesar desse seu jeito sonso e desligado – disse rindo. – Quero que case comigo quando a gente crescer.

--Nós não podemos casar... Somos irmãos Kanon.

--E daí? O amor não se importa com essas conveniências tolas. Diz que casa comigo, vai Saga – pediu com cara de cachorrinho abandonado. – Ou você não me ama?

--Eu... bem... é que...

Sim, ele amava Kanon acima de tudo. Mas receber um pedido de casamento aos oito anos de idade do próprio irmão era um tanto esquisito. Tinha que ser coisa do Kanon, pensou. Seu pensamento foi interrompido por um beijo que o fez esquecer de tudo. Seu primeiro beijo de amor. Metade de sua missão na terra estava cumprida. Ele recebera a Dádiva Suprema do Amor e a aceitara de braços abertos.

Naquela tarde, debaixo do limoeiro, ele e Kanon se tornaram namorados. Anos depois, debaixo do mesmo limoeiro, se tornaram amantes. Não eram completamente felizes, a vida não era um mar de calmaria e perfeição. Também tinham suas brigas e desentendimentos. Porém, ambos achavam que a perfeição era monótona demais. Contentavam-se plenamente com o que tinham.

--Aí! – exclamou Saga sentindo algo atingir sua cabeça que estava para fora da janela olhando a chuva. Olhou para o chão e viu um limão amarelo.

Seu rosto se abriu em um sorriso. Kanon chegara e estava lembrando da mesma coisa que ele. Desceu correndo e foi encontrar o irmão completamente encharcado no saguão de entrada do templo.

--Tinha que ser coisa sua, não é Kanon? – riu mostrando o limão.

--Foi só pra não perder o costume – respondeu com seu o jeito debochado de sempre. – E pra você lembrar que é meu e de mais ninguém.

Abraçaram-se fortemente. Kanon puxou o irmão para o beijo que guardara em seus lábios por todo o tempo que esteve longe. Soltaram-se apenas quando não lhes restava fôlego para continuarem com o beijo.

--Senti tanto a sua falta – sussurrou Kanon mordendo o lóbulo da orelha do irmão.

--Mentiroso. Aposto que nem lembrou de mim...

--Ah é? Então vamos lá pra cima e vou mostrar se lembrei de você ou não.

Saga sorriu e sentiu o rosto corar. Roçou levemente os lábios no pescoço de Kanon fazendo-o arrepiar-se.

--Primeiro você vai tirar essa roupa molhada antes de pegar um resfriado.

--Esse era exatamente o plano que eu tinha. Suas roupas molharam – disse afastando-o um pouco de si. – Vai ter que tirar também. Se quiser eu ajudo...

--Você não tem jeito mesmo – riu beijando-o outra vez.

Sentiu as mãos de Kanon rodearem sua cintura. Os corpos tão próximos quanto poderiam ficar. Só então Kanon lembrou do menino que trouxera consigo. Mu já não estava nem vermelho, estava roxo vendo os dois irmãos trocarem carícias tão íntimas. Saga pareceu também ter se dado conta de que não estavam sozinhos e afastou-se um pouco do irmão.

--Saga, este é o Mu. Mu este é meu irmão, Saga.

--Seja bem-vindo, Mu – disse Saga, dando um selinho de boas-vindas no garoto que agradeceu.

--Amanhã você poderá conhecer os outros e o templo do oeste. Vamos ver seu quarto?

--Não precisam se incomodar com um quarto pra mim, eu me acomodo em qualquer lugar.

--Não será incômodo nenhum. Espero que goste do quarto que eu preparei para você – disse Saga com um sorriso.

Mu ficou encantado com o colorido dos tecidos, a maciez dos tapetes, almofadas e do colchão de sua cama. Nunca vira nada tão bonito. Sua família não podia se dar a luxos como aqueles. Ficou um pouco sem jeito de aceitar tanto conforto.

--Nosso quarto fica no segundo andar, é a quarta porta do corredor à esquerda se precisar de algo. Tem roupa seca no armário, as suas devem estar todas molhadas por causa da chuva forte. Encontrará tudo o que precisa nas gavetas.

--Obrigado. Fico muito grato por tudo o que estão fazendo por mim.

Despediu-se dos gêmeos e foi se trocar. Estava gostando muito do templo. O lugar parecia flutuar em bons sentimentos. Sentia-se em paz. A lembrança da perda trágica da família já não passava disso, de uma lembrança. Tinha a certeza de que todos estavam bem, cumprindo seus destinos e dando mais um passo em direção à Iluminação. Trocou de roupa e deitou para dormir. Teria somente sonhos doces e tranqüilos naquela noite. Estava em casa.


No quarto do mestre do templo do leste, Kanon tirava suas roupas molhadas e deixava que Saga lhe secasse o cabelo. Não estava se importando muito com as novidades. Interessava-lhe apenas o homem que secava e penteava seus cabelos.

--Kanon, precisamos conversar.

--Podemos conversar amanhã – disse virando-se de frente para Saga e começando a desfazer os laços que prendiam sua túnica.

--O assunto é sério – tentou resistir segurando as mãos do irmão. – Você por acaso não viu a chuva lá fora?

--Eu estou encharcado por causa da chuva lá fora, como não teria visto?

--Não sei se você notou, mas estamos em março. Aqui não chove em março, nunca choveu.

--Ás vezes você fala demais, Saga. Não podemos deixar a conversa pra depois? Estou com saudades – disse beijando o pescoço do irmão.

--Kanon... por favor...

--Por favor pare ou por favor continue? – perguntou provocante no ouvido de Saga.

--Vishnu chegou no mesmo dia em que você partiu – disse reunindo as forças que lhe restavam para resistir ao toque do irmão.

--E então? – perguntou sem soltá-lo.

--É um garoto inglês da idade do Shaka. Chama-se Lune e também não faz idéia do que carrega dentro de si.

--Mu conhece os poderes que tem e sabe que eles têm um propósito. Mas ainda não sabe qual é. Não sabe nem por que eu apareci ou o trouxe para cá. Achei melhor falarmos com os três juntos.

--Ótimo. Vamos deixar que se conheçam. E esperar que os poderes de Shaka se manifestem também. Então conversamos com eles.

--Isso. Vamos deixar as conversas pra depois.

--Kanon...

--Que é, Saga? – disse um pouco impaciente, porém com um sorriso divertido.

--Você ficou com alguém?

--Que perguntinha mais imbecil, Saga! Acha que eu ficaria com alguém além de você?

--Não sei – fez-se de inocente. – Por isso estou perguntando.

--É claro que não fiquei com ninguém. Não faltaram propostas. Sabe que sou irresistível! Mas eu recusei todas. Só consegui pensar em você, nesses seus lábios deliciosos, na sua pele e até nos seus sermões – disse entre beijos.

--Então lembrou de mim?

--Não.

--Como não? – perguntou um pouco triste.

--Não lembrei porque nem sequer esqueci de você.

--Eu te amo. Sempre amei.

--Eu também.

--Por isso fica jogando limões na minha cabeça? – não resistiu.

--É pra você não esquecer do que me prometeu naquela tarde de sol, quando estávamos sentados debaixo de um limoeiro amarelo e eu joguei o primeiro limão.

--Eu prometi que seria sempre seu e serei. Prometi que me casaria com você quando crescêssemos e...

--E ainda não cumpriu. Você é meu amante, não meu marido. Nunca recebemos às bênçãos da Trintade diante do altar sagrado. Por que não se casa comigo, Saga?

--Você é doido! – riu.

--Doido por quê?

--Por querer casar com seu irmão. É loucura, Kanon...

--Tudo bem. Eu sou doido. Agora me diz, quando vai cumprir sua promessa?

--Quando tudo isso acabar, se você ainda quiser, me caso com você.

--Ah, eu vou querer sim – disse continuando a desatar os nós da túnica do irmão. – Mas enquanto esse momento não chega, vou querer outra coisa...

--É? O quê você quer?

--Você.

Saga sorriu, deixou que a túnica aberta escorregasse pelos ombros e fosse, descobrindo totalmente seu corpo. Kanon o pegou nos braços e levou para a cama, deitando-o gentilmente. Apesar de todo o desejo que trazia guardado dentro de si e da ânsia que sentia, seus beijos eram delicados e cheios de carinho. Não se perdoaria se machucasse o irmão.

O outro gêmeo mantinha os olhos fechados. Deixava escapar gemidos baixinhos. Acariciava os cabelos de Kanon, sentindo os lábios quentes descerem por sua pele. O cheiro de canela de um incenso que terminava de queimar inundava a respiração dos dois amantes. A troca de beijos e carícias durou o restante da noite. A manhã veio saudar os mestres do Templo abraçados, com um sorriso de plena felicidade nos lábios.


(2) O tempo estira seus membros

Chuva ondula e esparrama

Uma rajada de vento virá e esta luz será extinguida.

Eu não deixei a lâmpada de nosso amor ser extinguida.

Oh amado, esta lâmpada não foi colocada fora, nem será.

A lâmpada do meu desejo!

O sol despontava no oriente. Os pássaros despertavam cantando e os monges faziam as primeiras preces da manhã para saudar o dia. Uma voz doce e carregada de sentimentos ambíguos juntava-se aos pássaros e aos mantras recitados pelos monges. Mu acordou sorrindo, ouvindo a bela canção que entrava pela janela. Parecia vir de longe e de perto ao mesmo tempo.

Seu peito encheu-se de alegria. Levantou decidido a ver quem era o anjo que cantava tão belas palavras. Movia-se rapidamente por corredores que não conhecia. Um fio invisível o puxava para frente.

Meu amado, venha agora a mim, meu amor...

Como esta lâmpada, está queimando cada centímetro do meu corpo

Venha a mim agora, amado;

Oh meu amor, venha agora a mim, amado!

Havia distância (entre nós), uma grande distância...

Havia distância (entre nós), uma grande distância, um mundo de separação;

meus olhos eram fixos em espera por você.

Poças de água e folhas mortas espalhavam-se pelo pátio, resquícios da chuva da noite anterior. Por entre as árvores do jardim do templo pôde vislumbrar um pequeno rio, com não mais que um metro de profundidade e correnteza de águas claras que corriam ligeiras. A voz muito nítida vinha dali. Parou atrás de uma árvore e ficou deslumbrado com o que viu.

E você estava lá...

resplandecendo, brilhando, cambaleando em felicidade,

enquanto eu estava aqui, queimando por você...

As nuvens estão trovejando novamente;

com um grande estrondo chuvas têm caído.

Uma tempestade vagante chegou,

mas não conseguiu extinguir,

Oh meu amor, esta luz não foi extinguida, porém muito eles atormentam -

a chuva, o vento, o raio!

Era um garoto de pele levemente bronzeada e cabelos dourados como o sol, muito mais belo que qualquer anjo que sua imaginação pudesse conceber. Os olhos estavam fechados e as palavras fluíam de seus lábios como fluía a água das nascentes nas montanhas. Os longos cabelos espalhavam-se pela superfície do rio, formando ondas de ouro.

Seu corpo acompanhava o movimento das águas, ondulando em uma dança oscilante entre a sensualidade e a inocência. Um sorriso de puro contentamento lhe surgiu nos lábios róseos. Um vidro de essência de sândalo que trazia nas mãos foi virado de encontro ao corpo. A essência amarronzada deslizou em gotas.

Meu amor, venha agora a mim, meu amor,

Oh meu amor, venha agora a mim, amado,

Olhe para esta menina louca!

Ela não conhece nada do mundo.

Uma rajada de vento atravessará,

e traz com isto o seu amado.

Passos firmes seguiram em direção à margem. Mu olhava com o rosto corado para o ser mais perfeito que já vira. A beleza do menino o encantava. Era a primeira vez que sentimentos daquela espécie o invadiam. O coração batia acelerado, acompanhando o ritmo apressado da respiração. Um sorriso bobo nos lábios.

Permanecia escondido atrás de uma frondosa árvore Bo. Viu o garoto abrir os olhos, que eram do mesmo tom azul esverdeado das águas do Rio Sagrado, e sair da água. Foi sentar-se sobre o musgo que cobria o chão, as mãos finas e delicadas espalhando a essência e outro óleo perfumado sobre o corpo. O perfume de sândalo espalhou-se.

Meu amor, venha agora a mim, meu amor,

Com todo meu coração, eu não deixei que esta lâmpada de amor fosse extinguida

Oh amor, esta luz

Com todo meu coração eu não deixei que esta chama de amor fosse extinguida

Oh amor, esta luz

Oh amado, amado, amado

As palavras da música calavam fundo no coração de Mu. Eram um chamado para ele. Toda a sua vida aprendera que o desejo só poderia trazer dor e desgraça. E, no entanto, desejava aquele menino. Desejava beijá-lo, estreitá-lo em seus braços e nunca mais soltar. Não. Não era apenas desejo. Era amor.

--Por que não vem até aqui e conversa comigo? – perguntou gentilmente o menino ao terminar a canção.

Mu assustou-se. Não fazia idéia de que o garoto sabia que estava ali, nem fizera qualquer barulho que pudesse denunciá-lo. Aproximou-se envergonhado. O rosto levemente avermelhado, lutando para acalmar a respiração. Sentou ao lado dele sem saber o que dizer.

--Você chegou com o mestre Kanon, não é? Quando fui vê-lo esta manhã ele pediu para que te mostrasse o templo. Já ia buscar você. Meu nome é Shaka.

--Eu... me chamo Mu.

Shaka passava a toalha sobre a pele úmida. Tinha os olhos fixos em Mu. Era tão lindo. Parecia uma boneca de porcelana fina daquelas que vira no mercado da cidade. Mas o garoto não parecia frio como a porcelana. Parou o que fazia e estendeu a mão, acariciando-lhe o rosto. A pele morna aqueceu sua mão, fria por causa da água do banho. O garoto sorriu e corou mais ainda. Havia gostado do toque.

--Seus olhos... parecem tão familiares – disse encarando os olhos de Mu.

--Os seus também – disse timidamente.

O garoto louro brincava com os fios de cabelos do outro. Passou os dedos sobre as pintas da testa, descendo novamente para a face. Shaka sentia uma vontade incontrolável de abraçá-lo, de beijá-lo. O mesmo que sentia com Lune. Mordia o lábio inferior, tentando se controlar.

--Dizem que os olhos refletem a alma... acha que nos conhecemos em outra vida? Que minha alma está reconhecendo a sua? – perguntou Mu com a expressão mais doce e ingênua que Shaka já vira.

Estava confuso. Aprendera que cada alma nova que Brahma cria é divida ao meio e assim desce à terra. A missão em cada vida é, sobretudo, encontrar a outra metade, aceitá-la e viver o amor que as une. Então como ele podia sentir o mesmo por Lune e por Mu?

--Eu tenho certeza – disse. Chegou mais perto e puxou o rosto do garoto de encontro ao seu. Beijou-o levemente, afastando-se com muito custo. – Seja bem-vindo. Espero que seja muito feliz aqui.

Faria tudo o que estivesse a seu alcance para que Mu fosse feliz. Acontecia o mesmo que com Lune. Encontrara-o há menos de cinco minutos e já o amava como se o conhecesse a vida toda. O que Lune acharia disso? Sentia que não o estava traindo, que ele compreenderia. Talvez até sentisse o mesmo.

Mantinha os rostos próximos. Mu nada fazia para se afastar. Ajoelhou-se diante de Shaka e fez-lhe a mesma carícia. Um filete de sangue desceu pelo lábio que o indiano mordia com toda a força. Sem saber o que fazia e por que fazia, Mu colheu o sangue em um beijo.

Shaka deitou-se extasiado, puxando o outro sobre si. Iniciaram um beijo lento, suave. Os lábios se tocavam, brincando em carícias inocentes. As mãos de Mu espalmadas sobre o peito de Shaka, o corpo roçando no dele. As mãos de Shaka deslizando pelas costas de Mu, aproximando-o mais.

Um raio de luz prateada cortou o céu. Os dois assustaram-se com o estrondo e se afastaram. Lune permanecia em pé, há alguns passos deles, observando-os. Não sentia raiva de Shaka. Não sentia ciúmes. Pela primeira vez compreendia inteiramente o significado da palavra amor. Entendeu o que seu pai queria dizer quando afirmou que via em Donko todo o seu mundo, toda a sua vida. Seu mundo estava ali.

Não sabia de onde tinha vindo aquele outro garoto. Simplesmente seu coração o reconhecia e sentia por ele um amor tão grande quanto o que sentia por Shaka. Finalmente estava completo. Andou lentamente e ajoelhou-se ao lado deles. Mu estava ajoelhado, olhando-o com uma expressão cheia de ternura e amor. Shaka estava sentado, os olhos baixos fitando o chão.

--Oi Shaka – disse Lune dando-lhe um beijo carinhoso.

--Lune eu...

--Não precisa explicar nada – sorriu. – Eu sou Lune, e você? – perguntou a Mu.

--Sou Mu – respondeu um pouco envergonhado. – Você... seus olhos... também não me é estranho...

Sem aviso, o inglês o abraçou e pousou os lábios sobre as duas pintinhas roxas da testa, dando pequenos beijos, entreabriu-os e passou a língua sobre elas. Mu sentiu a visão turvar, era inebriante. Segurou-se nos ombros de Lune para não cair para trás.

--Eu lembro de você – disse afastando-se um pouco. Segurava uma das mãos de Mu entre a sua, estendeu a outra para Shaka que correspondeu ao gesto, chegando mais perto. – De você dois, em um campo florido num dia de sol.

A luz prateada que rasgara o céu viera rodear os três. Os monges que limpavam o pátio correram a ver o que acontecia nos jardins. Flores desabrochavam sobre a grama, as orquídeas floresciam nas árvores e pássaros cantavam ao redor deles. O sol estava mais brilhante e a grama mais verde. Da janela de um dos quartos do segundo andar, Saga e Kanon sorriam um para o outro. Os Três estavam reunidos.


Saori Heathcliff terminava de atar os laços do chapéu e resmungava pela falta que uma carruagem lhe fazia. Odiava chegar na cidade à cavalo. Todas as damas possuíam uma carruagem. Shion podia ter piedade e lhe dar uma. A criada entrou apressada dizendo que quatro senhoras e algumas crianças estavam na sala à sua espera.

Estranhou a visita inesperada. O chá seria na casa de Marin naquela tarde. Pediu à criada que avisasse Shion e que mandasse alguém arrancar Lune daquele antro em que estava enfiado desde manhã. Tirou o chapéu, as luvas e o xale e foi ver o que acontecera. Entrou na sala e deparou-se com quatro senhoras sentadas no enorme e confortável sofá e cinco crianças em pé, atrás delas.

--Saori, querida, peço desculpas por termos vindo sem avisar – disse Ártemis, indo cumprimentá-la. – Algo escabroso aconteceu, a cidade ficou louca! Precisávamos falar com você!

--Não há problema, já pedi que providenciassem o chá para todas.

--Está é Hilda, e sua filha Eurídice. Elas chegaram ontem da Inglaterra. Hilda é esposa do senhor Siegfried, que veio para exportar tecidos. Vieram no mesmo navio que Pandora, a esposa do senhor Abel, que não pôde comparecer.

--Muito gosto em conhecê-la – disse a mulher de cabelos azuis-claros, presos em um coque na nuca. Vestia-se austeramente de negro, assim como a filha de treze anos que parecia a cópia da mãe em tamanho menor.

Saori pressentiu que se daria muito bem com Hilda e que a menina Eurídice poderia ser uma ótima esposa para Lune. Fez um aceno de cabeça, retribuindo o cumprimento.

--Então, o que acontece de tão grave para me dizerem que a cidade ficou louca?

--Comecemos pela chuva de ontem – disse Marin. – Em mais de dezoito anos morando aqui nunca vi chuva nesse período. E hoje pela manhã quando fui ao mercado com minha criada, não se pode deixar os criados comprarem sozinhos vocês sabem, vi a maior balbúrdia! Indigentes com as mãos repletas de moedas de ouro, comentários de que elas haviam caído junto com o aguaceiro.

--E curas milagrosas! – disse Éris. – Imagine que um mendigo manco e caolho que vivia a mendigar perto da igreja está andando como se fosse normal e com seu olho de volta! Ou ele fingia, ou fez pacto com o Maligno!

--E o raio que cortou o céu hoje de manhã – disse Ártemis. – Pessoas afirmam que caiu naquele antro que fica deste lado do rio!

--E carneiros e cabras! Nascidos aos montes durante a noite! Árvores que nem estão na época cobertas de frutos!

--Ouvi uma mulher comentando que peixes saltavam nos barcos dos pescadores e deixavam-se abater até perto do meio-dia – disse Hilda em um tom sombrio.

--Valha-me Deus! – exclamou Saori, chocada.

--Não pode ser cousa boa – disse Éris, deleitada em poder novamente prever catástrofes. – É o sinal do Fim dos Tempos, estou dizendo!

--Boas tardes. Mandou me chamar, senhora minha mãe?

Lune entrou contendo o sorriso. Se o mundo acabasse naquele instante, partiria feliz. Sentia-se tão leve que poderia tocar as nuvens. Shaka, Mu e ele haviam se entendido muito bem, como se fossem conhecidos desde o início dos tempos. Passearam a manhã toda, mostrando a Mu seu novo lar.

O garoto que viera das montanhas era o mais velho dos três, no entanto, logo fora adotado como o queridinho dos outros dois. Sua extrema delicadeza, gestos tímidos e expressão inocente encantavam Shaka e Lune. Ao olhar para ele sentiam vontade de apertá-lo em seus braços até que toda aquela tristeza velada sumisse das duas esmeraldas resplandecentes que eram seus olhos.

Viera para casa à contragosto, somente para não arranjar mais problemas com Saori. Era suficiente ter que começar a ir à bendita Escolinha Dominical da igreja e ficar ouvindo o ministro que mais tinha cara de lunático, maníaco e psicopata, falando um monte de besteiras deprimentes nas quais jamais acreditaria.

--Não deveria ter precisado mandar chamar. Seu dever e ficar em casa e rezar. Quantas vezes vou ter que repetir que não o quero naquele antro? – disse com os olhos brilhando de raiva. – Bem, você tem visitas. Estes são Hagen, sua irmã Freya, Mime, Fenrir e Eurídice. Acompanhe-os até o jardim. Espero que faça amizades e largue daqueles selvagens.

Fez sinal para que as crianças o acompanhassem. Eurídice olhou para a mãe, esperando seu sinal de aprovação.

--Pode ir, minha filha. Saori, importar-se-ia em mandar uma criada com eles? Não seria de bom tom as meninas ficarem sozinhas com os garotos.

--É claro, tem toda razão. Você – disse apontando para uma criada chamada Meera, da qual não pronunciava o nome por achar que era pecado dizer aquelas palavras demoníacas da língua local. – Vá com eles e não os deixe sozinhos.

A mulher de meia-idade saiu atrás das crianças. Lune achou que seria o cúmulo do tédio passar o resto da tarde, que estava longe de acabar, com aquelas crianças de ar tristonho e infeliz. Após uma segunda olhada notou que de ar tristonho e infeliz, apenas a face de Eurídice continuava encoberta.

Notou que Hagen segurava a mão da irmã entre a sua com todo o cuidado. A menina sorria. Um medo contido desprendia-se do espírito dos dois. Fenrir mantinha-se um pouco distante.

--Ele não é muito sociável – disse Mime olhando para o garoto de cabelos azuis e olhos alaranjados.

--Também, sendo filho da Éris e do pastor Tatsumi – riu Hagen.

--Melhor que a sua mãe que passa o dia escovando os cabelos – resmungou o menino cruzando os braços.

--Vocês dois não vão começar de novo! – repreendeu Mime. Divertia-se com as brigas dos dois, mas não conhecia nem Lune nem Eurídice e tinha medo de que os segredos do pequeno grupo fossem delatados por eles às mães, o que seria uma verdadeira tragédia.

--Eu estou quieto no meu canto, é ele que implica.

--O implicante aqui é você! Não sei como Mime te agüenta – replicou Hagen, recebendo um cutucão da irmã.

Eurídice mantinha-se em silêncio, alheia aos acontecimentos. Uma tristeza profunda inundava os olhos dela, dando a impressão de que se sentia a criatura mais desgraçada e infeliz que pisava sobre a terra.

Meera sentou na grama, há uma distancia suficiente para ver os meninos e não ouvir o que eles falavam. Não era bisbilhoteira e tinha mais o que fazer que mexericos à patroa. Era da inteira confiança de Shion, fora cedida por Samia para auxiliar nos trabalhos de dentro de casa. Não trairia o patrão ou seu filho, ainda mais sabendo que ele era o único capaz de fazer o menino Donko sorrir.

--O que vocês costumavam fazer para se distrair? – disse Lune puxando assunto. Começava a suspeitar que aquele grupinho não gostava tanto de rezar quanto suas mães. Fenrir lançava uma olhar quase obsceno à Mime, que tinha o rosto um tanto corado.


Radamanthys andava distraído pelas largas ruas de Calcutá, conhecia aquele trajeto de cor. Era o caminho do Chalak Chalak. Lá ele descobria as novidades sobre chegadas e partidas dos navios. Quando descobria algo de seu interesse, corria ao escritório do tio para lhe informar ou cuidar pessoalmente do negócio. Conseguira com ele dinheiro emprestado para financiar a compra de alguns lotes de seda para exportar e se saíra muito bem.

Passava muitas tardes bebendo e jogando – sem apostar dinheiro, é claro – para se distrair da modorra na qual vivia aquela cidade que em nada lembrava os divertimentos da movimentada Londres. Não haviam teatros, óperas ou casas de concerto. O jardim botânico e uma respeitável casa de chá inglesa eram os divertimentos locais.

Ele não trocava as mesinhas empoeiradas do Chalak Chalak por lugar nenhum em toda aquela terra. Acostumara-se à música alegre, as pessoas gentis, e a vida desregrada que voltara a levar. Não mais achava selvagens os habitantes locais. Eles agora eram seus amigos.

No outro lado da rua viu uma pessoa que lhe despertou a atenção. A jovem de cabelos e olhos arroxeados que vira na floresta, em uma tórrida manhã de novembro. Vestia-se de preto, à moda das senhoras indianas de respeito. Trazia os cabelos soltos e andava apressada. Correu até ela, tocando-lhe o ombro.

--Com licença, senhorita – disse.

--Eu o conheço? – perguntou ela com uma frieza glacial.

--Bem, não sei se está lembrada... eu a vi em um momento ruim, há uns meses atrás, na floresta perto daqui...

--Creio ser impossível. Cheguei ontem à tarde da Inglaterra, para me juntar a meu marido. Se me dá licença, não fica bem nos falarmos – cortou-o secamente.

--Espere! Apenas me diga seu nome!

Mas era tarde. A mulher dobrara uma esquina e sumira no meio dos passantes.

--Quer saber quem é ela? Eu sei – disse um homem estranho que parou ao lado de Radamanthys. Parecia ser a própria escuridão em forma de gente. – Chama-se Pandora, diz ser esposa do senhor Abel, mas nós dois sabemos que ela nunca pisou na Inglaterra.

--Quem é você? O que mais sabe sobre ela?

--Dê tempo ao tempo, e você também saberá... Kasma.

O homem dissolveu-se no ar. Radamanthys olhou em volta, atônito. Achou que devia ser efeito da bebida. Contudo, não tinha bebido um só gole naquele dia. Não tinha importância, beberia assim que chegasse no bar. Estava precisando. Ou a mulher era casada, ou ele estava doido e ela era uma bruxa. Que sorte dos infernos essa minha!, resmungou, seguindo seu caminho.


Amassou a folha e jogou-a contra a parede. Era a quinta relação que estragava. Não conseguia se concentrar. Donko. A única coisa que lhe vinha à mente, a única em que conseguia se concentrar. O gosto daquele beijo. O corpo de Donko sobre o seu. Estremecia só de pensar.

Sonhara com ele naquela noite. Não havia fugido. Deixara que Donko o beijasse até se cansar e caísse exausto nos braços dele. Pensamentos nada cristãos e corretos. Pensar naquelas coisas com mulheres que não fossem a sua já era o bastante para mandá-lo para o inferno depois da morte. O fato de Donko ser outro homem só piorava a situação. Sua alma estava perdida.

Doce perdição. Fechou os olhos. Podia sentir Donko acariciando seus cabelos. Assustou-se com três batidas na porta. Suava frio. Pára com isso, Shion. É errado, é pecado e você vai para inferno. Pare com isso agora! Infelizmente não foi possível, já que a tentação em pessoa aparecia em sua frente.

--O que você quer? – perguntou com voz trêmula.

--Falar com você – respondeu Donko calmamente.

--Sobre negócios?

--Sobre nós dois. Ontem deixei você fugir de mim, porque precisava pensar. Acho que já pensou tempo suficiente – disse fechando a porta. Girou a chave na fechadura, produzindo um estalido seco.

--Donko... o que...

--Não precisa fazer essa cara. Só tranquei porque sua mulher está lá embaixo com um bando de carolas fanáticas e não quero correr o risco de uma delas entrar. Pode ficar com a chave – disse ele estendendo a chave para Shion que a pegou e colocou sobre a mesa.

--Eu... eu não posso, Donko... não consigo carregar o peso desse pecado comigo...

--E pode carregar o peso de se negar a felicidade?

Donko fez a volta na mesa e parou ao lado de Shion. Ele levantou dando alguns passos para trás. Só o cheiro das folhas de chá que emanava de Donko era o suficiente para deixá-lo tonto. O indiano foi se aproximando, até prensá-lo de encontro à parede. Apoiou uma mão de cada lado do corpo de Shion e beijou-lhe o pescoço de leve.

--Donko, pára... Não faz isso comigo, por favor... Sinto que vou explodir de tanta culpa...

--Tem certeza? Se eu sair por aquela porta, não volto nunca mais, Shion.

Shion mexia a boca, sem conseguir pronunciar som nenhum. Só precisava dizer a Donko que sim, que tinha certeza. Ele iria embora e nunca mais se veriam. Mas o pecado continuaria em sua mente, em seu coração. Sua alma estava perdida.

--E então? Quer que eu vá embora? – disse com suavidade. As mãos calejadas acariciando o rosto de porcelana de Shion, com todo o cuidado, temerosas de machucá-lo.

--Por que você faz isso? Por que você teve que aparecer na minha vida?

--Já disse. É só você pedir e eu vou embora. A decisão é sua.

--Pra você é fácil dizer isso. Você chega, diz que me ama e agora diz que a decisão é minha... acha que eu poderia carregar o peso da sua infelicidade?

--Está vendo, você se importa comigo. Por que se importaria se não sentisse nada por mim? – disse beijando novamente o pescoço de Shion.

--Quem disse que eu não sinto? – disse suspirando. – Eu amo você Donko. Amo você acima de qualquer moral, de qualquer razão, de qualquer preconceito... mesmo morrendo de culpa e sabendo que vou pro inferno não consigo tirar esse amor de dentro de mim...

Sentiu os lábios serem tomados com força. O corpo de Donko pressionado contra o seu. A mão dele entrando por debaixo da camisa de algodão que usava, as unhas arranhando suas costas de leve. Abraçou-o e correspondeu ao beijo como fizera na tarde anterior. Com a outra mão Donko procurava os botões de sua camisa.

--Donko pára! – quase gritou, dando-se conta do que estavam prestes a fazer. – Olha... me esquece... eu não posso fazer isso... nunca vou poder... acho melhor tratarmos apenas de negócios daqui para frente. Não podemos ter uma relação desse tipo... é impossível...

--Eu não acredito, Shion! Jamais pensei que você fosse tão cabeça dura! Se é assim que quer, tudo bem! Não venha me culpar por sua infelicidade depois!

Afastou-se de Shion, pegou a chave e abriu a porta, saindo arrasado. Shion fechou a porta calmamente, voltou a sentar-se e apoiou os braços sobre a mesa. Deitou a cabeça sobre eles e deixou que algumas lágrimas descessem e levassem a dor que sentia. Assustado, constatou que o sentimento de culpa era ínfimo se comparado ao pânico que sentiu ao perceber aonde os beijos e carícias os levariam.


Notas:

1- Na Índia existia o costume de as mulheres escolherem o futuro marido jogando nele um limão, é como uma declaração de amor. A historinha de acertar ou não a fruta e ter a benção ou a reprovação dos deuses é mais uma invenção minha.

2- Mais uma música da trilha sonora do filme Devdas. Essa chama Silsila Ye Chaahat Ka e, na minha opinião, é a música mais linda da trilha. A tradução, como a da música anterior, foi feita por mim a partir da tradução inglesa, já que a versão original também é em hindi. Muito recomendada pra quem quiser baixar!

Meera é mais uma personagem original criada por mim.

Antes de mais nada: FELIZ ANO NOVO pra todo mundo! Dessa vez foi quase, mas o Shion entrou em pânico e mandou o Donko pastar chá mais uma vez. Quem sabe da próxima eles não se acertam? XD Aí estão Shaka, Lune e Mu juntinhos. Espero que todos tenham gostado de mais esse capítulo e continuem acompanhando a fic. Obrigada a Sak. Hokuto-chan (Kanon finalmente voltou, e cheio de saudades do Saga XD Fiquei muito feliz com a sua review, espero que continue gostando da fic! Em breve, mais Saga e Kanon! Os cabelos do Lune foram um tormento, pq eu tb não sabia qual era a cor deles, acabei escolhendo lilás mesmo), Yumi Sumeragi (Shion vai tomar jeito... um dia hehehe É só o Donko ter um pouquinho de paciência com ele XD Nhaaa! Que bom que vc ta gostando da fic! Sem vc ela realmente não teria saído! Nos próximos capítulos, mais carolas!), Ia-Chan (Lune é um pouquinho tarado sim hehehe dessa vez a vítima foi o pobre do Mu, que é o único meio inocente ali XD a Saori ainda terá outras oportunidades pra ver e infartar, aguarde! Espero que goste de mais essa cena do Donko e o Shion) e Litha-chan (Fico feliz que vc esteja gostando da fic! Vou ficar esperando seus comentários! Nhaa! Lune é tão fofo! Adoro ele!). E obrigada também aos leitores tímidos e silenciosos que não comentaram ainda. Façam o Ano Novo dessa escritora feliz! Comentem a fic!

No próximo capítulo: Shion chama Donko pra conversar, será que ele finalmente caiu em si e vai parar de dar foras no indiano? Aguardem, sábado que vem, a atualização! Bjinhos pra todos!