Capítulo 9 - Hinayana

Naquela madrugada em que uma estanha chuva caíra sobre Calcutá, fora de época e sem propósito aparente, e que Mu chegara juntando a Divina Trindade em um mesmo solo, trinta e dois milagres foram testemunhados. Foi uma noite abençoada, bem como a manhã que a seguiu. O Fim dos Tempos não deu mais indícios de sua chegada e Éris foi obrigada a cessar os comentários.

Dias e noites sucediam-se e Shion insistia na resolução de não falar com Donko sobre qualquer assunto não relacionado a negócios. Donko, por sua vez, negava-se a falar com Shion sobre o que quer que fosse. Dera para mandar recados por Samia e acertar as coisas com Radamanthys na cidade. Lune não entendia como aqueles dois podiam ser tão teimosos. Precisava ajudar o pai de alguma maneira.

Os Três estavam a cada dia mais unidos. Não conseguiam ficar longe um do outro e Saori era obrigada a aturar constantemente a presença de Shaka e Mu em sua casa. Tinham adquirido o costume de dormirem abraçados. Shion estava feliz que o filho tivesse amigos tão queridos. Gostava daqueles dois, pareciam bons meninos.

O garoto inglês também descobrira que nem a Escolinha Dominical era tão ruim, nem os novos amigos tão tediosos. Mime viera confidenciar-lhe que mantinha um romance secreto com Fenrir e que pretendiam fugir juntos assim que tivessem dinheiro para viverem sozinhos longe dali. Hagen parecia ter um dom especial para espantar os pretendentes da irmã, que não ficava nem um pouco chateada em ter que adiar seu casamento por falta de noivo.

E havia Eurídice. Surpreendera a garota chorando mais de uma vez. Ao ouvir o som de um piano ou tocar as teclas de um ela não conseguia controlar as lágrimas. Sofria por amor. Não deixava ninguém se aproximar e as tentativas de Lune de descobrir por quem sofria e tentar ajudar eram vãs. Saori manifestava abertamente a intenção de oficializar um compromisso entre eles. Shion relutava e adiava a decisão de falar com o pai da garota.

Casar Lune era o que menos lhe preocupava. O filho estava radiante de felicidade, isso era visível. Não ia interferir até que o próprio Lune dissesse que queria casar. Entrou no escritório lembrando da última vez em que conversara com Donko, do pavor que o invadiu quando sentiu os beijos dele descerem por seu pescoço.

Sentou e apoiou os cotovelos na mesa. Deixou o rosto cair sobre as mãos, fechando os olhos. Respirou fundo e abriu os olhos, procurando os papéis que precisava ver e assinar e os relatórios que Radamanthys trouxera da cidade. Notou um envelope amarelado com seu nome escrito. Abriu e encontrou duas folhas dobradas, escritas em tinta vermelha na letra cuidadosa do filho.

"Oi pai. Seria melhor se tivéssemos uma conversa sobre isso, mas como o senhor se recusa a falar do assunto me obrigou a escrever esta carta. Espero de todo o coração que leia até o fim e que pense sinceramente nas palavras que vai ler. Sei que está sofrendo por amor. Por um amor que acredita ser pecado.

Como o senhor sabe o cristianismo não é a única explicação do mundo e da vida, e para mim não é a mais correta. Desde pequeno aprendi com minha mãe o que ela chama de moral e bons costumes. Aprendi a temer um Deus vingativo e violento que pune os homens pelo mais insignificante deslize. Aprendi que amar, desejar e ser feliz são pecados passiveis das piores punições.

Não acredito que seja assim. O Deus que nos criou deve ser repleto de amor e bondade e deve ficar feliz quando amamos e somos felizes. Encontrei na Tradição dos Templos Gêmeos tudo aquilo em que sempre acreditei e queria dividir com o senhor. Pode achar que seu filho se tornou um herege, ou como minha mãe ia preferir, que vendeu à alma aos demônios desta terra. Tudo o que posso dizer é que aqui existem demônios sim, mas também existem anjos, criaturas iluminadas e deuses tão bondosos quanto o Um que criou a todos eles.

Uma lenda indiana muito antiga que Shaka me contou diz que o Hinayana (que quer dizer O Pequeno Caminho) foi criado pela Divina Trindade, no tempo em que os deuses ainda andavam sobre a terra e viviam entre os mortais. Não é uma religião, mas uma filosofia de vida, um conjunto de ensinamentos que ajudam a alma a adquirir gradualmente a perfeição de que necessita para se libertar do ciclo de existências e ir descansar no paraíso.

Donko deve ter contado ao senhor sobre a Trindade e sobre a crença dos indianos na reencarnação da alma. Continuando, depois que os deuses deixaram a terra, a Tradição do Hinayana começou a ser impregnada por superstições populares que nada tinha a ver com o Caminho. Então os Mestres do Templo, responsáveis pela manutenção da crença, decidiram afastá-la do mundo e trancá-la atrás dos muros dos Templos Gêmeos. Apenas os que se mostrassem sábios e dignos poderiam conhecer a verdade.

Surgiram duas correntes: o Hinayana, que continuou em sua forma pura dentro do Templo e entre aqueles que eram dignos de segui-lo, e o Hinduísmo, que era o Caminho complicado e impregnado por tradições populares. O Hinduísmo tornou-se religião, seguido pela maioria das pessoas desta terra.

O Hinayana é sustentado pelas Doze Crenças e o Princípio Supremo (1). É uma filosofia para ser seguida, sentida. Ninguém se converte ao Hinayana. As pessoas que acreditam nele passam a segui-lo e a vivê-lo. É nisso que eu acredito, é isso que eu vivo. Abaixo seguem as Doze Crenças e o Princípio Supremo para que o senhor os conheça e decida se quer acreditar neles também.

1. Deus é tudo, tudo é Deus: a essência da Força Maior que criou a Divina Trindade e, portanto, o mundo está presente em todas as coisas.

2. Lei do Karma: as ações de uma pessoa determinam como será sua próxima vida. Tudo o que uma pessoa fizer voltará para ela mais cedo ou mais tarde e na mesma medida.

3. Dharma: a ordem natural do mundo, regido pela Divina Trindade de acordo com a vontade de Brahman. É o Equilíbrio que deve ser mantido em todos os aspectos.

4. Crença na Divina Trindade, protetora do Dharma e que precisa ser mantida acordada para olhar pelo mundo.

5. Crença nas divindades secundárias, criadas por Brahma para auxiliar na proteção da terra e manutenção do Dharma.

6. Sanrara: o ciclo de existências. As almas recém criadas por Brahma são imperfeitas, por isso estão condenadas a nascer e renascer até alcançarem a perfeição.

7. Iluminação: estado de perfeição da alma, no qual ela se liberta do Sansara e passa a viver com os deuses no Nirvana, o paraíso supremo.

8. Viver de acordo os Yamas (não violência, verdade, integridade, justiça e compaixão) e Niyamas (limpeza, autocontentamento, disciplina, auto-estudo e entrega).

9. Dualidade: tudo o que existe sobre a terra, incluindo as almas mortais e imortais, é formado por duas partes que se completam e devem ser mantidas em equilíbrio.

10. Prática do yoga, da meditação e das orações diárias.

11. Crença no princípio de que todas as almas são divididas em duas ao serem criadas e assim descem a terra. Sua principal missão é encontrar a outra metade e viver o amor que as une. As almas são assexuadas e descem no corpo que mais as auxiliar no cumprimento de sua missão secundária.

12. Crença no poder do Acaso ou Destino, que às vezes interfere na vida dos homens, fazendo-os retornarem ao caminho correto quando dele se afastam por escolhas insensatas.

E o Princípio Supremo do Amor: reflexo mais perfeito do espírito de Brahman, que jamais deve ser negado, pois negar o amor é escolher o caminho da condenação. O Amor é aquele que tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O Amor não é egoísta, não deseja nada além da felicidade de quem ama. É com o Amor e pelo Amor que duas metades se tornam uma só alma novamente.

Para o Hinayana Brahman é Deus, a primeira alma que surgiu do Nada Inicial. No começo dos tempos ele se sacrificou e tornou-se o mundo. Sua energia está em toda a parte e é personificada pela Trindade. É a ele que se dirigem as orações. Não sofra mais pai, o senhor encontrou a Dádiva Suprema, que é chamada Amor".

Shion permanecia em silêncio com as folhas na mão. O Hinayana era tão diferente de sua religião. Reparou que a palavra "pecado" nem sequer era mencionada. As Doze Crenças explicavam muita coisa que antes não compreendia. Explicavam porque ele havia se apaixonado por outro homem. E mais, não condenavam seu amor.

Uma vez ouvira um frade católico que ia ser queimado na fogueira dizer que cada um acreditava no que queria acreditar, no que consolava sua alma e lhe trazia paz. O Hinayana lhe trazia paz. Sentiu-se a pior das criaturas por ter mandado Donko embora naquela tarde. Não havia dúvidas de que ele era a outra metade de sua alma.

--Pai? Posso entrar? – perguntou Lune. Esperava ao lado de fora, calculando mentalmente o tempo que o pai levaria para ler a carta, se a lesse, é claro.

--Você sempre pode entrar Lune – sorriu. – Pode me explicar isto? – perguntou mostrando a pequena carta quando o menino sentou em seu colo.

--Eu tentei falar, mas o senhor não quis ouvir. Aí pensei em escrever. O senhor leu?

--Li.

--E...? – perguntou vendo que Shion não diria mais nada.

--É melhor sumir com isso antes que sua mãe veja.

--Não estou falando da minha mãe! Quero saber o que o senhor achou!

--É tão... simples – completou após procurar a palavras por algum tempo.

--A vida é simples. Nós é que complicamos. O senhor vai parar de complicar e vai falar com o Donko? – perguntou sorrindo.

--Lune...

--O senhor está com medo – disse vendo o pânico nos olhos do pai. – Não precisa. Donko o ama e não vai fazer nada para magoá-lo.

--Por que você insiste tanto?

--Porque não suporto ver o senhor assim, com os olhos vermelhos, levantando durante a noite e chorando até o amanhecer. Porque eu o amo e quero que seja feliz. E porque só será feliz quando estiver com Donko. Olha pai, minha mãe acabou o almoço e foi pra igreja, ela não deve voltar antes do anoitecer. E eu estou indo pro templo e posso ficar lá até o anoitecer também. Chame Donko e converse com ele... pelo menos tente.

--Prometo que vou pensar. Nem mais uma palavra, Lune! – censurou ao ver o filho abrir a boca para protestar.

--Ta bom! To indo! Mas pensa com carinho – disse ao sair, recebendo um sorriso do pai.

Ao passar pela sala, Lune pediu a Meera que desse um jeito de tirar as criadas de casa naquela tarde, dizendo que seu pai não estava muito bem e precisava ficar sozinho. Ela prontamente obedeceu, deduzindo que tinha alguma relação com o menino Donko e o mal-estar que havia entre ele e seu patrão há dias. Shion foi deixado só, com seus pensamentos.


--Me solta, Fenrir, você ficou doido? – disse Mime ao sentir as costas prensadas contra uma das colunatas da suntuosa catedral.

--Como você já cansou de repetir, doido eu sempre fui – riu, com um sorriso sarcástico nos lábios. – Só piorei um pouco depois que me apaixonei por você.

--Fica quieto! Se seus pais nos ouvem...

--Eles não vão ouvir. Minha mãe está rezando com as outras carolas na casa de sei lá quem. E meu pai está ocupado contando as moedinhas doadas essa semana, o que vai lhe tomar muito, muito tempo.

--Então vamos pra outro lugar – sugeriu, sabendo que de nada adiantaria.

--Outro lugar por quê? Pra mim aqui está ótimo – disse começando a beijar o pescoço do namorado, dando pequenas mordidas.

--Pára... estamos dentro da igreja... eu não quero – tentava em vão controlar os gemidos. – Nós... vamos pro inferno...

--Se você for comigo não vou me importar. Pelos menos vamos ter com que nos distrair dos tormentos eternos.

--Fenrir! – censurou-o.

O menino de cabelos azulados ria, achando graça do medo do namorado. A ingenuidade de Mime o encantava. Os dedos longos começaram a desabotoar seu colete negro e depois a camisa de algodão. Mime tentou impedi-lo e, como sempre não conseguiu.

Sentiu as unhas afiadas descerem por seu tórax, sensuais e doloridas. A pele ardia e ficava vermelha. Fechou os olhos e deixou-se desabar nos braços de Fenrir. Adorava aquela sensação. O jeito cínico, debochado e até sádico do namorado o deliciavam.

--Espero que sua mãe não pense que foi o demônio que te arranhou durante a noite – riu lembrando de quando Marin vira uma marca arroxeada no pescoço do filho e fora procurar Tatsumi desesperada dizendo que o demônio havia atacado Mime durante o sono.

Beijou-o mordendo-lhe o lábio inferior com força, provando o gosto do sangue de Mime. O ruivo decidiu ceder, não conseguindo mais resistir àquela tortura. Abraçou Fenrir e o puxou para mais perto, colando os corpos um no outro. Passos ecoaram pela nave principal assustando os dois. Escondidos atrás da pilastra viram Saori Heathcliff ajoelhar-se no bando da primeira fila e começar a rezar.

--Está vendo? Eu disse que era loucura! Vamos sair daqui – disse Mime em voz baixa, tratando de vestir-se.

--De jeito nenhum. Está achando que eu vou parar agora? – disse beijando-o com força.

--Por favor... se ela nos vir e contar pro seu pai estamos mortos... Eu faço o que você quiser – disse com um sorriso doce e submisso nos lábios.

Fenrir não conseguiu recusar. Internamente sabia que Mime tinha razão. Se Tatsumi sequer suspeitasse do que havia entre eles seria capaz de queimá-los na fogueira no centro da cidade. Não queria que nenhum mal acontecesse a Mime. Não via a hora de poder partir e levá-lo para longe de toda aquela moralidade fingida que fazia questão de punir todos os que se atrevessem a serem felizes.

Saori nada viu ou ouviu de anormal na igreja e rezou até Tatsumi aparecer e atendê-la. Conversaram muito sobre Lune. O ministro achava que o demônio havia se apossado do sangue do menino, por causa do tom azul de sua pele. Saori devia martirizá-lo até que todo o sangue ruim saísse. Só assim poderia libertar o menino e torná-lo novamente um filho de Deus e uma alma digna de alcançar a vida eterna.

Ela foi para casa pensando nos conselhos de Tatsumi, nos rituais que ele lhe ensinara e nas orações que teria que recitar ao lado do menino. Libertá-lo era seu maior objetivo. Só depois de libertar aquele filho do pecado do Maligno poderia viver em paz.


Deitado no confortável sofá da sala, com uma almofada no colo Shion pensava na discussão que tivera com Donko. Sentia falta de seus beijos, de seu riso, de sua companhia. Era um estúpido por achar que conseguiria viver sem o indiano que tanto amava. As cenas da briga não saíam de sua cabeça. Donko não gritara, não o maldissera, apenas saíra triste, de cabeça baixa após receber mais um não de sua parte.

Afinal que mal havia em se entregar a ele? O amava mais que a vida, queria muito que acontecesse. Talvez o medo de ver seu pecado tão terrível consumado com aquele ato o impedisse. Pecado. Uma simples palavra que estava acabando com as chances que tinha de viver um amor verdadeiro.

Estava deprimido. Sentia-se ridículo. Um homem de sua idade, com um filho já crescido, lamentando-se por uma briga de namorados como se fosse um adolescente imaturo e inconseqüente. Jogou a almofada no chão com um resmungo.

--Dane-se! Pecado por pecado, já pequei mais do que deveria em pensamento.

Lune tinha razão. Estava farto de ser infeliz e sofrer. Apressou-se em escrever uma mensagem e pedir a um dos garotos que trabalhavam no jardim que levasse a Donko. Tomara sua decisão e queria dizer a Donko qual tinha sido. Trancou-se no quarto, um tanto nervoso.

Saiu de lá apenas quando o mesmo menino voltou dizendo que o senhor Desai não demoraria a chegar. Estava terminando alguns afazeres importantes e viria em seguida. Tremendo e com as mãos frias, voltou a sentar no sofá. Vestia uma túnica indiana em musselina verde-clara e roxa, calças de algodão branco e chinelos bordados a ouro.

Um perfume de almíscar desprendia-se de seus cabelos soltos. Segurava um livro, tentando concentrar-se na leitura e esquecer do que estava prestes a fazer. Precisava se acalmar. Sentiu-se ainda mais ridículo. Sorriu sozinho. Desta forma Donko o encontrou.

Entrou sem ser anunciado, parando a poucos passos dele. Perdendo o fôlego com tamanha beleza. Se Shion não o queria poderia ter ao menos a consideração de não aparecer tão belo diante de si.

--"Eu sou o amor puro dos amantes que lei nenhuma pode separar" – leu a página em que convenientemente abrira o livro. Ouvira os passos de Donko e a coragem parecia minguar dentro de si, as palavras lhe fugiam. – Será que Krishna tinha noção das implicações desta frase quando a disse?

--O amor não tem noções, não tem lógica ou razão de ser. O amor é sentimento, emoção, magia pura. A mais sublime de todas as artes – disse com um sorriso triste. – Mandou me chamar? – seu tom passou a orgulhoso, quase arrogante.

--Não mandei te chamar - respondeu. Sabia que aquele tom que Donko usava era culpa sua, ferira seus sentimentos a tal ponto que não poderia esperar outra coisa. – Pedi humildemente que, se já tivesse perdoado minha grosseria e ignorância, viesse até aqui.

Levantou e se aproximou de Donko. O indiano percebeu que estava trêmulo.

--Shion, por favor...

--Não diga nada. Só me abrace – pediu. Os olhos úmidos, a voz carregada de ternura. – Não consigo viver sem você.

Donko o abraçou esquecendo toda a mágoa. Shion às vezes podia ser tão frágil e carente como uma criança desprotegida.

--Donko... você ainda... ainda me ama? – quaisquer palavras que tivesse planejado dizer estavam esquecidas. Não se decorava uma declaração de amor.

--Que pergunta! Acaso acha que um amor como o nosso pode acabar ou ser esquecido? Nem que eu quisesse poderia deixar de amar você – acariciou os costas de Shion de leve, puxando-o mais para perto.

--E você quer? – perguntou inseguro.

--Não. Você pode ser um cabeça-dura que se recusa a enxergar a verdade que está na sua frente, mas eu amo o e não me arrependo nem desejo que seja diferente.

--E qual é essa verdade que eu não quero ver? O que você deseja?

--A verdade é que não se pode fugir do amor. Amar não é errado, fugir dele é que é. E eu desejo sua felicidade, nada mais que isso.

O inglês encostou a cabeça no ombro do outro, que era ligeiramente mais alto. Fechou os olhos, decidido a acabar de uma vez por todas com aquela situação.

--Eu quero ser seu – disse com um fio de voz que Donko quase não conseguiu ouvir.

--Tem certeza? – perguntou achando que não ouvira direito.

--Não tenho certeza de nada, mas as certezas não importam mais. Me beije... me beije e me faça esquecer todas essas dúvidas que atormentam meu coração...

Um beijo delicado, leve e cheio de amor. Os lábios mal se tocando, as línguas buscando uma pela outra com vagar. Separaram-se ofegantes e foram de mãos dadas ao quarto do inglês. A porta foi trancada para evitar qualquer interrupção.

Ajoelharam-se sobre a cama, um de frente para o outro. Beijos ainda leves eram depositados no pescoço do inglês, que arfava tentando conter os gemidos que teimavam em sair de seus lábios. As mãos do indiano lutavam para desfazer o cinto de tecido que prendia sua túnica.

Tratou de desatar os nós que fechavam a abertura da camisa de algodão de Donko. Tremia tanto que se atrapalhou e só piorou os nós. Estava nervoso. Muito mais nervoso que na primeira noite de casados, quando esteve pela primeira vez com uma mulher.

O amor que sentia por Donko era muito maior, muito mais intenso que tudo o que havia sentido até então. O homem de olhos verde-esmeralda percebeu o que se passava com o amado. Cessou os beijos, segurou as mãos dele entre as suas e lhe sorriu.

--Calma, Shion – pediu docemente.

--Desculpe. Estou sendo ridículo, não é? – riu de si mesmo.

--É claro que não. Sei como se sente. Também nunca estive com outro homem antes e... nunca estive com ninguém por amor. Não por um amor como o que eu sinto por você. Você é minha alma gêmea, meu único amor verdadeiro.

Shion sorriu, mais calmo. Tomou os lábios de Donko entre os seus em um beijo rápido.

--Eu te amo – disse soltando as mãos dele e desatando cada um dos nós com cuidado.

A luz do sol entrava pelas janelas incidindo sobre os dois. As roupas foram ao chão e os corpos nus se encontravam deitados um sobre o outro. Trocavam carícias, beijos e juras de amor. O som dos pássaros cantando nas árvores lá fora e do canto das trabalhadoras na plantação de chá confundiam-se com os gemidos altos que ecoavam pela casa vazia.

Grossas lágrimas caíam dos olhos violeta de Shion enquanto sentia Donko afundar-se dentro de si. Lágrimas que oscilavam entre uma dor profunda, cortante, e um prazer quase obsceno que o extasiava. Donko murmurava palavras de amor em seu ouvido, mordiscando o lóbulo da orelha de quando em quando e enchendo-o de beijos.

Seus movimentos eram lentos, queria prolongar ao máximo as sensações abrasadoras que tomavam seu corpo. O mundo parecia ter se dissolvido em meio a elas. Para ele só existia Shion. Ele era sua vida, seu mundo, seu pequeno paraíso na terra.

O inglês apertava a mão de Donko que tinha entre a sua. Teve vontade de gritar quando sentiu o amante derramar-se dentro de si. O indiano caiu exausto sobre o corpo deitado de bruços de Shion, aumentando o peso sobre ele. Por alguns segundos perdeu a consciência.

Esperou a respiração normalizar um pouco e virou-o de frente. Queria olhar em seus olhos, ver seu rosto. Percebeu que o amante ainda não estava saciado. Usando das poucas forças que lhe restavam, ajudou-o a alcançar o ápice em seus lábios.

Shion levantou o rosto moreno de Donko entre as mãos. Tinha os olhos semicerrados, os cílios caindo graciosamente sobre a face afogueada. Murmurou um "eu te amo" que Donko respondeu com um beijo, fazendo com que sentisse o próprio gosto. Fechou completamente os olhos, caindo no sono logo em seguida.

Quando acordou encontrou Donko deitado ao seu lado. Acariciava seus cabelos, velando seu sono com carinho. Sentia uma felicidade e um alívio imensos. Sentou-se na cama, de costas para Donko, que permanecia deitado.

--O que foi que eu fiz? – perguntou a si mesmo, a expressão variando entre a culpa e a alegria.

--Não vai se sentir culpado agora, vai? – perguntou Donko um tanto exasperado. Sentou e abraçou Shion por trás. Beijou suas costas e o puxou para que deitasse em seu colo. – Foi por amor, não foi? – disse em tom mais brando.

--Foi por e com amor – disse constatando surpreso que não havia uma gota de culpa ou arrependimento em seu espírito. Beijou o amante de forma apaixonada, acomodando-se em seus braços.

--Posso saber qual foi o milagre que te fez mudar de idéia? – perguntou Donko rindo.

--Foi Lune. Ele me contou sobre o Hinayana e conseguiu me convencer de que eu estava errado.

--Então devo agradecer a ele e a Krishna depois. Ele finalmente ouviu minhas preces.

--E o que você pedia a ele em suas preces? – perguntou deitando-se sobre Donko e dando-lhe um selinho.

--Pedia que você me aceitasse, para que fôssemos felizes juntos.

No final da tarde despediram-se no quarto para evitar que alguém visse. Um pouco de cuidado não poderia ser ruim. No entanto, antes que Donko fechasse a porta, Shion não resistiu e o puxou para mais um beijo. Combinaram de se ver no dia seguinte, precisavam ir à cidade cuidar da venda do chá da última colheita que estava quase pronto.

Shion não parava de sorrir. Estava andando sobre nuvens, parecia flutuar no chão. Continuava se sentindo ridículo, mas não dava a mínima. Estava apaixonado e era correspondido. Aceitara a Dádiva do Amor em tempo.

Lune chegou em casa primeiro e encontrou o pai no escritório, fingindo que trabalhava e cantarolando uma canção indiana. Não fez perguntas. Era óbvio por demais que o pai havia seguido seu conselho.


Em uma sala escura no coração de Calcutá o aroma de mirra desprendia-se de um incensário adornado com pedras preciosas. Uma mulher de cabelos arroxeados permanecia parada no fundo da sala, olhando com desprezo a imagem de Ravana sobre o altar. Ia se comprometer a servi-lo somente porque ele lhe prometera a vingança que tanto desejava.

O servo de Ravana ajoelhou-se em frente do altar, as velas iluminando sua face pálida, os fios azul-claros do cabelo. Era Abel. O representante da Companhia das Índias Orientais chegara naquela terra sem ter onde cair morto. Queria conquistar um reino, mas a sorte não lhe sorria. O desespero e a ambição desmedida o levaram a buscar em artes ocultas de magia o que sua religião não lhe dava.

Encontrou Ravana. Entregou a alma a ele em troca do poder que sempre sonhara. Em pouco tempo se tornou influente, um cidadão inglês da mais intocada moral e mais próspera fortuna. Começou a trabalhar na Companhia ao lado de William Desai, que era então o representante.

Cobiçava o lugar dele. Quanto mais poderoso se tornava, mais poderoso queria ser. Ravana lhe dava conselhos pedindo apenas que lhe fizesse pequenos favores, já que seu espírito não podia descer à terra. Ele executava com prazer os favores para seu mestre. William foi tirado de seu caminho pelo poder do demônio. Ganhou o cargo.

Poderia seguir sozinho, mas não o fez. Seu mestre prometera-lhe mais. Ele teria o domínio da metade do mundo se o ajudasse a derrotar três garotos insignificantes e a voltar para a terra. Achou a tarefa simples, subestimou os monges do Templo e o poder dos Três. Falhou na missão de matar o primeiro menino.

As ordens haviam sido claras: se o monge encontrasse o menino vivo os dois deveriam ser mortos. As sombras de Ravana, que ele controlava, haviam se recusado a matar o monge. E o menino as repelira com uma facilidade alarmante. Prostrava-se diante do mestre com a derrota entalada na garganta. Ao menos cumprira a ordem de trazer Kali para o lado deles.

A garota tinha tanto ódio dos homens graças a armadilha que preparara que seria muito difícil se unir aos monges. Lutaria com eles porque acreditava na promessa de que teria sua vingança e de que os homens seriam destruídos, restando apenas uns poucos para a preservação da raça humana. As mulheres teriam o mundo de paz e felicidade que mereciam.

Tola. Estava sendo enganada da forma mais descarada e cínica. Assim como Abel. Suas desculpas não convenceram Ravana e o fato das sombras se recusarem a matar o monge só apressaram sua decisão. A luz avermelhada cobriu por inteiro o corpo do inglês, que se contorcia de dor no chão.

Sua alma foi expulsa da forma mais cruel e dolorosa, estando condenada a vagar sem rumo pelo mundo até o fim da eternidade. Era o preço que pagava por sua ignorância, por se aliar a um demônio cujos interesses iam contra o bem da humanidade e a preservação do Dharma. Ravana tomou seu corpo e levantou-se, olhando vitorioso para as pedras escuras da pequena sala.

Enquanto lhe fosse útil continuaria a levar a vida que o inglês imprestável e ingênuo de que se servira levava. Continuaria com a mentira de que a jovem que ali estava era sua esposa e ele um cidadão respeitável da Coroa Britânica. A verdadeira guerra começava naquele momento e Ravana já tinhas seus primeiros planos de ataque nas mãos.


Notas:

1- As Doze Crenças e o Princípio Supremo, assim como essa explicação sobre o Hinayana são um combinação adaptações minhas de histórias e crenças do Budismo, do Hinduísmo e do Judaísmo e de algumas coisinhas inventadas. Como eu já tinha dito antes, o Hinayana verdadeiro é uma das correntes do Budismo e, portanto, segue os princípios di Budismo. Essa versão é pura invencionice de uma escritora maluca XD

Esclarecendo uma coisinha: não são só os meninos que tem espíritos de deuses fundidos com a alma, então mais deles podem aparecer. Se já não apareceram.

Desculpem a demora na atualização, era pra ter saído no sábado... problemas com a net me impediram de atualizar e depois o site ficou de frescura comigo .

Obrigada a Aniannka (Shion finalmente se decidiu e deixou de ser teimoso! Agora não vai mais fazer Donko sofrer ) No próximo capítulo mais Shaka, Mu e Lune!), Ia-Chan (Shion não conseguiu continuar se fazendo de difícil, pra alegria do Donko XD Shaka aprontará mais das suas em breve!), Litha-chan (que bom que vc gostou dos limões voadores do Kanon XD Mu parece ingênuo, mas só parece hehehehe Saga e Kanon são tudo! Gostei da sua idéia de amarrar Donko e Shion juntos e pelados hehehe quem sabem em uma próxima fic XD Quanto ao Rada... ele é um caso a parte, será que ele consegue ser mal? Resposta só nos próximos caps XD), Sak. Hokuto-chan (Saga e Kanon são fofos! Em breve mais deles! Os três ainda vão aprontar muito juntos hehehe A Pandora tem o espírito de uma deusa dentro dela, logo mais explicações sobre isso!) e a Yumi Sumeragi (que está sempre suportando minhas idéias malucas e me ajudando com os fics!). Adoro todas vcs meninas! Muito obrigada por fazerem uma escritora feliz! E continuem comentando! Obrigada também aos que ainda não comentaram. Não sejam tímidos, deixem review!

No próximo capítulo: Saori vai descobrir que o marido tem um amante? O que foi que o Tatsumi mandou ela fazer com o Lune? Ela vai seguir as recomendações dele? Sábado, estarei aqui com mais uma atualização, se tudo der certo!