Capítulo 10 – Os poderes de Shiva

Lune penteava com carinho os cabelos lilases de Mu enquanto Shaka prendia-lhe túnica no ombro dando beijos leves sobre a pele perfumada. Mu era o mais velho dos três e o mais delicado também. Parecia ser feito do mesmo material que as nuvens, tão efêmero e suave quanto elas. Estavam na margem do rio Ganges, em frente ao templo do leste.

O jovem inglês acordara cedo para fugir de Saori e ir ver os amigos. Estavam acabando de fazer o ritual de purificação. Certamente a mãe não deixaria a fuga passar em branco. Pouco se importava com a punição que viria quando chegasse em casa. Fosse o que fosse, valeria a pena para ver seus dois amores e ficar com eles um pouco.

Nos dois dias anteriores ela mantivera o menino trancado no quarto sem comida e quase sem água, rezando sem parar ajoelhado sobre pedras pontudas. Quando Shion interferiu ela disse que estava fazendo pelo bem do menino e que ele como pai não deveria impedir. Estava mais que determinada a fazer do filho uma alma cristã novamente. Shaka não gostou nada de ver as marcas nos joelhos dele.

--Eu ainda acho que aquela mulher enlouqueceu. Você tem que sair de lá, Lune – disse terminando de vestir Mu.

--Meu pai precisa de mim, não posso deixar ele sozinho agora. Ele e Donko estão juntos – sorriu.

--Mesmo? Ele te disse? – perguntou Shaka curioso.

--Não disse. Mas nem precisa. Ele está todo feliz, cantando pela casa enquanto trabalha, e voltou a falar com o Donko.

--Então deu certo explicar o Caminho pra ele? – perguntou Mu que havia dado a sugestão.

--Tenho certeza que sim. Ele entendeu que contra o Amor não adianta lutar, é uma guerra perdida.

--Fico feliz por eles – disse Shaka sorrindo. – O que foi, Lune? Você está pálido.

Os olhos violeta de Lune fecharam-se rapidamente. Tonto, apoiou-se no ombro de Mu. O estômago roncava e a fome era tanta que lhe dava náuseas.

--Deixa, eu termino – disse Mu pegando a escova que Lune passava em seus cabelos. – Melhor você sentar.

--Não, tudo bem. Eu só... estou com fome – disse um pouco envergonhado.

--Está vendo! Nem comer ela te deixa! Isso não pode continuar, Lune!

--Não se preocupa, Shaka. Está tudo bem.

Sentou-se na grama perto de Mu e Shaka. Pegou a mão de Mu e fez sinal para que sentasse em seu colo. O menino recostado a uma enorme árvore recusou.

--Hoje é você que precisa de cuidados – disse docemente.

Adorava a preocupação que os outros dois tinham com ele. Era bom se sentir amado daquela forma tão doce, ter Lune beijando seus lábios enquanto Shaka o abraçava pela cintura e lhe beijava o pescoço com cuidado, tratando-o sempre como se fosse feito de cristal e pudesse se quebrar ao menor movimento mais brusco.

Porém não era tão frágil como eles imaginavam. Nem egoísta de exigir atenção quando Lune estava fraco e desmaiando de fome. Adorava ser amado daquela maneira doce e terna. Mas o que o fazia mais feliz era dar a eles seu amor, cuidar deles com o mesmo carinho que recebia.

Lune se aproximou sentando no colo do menino, apoiando as costas no peito dele. Shaka chegou mais perto e beijou seus lábios de leve. Lune estava um pouco frio. Tirou seu manto e estendeu sobre ele, tentando aquecê-lo. Mu pensava se deveria ou não tentar algo novo. Nunca testara seus poderes ao limite para ver até onde iam. Sorriu de repente fazendo aparecer um cesto de tâmaras a seu lado.

--Como você fez isso? – perguntou Shaka surpreso.

--Fez o quê? – Lune abriu os olhos, que fechara ao sentir as mãos de Mu acariciando seus cabelos, e viu o cesto de frutas. – De onde saiu isso?

--Eu não sei como... desde pequeno consigo fazer esse tipo de coisa...

Não entendia direito a natureza de seus poderes. Também não tinha medo de usá-los. Eram um dom que os deuses haviam concedido para serem usados com responsabilidade por ele. Fez uma das frutas levitarem à altura de sua mão e a ofereceu a Lune.

Shaka olhava para os dois como se os devorasse com os olhos. Às vezes pensava que Donko tinha razão. Precisava conviver menos com Kanon. O gêmeo costumava olhar para Saga daquela mesma forma e Shaka sabia muito bem o que vinha depois. Não tinha coragem de pedir a seus dois amores, por mais vontade que tivesse de experimentar.

Corava só de pensar naqueles dois anjos da forma como pensava naquele momento. Lune comeu algumas tâmaras e sentiu-se melhor. Não estava mais pálido ou frio. Não resistiu e deitou sobre ele, iniciando um beijo calmo, sentindo o gosto doce da fruta. Esticou a mão e pegou uma mexa do cabelo de Mu entre os dedos, enrolando-a neles.

Mu fez Lune se erguer um pouco, afastou seus cabelos e beijou-lhe o pescoço de forma casta. Tanto ele quanto Shaka abraçavam a cintura do menino e o apertavam conta si. A pressão que sentia estando entre os dois era deliciosa. Sentia protegido de tudo, completamente feliz. Permitiu-se soltar gemidos baixinhos que eram sufocados pelos beijos de Shaka.

Os dedos delicados de Mu afastaram um pouco sua túnica deixando o ombro de fora, passando a beijar cada centímetro de pele que era descoberto. Seus beijos eram carregados de inocência e ingenuidade, enquanto os de Shaka estavam cheios de paixão e desejo. Sentia-se no céu, no mais elevado paraíso.

Mas nem aquele pequeno paraíso estava livre das desgraças e implicações do mundo terreno. Um grito seco ecoou pela margem do rio. Um grito de puro horror e choque. Saori viera disposta a arrancar seu filho daquele antro e o via entre dois pequenos demônios que o seduziam e atraíam para o caminho do mal.

Lune assustou-se. Não via o rosto da mãe, não sabia onde estava. Sabia que o grito era dela e que estava perto. Não demorou a vê-la sair do meio das árvores e vir em sua direção. Afastou-se de Shaka e Mu, sorrindo para os dois. Amo vocês. Era o que pensava enquanto levantava e andava em direção à mãe. Os dois escutaram seu pensamento.

Algo os paralisava e não os deixava irem até ele. Era a vontade de Lune. Não queria que seus amores se envolvessem. Seria pior se interferissem. Saori estava possessa. A raiva impregnava seus olhos, transmutava sua face. Uma onda escura parecia acompanhá-la, sugando todos os sentimentos bons e enchendo de angústia o coração de Lune.

Ela o pegou pelo braço machucando-o, mas o menino não reclamou. Acompanhou o passo apresado da mãe. O silêncio era quebrado apenas pelos passos, pelo barulho do rio e pelos pássaros nas árvores à beira do caminho. A distância entre o templo e a casa pareceu triplicar. A estada não tinha fim.

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No templo do leste todos ouviram o grito que ecoou entre as árvores do lado de fora. Saíram a tempo de ver Saori arrastando Lune pelo braço. Os gêmeos não iam interferir. Era o Acaso fazendo sua parte. Olharam para Shaka com o coração apertado, sabendo que o menino em breve passaria por momentos muito difíceis.

Os olhos azul-esverdeados do garoto se encheram de lágrimas. Temia por Lune. Saori estava tomada pela insanidade. Sua obsessão religiosa poderia fazer muito mal a ele. Mu mantinha-se quieto, a face anuviada. Apertou a mão de Shaka entre a sua e o levou para dentro assim que conseguiram levantar. Foram meditar e pedir aos deuses que protegessem Lune.

Em uma das muitas salas frescas e agradáveis do templo do leste, Saga e Kanon sentavam-se nas almofadas coloridas para conversarem. Saga sentou no colo do irmão, de frente para ele. Olhou-o com carinho e sorriu. Era bom ter alguém com quem contar em momentos difíceis, alguém para dividir as angústias e preocupações. Assim como Kanon podia dividir suas angústias e preocupações com ele. Precisavam começar a pensar no que estava por vir. A conversa com os garotos não poderia mais ser adiada.

--O que vamos fazer, Saga? – perguntou quando o irmão deitou a cabeça em seu ombro.

--Esperar. E depois conversar com eles.

--Como acha que eles vão reagir?

--Não sei. Acho que no fundo eles sabem por que vieram para este mundo. Só espero que os deuses os protejam... nunca me perdoaria se algum mal acontecesse com eles.

--Eles vão se sair bem. E não se preocupe com o Shaka, ele vai conseguir. Puxou a mim – riu.

Beijou o irmão de forma possessiva, ainda não tinha matado todas as saudades dos quatro meses de ausência.

--Kanon... você só pensa nisso? – perguntou percebendo que o irmão começava a desfazer sua túnica.

--Vai dizer que você não quer?

Os arrepios que percorriam sua pele enquanto Kanon beijava seu pescoço arruinaram qualquer tentativa de mentir e dizer que não queria. Tinham coisas importantes com que se preocupar. Contudo, nada lhe era mais importante que Kanon. Afundou as mãos nos cabelos ondulados do irmão, desfazendo o laço que os prendia. Afastou-se subitamente. Uma presença estranhamente conhecida rondava o templo.

--O que foi? – perguntou Kanon, confuso.

--Ele está aqui – murmurou aflito.

--Ele quem?

--Ravana. O espírito dele anda sobre a terra novamente.

--Não é possível... ele não pode voltar... não em sua forma pura...

--Ele voltou, Kanon. Eu posso sentir. O corpo é mortal, mas a alma é a dele. Apenas uma parte muito insignificante é humana. O suficiente para mantê-lo dentro do corpo sem que a maldição dos Três o mande de volta para o lugar ao qual pertence.

--Isso significa que...

--A guerra começou. Precisamos falar com os meninos o mais rápido possível.

--Não é melhor falar com Shaka e Mu agora? Shaka vai entrar em pânico se...

--Não. Não podemos interferir no Acaso. Amanhã falaremos com os três juntos. E daremos um jeito de tranqüilizar Shaka. Ele vai entender. E vai aprender a usar a força que tem.

Trocaram mais um beijo e foram se juntar aos meninos na prece. Iam pedir força aos deuses para completar a missão que haviam recebido. Contar a garotos de 15 anos que eles devem arriscar suas vidas e, se preciso, sacrificá-las em nome de um bem maior não é a tarefa mais fácil que se pode receber. Ainda mais quando se ama esses meninos como filhos.

Os gêmeos aprenderam a amar Lune e Mu tanto quanto amavam Shaka, que haviam criado desde pequeno. Queriam poder evitar aquela luta. Proteger os garotos de alguma forma. Tudo o que podiam fazer era contar a eles a verdade, mostrar como controlar os poderes que tinham e pedir aos deuses que desse tudo certo.

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Ao chegarem em casa Saori arrastou o filho para o quarto, assustando as criadas com seu comportamento agressivo. Atirou o menino contra o assoalho bem polido do quarto e deixou-o por uns instantes. Lune sentia a dor da perna que batera em cheio no chão. O braço ainda amortecido por ter sido apertado o caminho todo.

Nada disso importava. A lembrança dos beijos de seus dois anjos não saía de seus pensamentos. A única coisa que o deixava com raiva de Saori era ela ter interrompido aquele momento. Com os olhos fechados ainda podia sentir a força dos lábios de Shaka sobre os seus, o calor dos de Mu em sua pele.

Foi arrancado de seus devaneios pela batida ríspida da porta na parede. Estava demorando a recomeçar o pesadelo. Saori entrou e o empurrou a porta de volta, trancando-a em seguida. Sem nada dizer, tirou um pequeno embrulho do bolso do vestido e despejou o conteúdo no chão, ao pé da cama. Eram pedaços de vidro quebrado. Estendeu o Livro de Orações ao filho.

--Ajoelhe-se. Está na hora de expiar os pecados graves que cometeu. Merece a fogueira pelo que vi esta tarde. Mas vou acreditar que foi o Maligno que usou aqueles dois pequenos demônios do inferno para atraí-lo ainda mais para as trevas. Vou lhe dar esse voto de confiança. Espero não estar enganada. Deus me perdoe se eu estiver e permitir que um pecador de morte continue sobre esta terra. Agora ajoelhe-se e implore a misericórdia divina!

--Mas isso é vidro...

--Eu mandei ajoelhar – disse ela, os olhos faiscando de ódio. – Não quer ir para o inferno, quer? Não vai querer passar a eternidade sendo queimado no fogo. Não vai querer trazer mais desgraça para nossa família. Seu pai perdeu o juízo e a culpa é sua. Você tem o demônio no corpo e atraí essas coisas malignas para nós. Conspirou com o espírito maligno para que tomasse a cabeça de seu pai e o fizesse entregar-se ao demônio. Isso já foi longe demais. Vou tirar o demônio do seu corpo de uma vez por todas.

Pela primeira vez Lune assustou-se com as falas da mãe. Um ódio fora do comum brilhava nos olhos dela. Ajoelhou-se sentindo o vidro entrar em sua pele. Apertou os olhos, não conseguindo impedir que grossas lágrimas caíssem. Chegou a pensar que estava sendo castigado por seu amor. Sabia que era um dos pecados mais graves que poderia cometer, era punido com a morte na fogueira na Inglaterra.

Bobagem. A Força Maior que criou todas as coisas jamais puniria sentimentos bons. Deixou escapar um sorriso ao pensar que queimaria na fogueira muito feliz por mais um momento como aquele com Mu e Shaka, sem serem interrompidos por Saori, é claro. Infelizmente, ela percebeu.

Saori o segurou pelos ombros e o empurrou na direção do chão, enterrando mais os cacos de vidro na pele do menino. Lune deixou escapar um grito. O sangue escorria quente pelas feridas. A dor o dilacerava. A sensação do sangue fluindo para fora do corpo naquela quantidade era estranha.

--Por... por que a... a senhora me... odeia tanto? – perguntou com um fio de voz.

--Porque você é filho do demônio. Filho do pecado que arruinou minha vida.

Tudo pareceu ficar escuro ao redor de Lune e ele desmaiou. Não percebeu quando Saori saiu do quarto e o trancou por fora. O sangue continuava a sair de seus joelhos cortados, alguns cacos de vidro permaneciam fincados na pele. Em seus sonhos ele não sentia dor. Sonhava com Shaka e com Mu.

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O dia amanhecera cheio de sombras. Sombras invisíveis que cobriam o sol e limitavam seu brilho. Uma sensação de expectativa pairava no ar. Lune continuava trancado no quarto e provavelmente não lhe seria permitido tomar café da manhã. Shion estava preocupado com o filho. As criadas comentaram da forma como Saori chegara com ele no dia anterior.

Quando perguntara a Saori ela dissera que o menino estava expiando os muitos pecados que tinha e só sairia do quarto quando pagasse por todos eles. Insistiu dizendo que precisava falar com ele. Pela primeira vez a esposa o enfrentou e se negou a dizer onde estava a chave. Havia algo ali que não lhe cheirava bem.

Procurava aflito o molho de chaves extras. Seu coração dizia que precisava entrar naquele quarto o mais rápido possível. Radamanthys entrou no escritório e estranhou a bagunça. Gavetas abertas e papéis espalhados por toda parte. Nada parecido com a habitual organização que Shion fazia questão de manter.

--Tio? Estou indo à cidade. Precisa e alguma coisa?

--Das chaves – disse desatento, continuando a remexer as gavetas.

--Que chaves? – perguntou sem entender.

--A cópia das chaves. Lune está trancado no quarto, quero abrir a porta e ver o que está acontecendo.

--Pode ter certeza que está se escondendo da tia. Não se preocupe, logo o pirralho aparece,

--Essa sua implicância com Lune parece coisa de criança, devia parar com isso – disse mais preocupado em revirar as gavetas que em falar com o sobrinho.

--Tá... eu to indo então. Posso negociar o que sobrou do chá?

--Pode sim. E não vai me gastar o dinheiro em bebida.

--Sim senhor – disse com ar enfadado. Saiu do aposento quase esbarrando em Donko que entrava. – Bom dia, Donko. Até logo pra vocês.

--Algum problema, Shion? – perguntou o indiano também reparando na bagunça.

--Talvez. Feche a porta – pediu.

Foi prontamente atendido. Parou de mexer nas gavetas e foi para junto de Donko, que pôde perceber que havia algo errado. Abraçou-o, sentindo-se reconfortado com a presença do amante. Trocaram um beijo carinhoso e afastaram-se um pouco.

--O que foi?

--Lune está trancado no quarto e tenho impressão de que não é por vontade própria.

--Acha que Saori o trancou? – perguntou abraçando Shion, dando-lhe algum apoio.

--Tenho certeza e isso não está me cheirando bem. Me disseram que ela o trouxe praticamente arrastado para casa ontem.

--Por que não pergunta a ela então?

--Eu perguntei. Ela disse que ele está pagando pelos pecados que cometeu. Não estou gostando disso, Donko. Tentei chamá-lo ontem à noite e hoje de manhã outra vez. Ele não responde.

--Deixa que eu procuro a chave. Você vai lá e tenta falar com ele. Se achar eu levo pra você.

--Obrigado.

--Não tem que agradecer. Gosto muito do seu filho e não quero que façam mal a ele. Nem quero ver você preocupado desse jeito – disse dando um selinho no inglês.

Shion subiu as escadas tremendo. Lune era a pessoa mais importante em sua vida. Seu filho, uma parte de si próprio. Não sabia o que faria se algo lhe acontecesse. Saori estava estranha, taciturna e quieta demais para seu gosto. Estranhamente, encontrou a chave na fechadura. Tinha certeza de que não estava ali antes.

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A cidade encontrava-se relativamente calma naquela manhã sombria de abril. Radamanthys saiu satisfeito do escritório do tio, carregando um saquinho de seda cheio de libras esterlinas (1). Acabara de vender o que sobrara da primeira colheita do chá. Guardou o pequeno tesouro no bolso da casaca, decidido a aproveitar o resto do dia tirando uma folga.

Estancou o passo imediatamente. Em sua direção vinha a séria e melancólica senhora Pandora. Conseguira confirmar que era esposa de Abel, que realmente se chamava Pandora e, diziam, viera da Inglaterra. Ele deveria estar louco, não podia ser a mesma que vira na floresta. E, no entanto, não podia ser outra.

Ela invadira seus pensamentos de tal forma que ele teve que dar o braço a torcer e admitir que não lhe bastava mais ter uma mulher para lhe fazer companhia. Queria aquela mulher. Queria Pandora. Esse sentimento não-correspondido, pois ela fingia não saber que seu admirador existia, era o responsável pelo aumento considerável do número de garrafas que Radamanthys bebia todos os dias.

Fizera várias tentativas de falar com ela. Enviara cartas, bilhetes pedindo que o escutasse. Tudo em vão. Esperava que passasse para cumprimentá-la e insistir novamente em conversar. De nada adiantava. Pandora era fria como a neve que cobria os picos das montanhas. Não tinha sentimento algum além da indiferença que não passava de raiva contida.

Odiava os homens pelo que lhe tinham feito. Jamais perdoaria. Mesmo depois que estivessem reduzidos a nada, continuaria odiando. Fingir ser esposa de Abel, agora Ravana, era insultante para ela. Faria tudo por sua vingança. Radamanthys não passava de um verme entre muitos.

Queria que a deixasse em paz. Ter de vê-lo todos os dias era um sacrifício. Achava-o patético. Suas cartas e bilhetes apaixonados faziam-na rir. Era estranho. Perdera toda a vontade de sorrir depois do que lhe acontecera. Mas ao ler aquelas palavras melosas e declarações exageradas e dramáticas não pudera conter o riso.

--Minha senhora – cumprimentou tirando o chapéu. – Gostaria de trocar duas palavras, preciso falar-lhe senão sufocarei.

--Então sufoque. Não o conheço e não tenho nada que falar com o senhor – respondeu com a frieza de sempre.

--Por que me despreza se nem me conhece?

--Por que não desprezaria?

--Porque a amo. Tenha piedade de meu amor.

--Não acha que é muita presunção de sua parte? Achar que lhe devo alguma estima apenas por afirmar sentir amor por mim? Oras! Ponha-se no seu lugar!

--Meu lugar é a seus pés, implorando humildemente que me deixe amá-la e me presenteie com a graça de um sorriso seu. Tudo o que espero é um gesto, uma palavra tua. Palavra que preencha minha loucura. Ou então deixa-me viver para sempre na escuridão que cobre minha alma quando não a vejo.

Por um instante a expressão dura e cheia de seriedade pareceu iluminada pelo reflexo de um sorriso. Era ridículo demais para que conseguisse se manter séria.

--Deixe de ser tão ridículo e saia da minha frente! – disse empurrando-o para o lado.

--Céus! Fui tocado por um anjo! – disse radiante ao sentir a mão enluvada de Pandora em seu braço.

Ela não olhou para trás. Seguiu para o forte certa de que seu patético admirador ia encher a cara no Chalak Chalak. Toda a cidade comentava a vida desregrada que levava aquele inglês. Pelo menos aquele não fazia mal a ninguém além de si mesmo. Que besteira é essa Pandora? Ele é homem. E homem nenhum presta. Todos devem morrer.

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Virou a chave e entrou, ficando chocado com o que viu. Lune chorava baixinho, sentado no meio de uma poça de sangue, com as costas apoiadas na cama. Olhava para os joelhos onde cacos de vidro estavam fincados. Aproximava as mãos deles, sem coragem de tirá-lo. Estava desesperado. Nem os grãos de milho, nem as pedras tinham feito feridas tão profundas ou entrado daquela maneira em sua pele.

--Pai... me ajuda – pediu com olhos cheios de lágrimas, ao ver seu pai parado na porto.

--Deus... o que foi que aconteceu aqui?

Shion não soube o que fazer. Não podia acreditar que a loucura de Saori havia chegado àquele ponto. Seu filho estava muito pálido, dava a impressão de que ia desfalecer a qualquer momento. Fechou a porta e ajoelhou-se ao lado do menino. Se sua mulher fizera isso, um pouco da culpa era sua por deixar que fizesse o que tivesse vontade com o menino em nome da "fé".

Sentiu um nó na garganta. Sua expressão era de pavor. Não encontrava palavras para consolar o filho, nem forças para tirar os cacos de vidro. Um filete de sangue ainda descia pelas pernas de Lune. Pela poça de sangue no chão, Shion pensou, ele estava vivo unicamente por milagre. Nenhum ser humano que perdesse toda aquela quantidade de sangue poderia sobreviver.

--Me ajuda, pai... tira isso... por favor...

Era a primeira vez que o ouvia pedir ajuda. Abraçou-o, tentando confortá-lo. Fechou os olhos e puxou o primeiro caco de vidro. Lune apertou uma mecha do cabelo do pai entre os dedos e mordeu os lábios para não gritar. Foi assim até o último caco sair.

--Precisamos de um médico... Donko! – chamou, disposto a pedir ajuda ao amante que ainda devia estar procurando as chaves. – Donko!

--O que foi? – disse ele parando na porta. – Por Krishna! O que... o que...

--Depois eu explico. Precisamos de um médico... curativos... eu não sei...

Lune havia parado de chorar. Shion estava mais desesperado que o menino. Tentava segurar as lágrimas. A ponta dos cabelos de Lune estava encharcada de sangue, sua roupa e o tapete do quarto também. Donko não demorou a juntar as coisas e concluir que aquilo devia ser resultado do fanatismo de Saori. Não conseguia acreditar em como uma mãe era capaz de fazer algo tão cruel com seu filho.

--Pai... eu... quero tomar um banho... esse cheiro de sangue...

--Calma Shion. Ele vai ficar bem – disse Donko vendo que Shion estava prestes à desabar.

Imaginava que se sentiria da mesma maneira se fosse Shaka no lugar de Lune. Aproximou-se dos dois e abraçou Shion com carinho. Em meio à dor que sentia, o menino sorriu. Estava muito feliz por seu pai finalmente ter se entendido com Donko.

--Vamos levá-lo até o rio. A água fria e corrente vai parar o sangramento. Considere-se um homem de sorte, seu filho tem a proteção dos deuses, Shion.

Shion pegou o menino nos braços enquanto Donko procurava uma roupa limpa, toalha e um óleo cicatrizante que poderia ajudar com os ferimentos. Não confiava nos médicos de Calcutá. Conseguiram sair sem serem vistos por Saori, que rezava em seu quarto. Shion sentia tanta raiva que seria capaz de matá-la.

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A água corrente de um dos pequenos afluentes do Ganges podia ser comparada a uma carícia suave feita por mãos geladas em uma pessoa febril. Lune ainda estava nos braços do pai. Donko tentava tirar o sangue que penetrara nos fios cor de lavanda com um sabonete perfumado.

O menino encostava a cabeça no ombro do pai e sorria. A respiração um pouco alterada pela água fria em que estava mergulhado e pela sensação que ela provocava nos cortes. Doía. Uma dor ardida que lhe dava vontade de gritar. E ao mesmo tempo era uma dor agradável, que lhe extasiava. Mantinha os olhos fechados, uma expressão que em nada lembrava sofrimento em sua face. Soltou um gemido baixo, tirando Shion do transe em que se encontrava.

--Está doendo muito? – perguntou com a voz fraca, arrependendo-se logo depois. Como não ia doer muito? Tirava pedaços de vidro que estavam cravados até o osso dos joelhos do filho. As feridas eram fundas e ele não conseguia esticar ou dobrar muito os joelhos, nem parar de pé sozinho. A pergunta lhe pareceu cruel.

--Eu estou bem. Sério pai, não precisa se preocupar – disse entre suspiros. Era difícil falar com aquela sensação tão intensa percorrendo todo o seu corpo. A água era parte dele e ele parte da água.

--Você quer ficar no templo? – sugeriu supondo que Lune não ia querer voltar para perto de Saori.

--Não é uma boa idéia, Shion – disse Donko.

--Por que não?

--Porque sua digníssima esposa não vai deixar barato – disse sem poupar a ironia. – Se você levar Lune para o templo ela vai com o Tatsumi, o Abel e os capachos dele buscá-lo.

--Tem razão... mas não vou suportar ver a cara dela depois disso. Não vou deixar Lune perto daquela louca.

--Donko está certo, pai. Temos que ficar. Vamos voltar para casa e ficar lá até achar uma solução melhor.

Foi o que fizeram. Quando chegaram com ele no quarto, já vestido e com os curativos feitos, encontraram tudo limpo e o tapete trocado. Shion deitou o filho na cama e colocou um travesseiro debaixo de seus joelhos para que ficasse mais confortável.

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Ébrio de felicidade. Assim se sentia Radamanthys. Com as costas apoiadas na parede externa do escritório de Shion mantinha o sorriso bobo e a expressão aparvalhada. Encontrava-se em uma espécie de transe após sentir as mãos enluvadas de Pandora o empurrando para o lado. Não tinha a mínima esperança de conseguir sequer um olhar que não fosse de desprezo de sua razão de viver. Era desanimador. Contudo, ganhara o dia. Precisava comemorar aquele toque tão gentil de sua musa.

É claro que Pandora não tinha a intenção de ser gentil. Queria apenas tirar um estorvo de seu caminho. O que não vinha ao caso para o jovem de cabelos e olhos dourados que seguia feliz para o Chalak Chalak. Uma presença estranha vinha atrás de si, como uma sombra taciturna a segui-lo de perto. Parou e olhou para trás para encontrar um par de olhos verdes inexpressivos.

--Senhor Radamanthys. Creio que temos assuntos a tratar. Lembra-se de mim, não? – perguntou com voz gélida.

Radamanthys olhou-o de cima a baixo. Saiu um pouco do transe em que se encontrava e lembrou de quem era, ou quem achava que era.

--Você... você apareceu para mim no outro dia! E me chamou de um treco esquisito... como era mesmo?

--Kamsa.

--Isso! O que você quer de mim? – perguntou intrigado.

--Sua ajuda. Em troca de algo bem vantajoso para você.

--Minha ajuda em quê?

--Meu mestre explicará. Precisa dizer se aceita ou não.

--Não posso dizer se aceito ou não sem saber do que se trata – disse irritado por não poder seguir seu caminho de vez.

--Primeiro deixe-me dizer o que você ganhará. Quer o coração da jovem Pandora, não quer? Este será seu prêmio se ajudar. Está disposto a fazer qualquer coisa pelo amor dela?

Olhou para o homem a sua frente com uma expressão confusa.

--Pode me ajudar a conquistá-la? – perguntou cheio de esperança.

--Não. Mas meu mestre pode. O coração dela será seu. E o que mais quiser em troca de sua ajuda.

--Olha, isso está muito, muito estranho. O que seu mestre quer de mim? Por que se for dinheiro vou logo avisando que não tenho... as moedinhas são todas do meu tio – completou vendo que o homem lançava um olhar duvidoso para o bolso interno da casada onde guardara o que recebera pelo chá.

--Bens materiais não interessam ao meu mestre. Pelo menos não o pouco que tem em seu bolso. E se for do seu interesse, e colaborar de maneira satisfatória, poderá ter muito mais moedinhas que seu tio.

Quedou-se pensativo por alguns instantes. Estava no mínimo curioso para saber direito do que se tratava.

--O que acontece comigo se eu for, mas não quiser ajudar depois de saber no que é?

--Receio que só vá descobrir se isso acontecer – respondeu um tanto irritado com a relutância do outro. – Então, vai me acompanhar ou não? Ama aquela jovem o suficiente para arriscar pelo amor dela?

Desta vez acertava no alvo. Radamanthys não ia admitir que duvidassem de seu amor. Esqueceu de imediato os planos de ir ao Chalak Chalak e se prontificou a acompanhar aquele homem taciturno de quem nem sabia o nome. Não demorou a perceber que tomavam o caminho do forte William, o que o deixou ainda mais intrigado. Seria Abel o mestre de seu guia?

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Shion arrumava o travesseiro debaixo dos joelhos de Lune. Donko olhava o menino com carinho. Sabia que Shaka o amava e que estavam namorando. Também sabia sobre Mu. Perguntava-se se o pai do garoto entenderia quando soubesse. Ele mesmo ficara bastante surpreso com a situação incomum.

--Com licença, senhor Shion – disse Meera entrando no quarto com uma expressão nada boa. Estava pasma pelo que sua patroa tinha feito ao próprio filho.

--O que foi, Meera? Algum problema?

--É que o menino Lune tem visitas, mas como a patroa proibiu os dois de entrar eu os trouxe escondidos – respondeu dando espaço para que Mu e Shaka entrassem no quarto. – Fiz mal, senhor?

--De maneira nenhuma. Entrem – convidou Shion, sentando em uma poltrona ao lado da cama e deixando que os dois se aproximassem do filho.

--O que vocês estão fazendo aqui? – perguntou preocupado vendo Shaka e Mu sentarem um de cada lado da cama, perto de si.

Os dois não haviam dormido nada durante a noite. Pesadelos e sonhos ruins envolvendo Lune não permitiram que fechasse os olhos por muito tempo. Saga teve trabalho para impedi-los de saírem no meio da noite para irem atrás do inglês. Shaka reparou nas ataduras e não gostou nada.

--Viemos te ver. O que aconteceu?

--Nada. Eu... caí e me machuquei – mentiu.

--Você não consegue mentir, Lune. Foi sua mãe, não foi? – pergunto Mu com doçura, acariciando o rosto de Lune.

--Não dá pra chamar aquilo de mãe.

--Shaka! – repreendeu Mu.

--É verdade – disse Shion. – Lune merecia uma mãe carinhosa, não uma fanática religiosa que o trata dessa maneira – estava cansado e com muita raiva. Queria sumir de perto de Saori e levar o filho consigo.

Shaka aproximou a mão dos ferimentos enfaixados, sem coragem de tocá-los para não machucar ainda mais seu amado. Mu havia deitado ao lado de Lune e o colocado em seu colo e acariciava seus cabelos. Shion olhava aquelas demonstrações de carinho intrigado.

O garoto de cabelos cor de lavanda desejou apertar a mão de Shaka sobre os joelhos, sentir o calor daquela pele sobre os cortes, por mais dor que lhe causasse. O indiano mordeu o lábio inferior para não cobrir o namorado de beijos na frente de Donko e Shion.

--Vocês deveriam voltar.

--Quer que a gente vá? – perguntou Mu com seu sorriso inocente.

--Não. Só não quero arrumar problemas pra vocês – respondeu correspondendo ao sorriso. Os lábios de Mu pareciam chamar pelos seus. Queria tanto beijá-lo. Apertou os braços em volta de sua cintura e acomodou-se melhor no colo de seu amado.

Sorriu para Shaka, achando engraçada a expressão desesperada que tinha no rosto. Sabia o que significava. Dos três Shaka era o que menos conseguia controlar seus desejos. Era a forma que tinha de demonstrar seu amor. Precisava beijá-los, sentir o calor de suas peles junto à dele. Estendeu a mão e o puxou para deitar ao lado dele e de Mu. Ganhou um beijo tímido no rosto.

Shion ainda estava sentado ao lado da cama. Donko permanecia em pé atrás dele, com a mão colocada em seu ombro. Era seu jeito de dizer que estava ao lado de Shion e de dar um pouco de apoio ao amante. Lune poderia ter morrido por causa daquela inconseqüência de Saori. Notou que o menino estava muito melhor. Estava sorrindo.

--Shion, por que não deixamos os meninos conversarem e vamos conseguir alguma coisa pro Lune comer? Está com fome, Lune? – perguntou dando uma piscadinha ao garoto.

--Não tomei café ainda, seria bom comer alguma coisa – disse agradecendo a Donko por tirar seu pai dali. Amava Shion, mas sabia que seria difícil ele aceitar que além de gostar de garotos estava apaixonado por dois ao mesmo tempo. Precisava ir de vagar com as coisas.

--Vamos. Cuidem bem do Lune, vocês dois – pediu aos amigos do filho, saindo com Donko e encostando a porta.

Não haviam dado dois passos no corredor quando Shaka pulou encima de Lune e o beijou quase com desespero. O garoto teve que sufocar o grito quando o peso de Shaka caiu sobre seus joelhos machucados. Sentiu a mente enevoada. Adorou a sensação.

--Ai Lune... desculpa – disse se afastando com a mesma rapidez com que se aproximara. – Eu não queria machucar você...

--Não machucou – disse com a respiração descompassada, puxando-o novamente para que deitasse sobre si. Beijou-o com delicadeza.

--Lune, espera... eu estou machucando você...

--Não está... Eu pensei que nunca mais ia ver vocês... pensei que ela fosse me matar ontem à noite – disse beijando o namorado outra vez. Com certa dificuldade virou um pouco de lado e beijou Mu com carinho.

Era incrível como Mu e Shaka eram opostos perfeitos um do outro. Ele estava entre os dois. Sabia que era egoísmo de sua parte, mas só se sentia completo de verdade quando estava assim, entre os dois. Mu apertou o abraço. Não gostava de ouvir Lune falando daquela maneira.

--Se você morrer, morremos os três – disse sem saber a verdade absoluta que aquela frase continha.

A porta foi aberta com um baque contra a parede. Saori entrou em seus costumeiros trajes negros, acompanhada por um Shion lívido de raiva e um Donko tentando impedir o amante de fazer uma besteira que não teria volta.

--Eu não disse! Veja bem o que esses demônios estão fazendo com seu filho! E a culpa é sua!

--Minha? Você quase mata meu filho e vem dizer que a culpa é minha! Oras Saori, faça-me o favor! Você sempre foi uma péssima mãe! Não venha pousar de santa agora!

--Eu fiz o que a moral me mandou. Fiz de tudo para livrar este menino do pecado, para tirar o demônio que habita o corpo dele. E teria conseguido se você também não tivesse sido tomado pelo Maligno. Sempre o tive em alta conta, senhor meu marido, mas a vinda para esta terra me fez perceber que também os homens podem ser desgraçados pelo demônio.

--Você está louca! Seu fanatismo passou dos limites!

--Foi o senhor que ficou louco e perdeu o respeito pela religião! Que exemplo acha que deu a este menino amancebando-se com outro homem? Pensa que não sei? Pensa que sou tão tola a ponto de não saber que este selvagem é seu amante? – foi a primeira vez que Shion viu que Saori tinha lágrimas. Lágrimas de gelo. Geladas como estava seu coração, enrijecido por anos de amargura.

--Acaso vai dizer que está com ciúmes? Eu a amava, Saori, sabe disso. Você desprezou meu amor, sentiu-se ultrajada com meu carinho comparando-o a um pecado. Não venha reclamar agora.

--Você não tem vergonha? Confessa tão descaradamente que cometeu o pior dos pecados?

--Amar não é pecado – disse com simplicidade.

--Pois foi por causa disso que você chama de amor que quase levou seu filho à morte! Encontrei o menino seguindo seu exemplo, seu filho se tornou um sodomita tão pecador quanto você! Não vou mais permitir esse pecado dentro da minha casa! Prefiro um filho morto a desgraçado desta maneira!

Donko permanecia quieto, apertando a mão de Shion entre a sua. O peso do preconceito de Saori pareceu cair como uma última pedra sobre Shion. O indiano precisou segurá-lo pela cintura para que não desabasse sobre o chão. Os meninos abraçavam Lune, com medo que a mãe avançasse sobre ele.

--É mentira, pai – defendeu-se Lune. – O senhor sabe que não é pecado... e sabe que seu amor por Donko não tem nada a ver com o meu. Foi algo que aconteceu e que eu nunca quis evitar. Sei que é estranho, eu mesmo não entendo. Mas quando olho pro Shaka e pro Mu, vejo meu mundo todo neles – completou com um sorriso bobo nos lábios, que pareceu amolecer o coração do pai.

Shion não sabia o que dizer. Recusava-se a dar razão a Saori. O filho estivera tão radiante desde que conhecera os meninos. Estava apaixonado, era um tolo de não ter percebido antes. Não podia condenar o amor, não podia amar menos seu filho ou achar que era um desgraçado por ele estar amando, por mais que fosse estranho ele amar duas pessoas ao mesmo tempo.

--Saiam da minha casa! – gritou Saori histérica para os dois meninos.

--Só vamos sair se Lune pedir – disse Shaka enfrentando-a.

Lune lançou-lhe um olhar a dizer "por favor, não provoque", o que de nada adiantou. Shaka continuou a olhar cheio de ódio a mulher parada aos pés da cama. Não podia acreditar que preferisse ver o filho morto a vê-lo feliz com quem amava. Lembrou-se dos ferimentos de Lune, dos anos que ele deveria ter sofrido nas mãos dela. Sentiu os olhos arderem um pouco.

Tudo aconteceu muito rápido para que qualquer um ali pudesse entender ou impedir. A barra do vestido de Saori foi coberta por chamas alaranjadas. Ela gritou em pânico. Shaka virou os olhos para o outro lado e as flores para as quais olhava também começaram a queimar. Fechou-os rapidamente, assustado com o que estava acontecendo.

Foi Donko quem conseguiu reagir primeiro e virou o vaso de flores sobre o vestido de Saori, apagando ao mesmo tempo as chamas que a queimavam e as das flores. Ela desmaiou de susto. Shaka tremia sobre os lençóis brancos da cama. Mu o abraçava e Lune também. Havia esquecido os machucados, só o que lhe importava era Shaka.

--Shaka, você está bem? O que foi? – perguntou Donko vendo que o menino chorava.

--Eu... eu... fui eu quem – grossas lágrimas desceram pelas pálpebras cerradas de Shaka. Ele não queria ferir ninguém. – Ela... está ferida? Eu... eu não...

--Calma Shaka. Está tudo bem. Ela só queimou um pouco as mãos ao tentar apagar as chamas. Não precisa ficar assim

--Você... não entende, Donko? – perguntou soluçando. – Fui eu... eu fiz isso... eu olhei pra ela e... e o fogo apareceu... não sei o que está acontecendo comigo.

--Vamos levar você ao templo. Saga e Kanon vão saber o que fazer – disse Donko ainda atordoado com os acontecimentos.

--Eu também vou – disse Lune se esforçando para se afirmar no chão, ajudado por Mu.

--Shion?

--Vamos todos. Só vou... pedir a uma criada que tire Saori daqui e cuide dela – disse um pouco trêmulo também.

Queria saber o que estava acontecendo. O mundo não poderia ter ficado maluco de repente. Se fosse na Inglaterra chamariam um pastor e Shaka provavelmente seria queimado no mesmo dia. Estavam na Índia. Naquela terra a magia pairava no ar e coisas impossíveis tornavam-se reais num piscar de olhos.

Kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

Notas:

1- Libra esterlina era a principal moeda da Inglaterra até ser substituída pelo EURO. Na época da colonização da África e da Ásia ainda era uma das moedas mais importantes do mundo e praticamente todos os negócios de grande porte eram efetuados com ela.

Olá a todos! Dessa vez atualizando no dia certo! Muito obrigada a Litha-chan (Mu mostrou de novo que de santo só tem a cara hehehehe Ele adora agarrar os outros dois! Xatori passou dos limites e quase virou churrasquinho XD Kali vai complicar um pouco as coisas, os meninos vão precisa de mto jeitinho pra dar conta dela!) Aniannka (Kali tinha tanta vontade de se vingar dos homens que não percebeu a armação pra cima dela, mas sempre é tempo de descobrir!), Ia-Chan (dessa vez mais participações de Shaka, Lune e Mu! Pandora terá sua participação mais esclarecida no próximo cap!) e Yumi Sumeragi (Abel é tosco msm, foi bem feito hehehehe Fenrir e Mime e Eurídice aparecem de novo em breve!). Obrigada a todas vcs por mandarem review e pelos elogios à fic! Arigato! Respondendo as dúvidas sobre o Radamanthys: ele tem sim o espírito de um deus dentro dele, mas ainda não sabe disso. Mais explicações sobre ele sem falta no próximo cap! Obrigada também a todos os que leram e não deixaram review. Não sejam tímidos, comente a fic e façam uma escritora maluca feliz! Bjinhos!

Semana que vem: Saga e Kanon vão falar com os meninos, como eles vão reagir? Shion vai continuar com o Donko ou ter outra crise de culpa pelo que a Saori falou? Ravana (ex-Abel) dará o ar de sua presença? E mais explicações sobre Pandora, Radamanthys e a missão dos garotos! Não percam sábado, mais um capítulo da fic XD