Capítulo 11 – Prenúncios da Tempestade
Um brilho diferente iluminava os olhos azuis do representante da Companhia Inglesa das Índias Orientais. A minúscula centelha humana que restava naquela alma, único elo que ligava o espírito de Ravana à terra, estava totalmente suplantada. Observava satisfeito as cortinas de seda negra e cor-de-vinho do escritório que era seu.
--Pelo que vejo aquele capacho imprestável ao menos tinha bom gosto.
--E pelo que vejo você não é capaz de viver sem um capacho imprestável ao seu lado – replicou Pandora ao entrar na sala, sem a menor cerimônia.
--O que quer dizer com isso? – perguntou com suavidade, temendo que uma única palavra mais rude fosse capaz de despertar a ira de Kali.
--Que se livrou de Abel para ir atrás de outro mais imbecil que ele. O que te deu na cabeça de pedir ajuda a Radamanthys? Não vejo no que aquele inglês ridículo poderá nos ser útil! – reclamou exasperada.
--Ele propriamente em nada, mas o espírito que dorme dentro dele, e que será acordando, não deixará dúvidas sobre nossa vitória – disse triunfante. – O inglês ridículo é nada menos que o portador do espírito de Kamsa.
A jovem permaneceu em silêncio, encarando o demônio com um olhar de poucos amigos. Estava em pé, com os braços cruzados em frente à mesa de mogno quando a sombra entrou trazendo Radamanthys.
--Mestre. Aqui está o que me pediu. Com sua licença, voltarei ao Templo.
--Pode ir, Shura. E me mantenha informado sobre os acontecimentos, sim?
--Como quiser – disse sumindo no ar.
Radamanthys arregalou os olhos. Novamente não havia bebido e via uma pessoa sumir no ar, bem na sua frente. Aquilo tudo lhe cheirava a bruxaria. Olhou interrogativo para Abel e só então percebeu que Pandora também estava ali. A confusão aumentou em sua cabeça. Se Abel e Pandora eram casados e o homem esquisito chamado Shura chamara Abel de mestre, alguma coisa estava muito errada. Um marido jamais prometeria o coração de sua esposa a outro homem.
--Sente senhor Radamanthys. Temos muito a conversar – disse de forma neutra, apontando uma das cadeiras estofadas com veludo vinho que estavam postas em frente à mesa.
--Com licença, me recuso a participar disso. Você só pode estar de brincadeira, Ravana! – disse Pandora saindo muito irritada.
--O que houve com ela?
--Digamos que Pandora ainda não percebeu que em uma guerra como essa é preciso se sacrificar um pouco para se conseguir o que deseja.
--Guerra? Fala da guerra da Inglaterra com a França (1)? Pensei que não ia nos atingir...
--Não é desta guerra que falo. É de outra muito mais importante, que vai nos atingir a todos.
Começou a não gostar do assunto. Detestava guerras. Pessoas morriam da forma mais inútil e idiota em guerras, por causas que muitas vezes nem eram suas. Agradecia todos os dias a Providência que tirara Shion e sua família da Inglaterra poucos meses antes de Napoleão declarar guerra contra as ilhas britânicas.
--Não se assuste, não é o tipo de guerra que está pensando.
--E há outro tipo? – perguntou desconfortável.
--É claro. Mas tenha paciência. Vou lhe explicar tudo com calma. Escute com atenção. Tudo começou no início de todas as coisas...
Radamanthys endireitou-se na cadeira, percebendo que o assunto era sério e que nada do que imaginasse ou pensasse sobre o mundo poderia lhe trazer tantas revelações como aquela conversa. Conforme ia ouvindo a história, os sonhos que tinha voltavam à sua mente, dando credibilidade ao que Abel lhe contava.
O demônio era astuto e fez questão de modificar as partes que mostravam claramente que ele era o errado naquela história toda. O difícil era convencer um inglês, protestante e cabeça-dura a acreditar realmente que havia um demônio indiano adormecido em sua alma e que possuía poderes capazes de fazerem aquela cidade em pedaços. Mas Ravana tinha seus métodos.
O sol estava quase a pino no céu quando o pequeno grupo chegou às portas do templo do leste e, no entanto, o dia ainda parecia escurecido por uma estranha sombra que pairava sobre tudo. Shaka deixava as lágrimas descerem mornas pelas pálpebras cerradas. Mu segurava gentilmente sua mão, tentando confortá-lo e servindo-lhe de guia.
Shion trazia Lune nos braços, as ataduras do menino deixando transparecer nódoas vermelhas. Não conseguira dar muitos passos sozinho. Donko andava calado e cabisbaixo ao lado dele, tentando assimilar os acontecimentos. Admirava a coragem do inglês, de assumir na frente da esposa que amava outro homem e que eram amantes. Uma parte de seu coração temia que a coragem fosse acabar quando toda Calcutá soubesse e o preconceito caísse sobre eles.
Os gêmeos esperavam nos portões abertos. Suas expressões sérias e preocupadas indicavam que momentos difíceis estavam por vir. Os cumprimentos foram discretos e tristonhos. A guerra começava a estender suas garras sobre aquele recanto antes tão alegre e cheio de vida. Entraram mantendo entre si o pesado silêncio que só se rompeu quando sentaram nas almofadas da principal sala do templo.
Era um cômodo fresco e agradável, com amplas portas em arco que estavam abertas para o jardim. Almofadas coloridas e cortinas de musselina deixavam o ambiente leve e alegre. Vasos de plantas com pequenas flores de vários tipos e alguns incensos queimando deixavam um perfume agradável no ar. Em uma das paredes um pequeno altar com as imagens da Trindade. Nas outras três, altas prateleiras abarrotadas de livros e escritos sagrados.
As sombras que tiravam o brilho do dia não conseguiam estender suas garras para dentro daquela sala. Depois do centro do templo, aquele era o lugar mais sagrado. Era a biblioteca que guardava os escritos milenares que encerravam as crenças e a história do Hinayana. Algumas mesinhas baixas de madeira clara espalhavam-se aqui e ali.
Comumente, as mesinhas mantinham-se ocupadas por monges e monjas que buscavam nos textos sagrados a Iluminação, ou simplesmente alguma sabedoria e instrução que os ajudasse em sua missão na terra ou curasse sua curiosidade. Naquela manhã a ordem de Saga fora para que a sala fosse mantida vazia. Uma conversa muito importante estava para acontecer. Conversa que poderia selar o destino de todos.
--Estávamos esperando que viessem – disse Saga, tentando manter a calma e procurar as palavras certas.
--Diga-me, Saga, minhas suspeitas são corretas? – perguntou Donko que começava a desconfiar do que poderia se tratar tudo aquilo.
Primeiro um inglês aparecia com poderes sobrenaturais, depois Kanon passava quatro meses fora e voltava com um menino trazido de muito longe. E agora Shaka. O garoto estava pânico, era visível. Sentia raiva de Saori, sim, mas jamais pensara em machucá-la. O máximo que queria era tirar Lune de perto dela para que não continuasse sofrendo.
--Estão sim, Donko. Mas vamos com calma. Como você se sente, Shaka? – perguntou com carinho segurando as mãos do menino e o fazendo sentar-se a seu lado.
--Confuso e com medo – respondeu com a voz trêmula pelo pranto que começava a acalmar. – Mestre, Lune está ferido, pode cuidar dele primeiro?
O pedido do garoto desprendeu um sorriso dos lábios de todos. Antes de sequer perguntar o que acontecia consigo pedia que cuidassem de seu amado. Shion não sabia o que pensar daquela situação. Preferia não julgar o filho antes de entender direito o que acontecia. Contudo, ficou feliz em saber que Lune era muito amado, tanto por Mu quanto por Shaka.
--Claro.
Saga levantou fazendo o tecido da túnica farfalhar. O irmão ocupou o espaço deixado por ele e abraçou Shaka, fazendo-lhe carinho nos cabelos.
--Mestre Kanon – disse reconhecendo o perfume almiscarado de Kanon e seu toque descontraído que lhe bagunçava os fios dourados. Afundou-se no abraço sentindo a proteção de um daqueles que amava como um pai.
--Shion – começou Saga pensando que não seria fácil convencer o inglês sobre o que ia fazer dali por diante. – Sei que sua religião não permite certas coisas, que considera bruxaria muito do que, em nossa cultura, consideramos dons e presentes dos deuses. Não peço que abandone suas crenças, peço apenas que tente aceitar o que está acontecendo e que não nos veja com maus olhos.
Shion assentiu. Seria muito difícil ver algo daquela terra, que já considerava seu lar, com maus olhos. Instintivamente procurou a mão de Donko e entrelaçou os dedos entre os dele. O indiano sorriu. Era bom sinal, Shion não tinha levado em conta as palavras amargas da esposa.
O Mestre do Templo ajoelhou-se diante do menino e examinou as ataduras, removendo-as com cuidado. O sangue que saíra nas tentativas do menino de andar sozinho tinha feito o pano grudar nas feridas. Saiu, deixando-os por um momento, e voltou com uma bacia de prata cheia de um líquido esverdeado, e panos limpos de algodão.
Conforme passava o líquido recitava um mantra em voz baixa, os olhos semicerrados, as feridas iam diminuindo de tamanho para sumirem completamente. Lune sorriu agradecido. Shion arregalou os olhos sem poder acreditar no que via. Pensando melhor, vira sua esposa praticamente sofrer combustão espontânea, o que teria de tão estranho em ver as feridas do filho sumirem pelas mãos de um monge?
--Agora você, Shaka – disse pegando o menino pela mão e andando com ele até a parede oposta, onde ficava o altar. – Kanon, me ajuda aqui com isso?
--Uhum.
Juntos tiraram uma pesada tapeçaria da parede, colocando-a com cuidado sobre o chão de mármore. Um bom pedaço da parede ficou exposto. Shaka foi colocado de frente para ela.
--Abre os olhos, Shaka – disse Kanon pousando a mão sobre o ombro direito do garoto.
--Não... não posso.
--Não se preocupe. Não vai acontecer nada de ruim. Você precisa tentar – encorajou-o Saga.
--E se eu machucar alguém de novo? – perguntou com medo.
--Você está de frente para uma parede nua, o máximo que pode acontecer é a parede ficar um pouco chamuscada – disse Kanon de forma alegre.
--Kanon! – censurou-o Saga. – Isso lá é hora de fazer piadinha.
Shaka riu. Os gêmeos se olharam mais tranqüilos. O garoto levantou as pálpebras lentamente. Assim que abriu os olhos por completo chamas avermelhadas apareceram contra a parede, deixando-a enegrecida. Voltou a fechá-los com vontade de chorar outra vez. Não poderia nunca mais ver o rosto de Mu e Lune, não sem feri-los gravemente.
--Por que isso está acontecendo comigo? – perguntou com a voz fraca de quem não condena os deuses, apenas pede a eles uma razão.
--Shaka, você recebeu um presente muito valioso dos deuses. Não deve se entristecer ou chorar. Vai aprender a controlar o poder que possui e vai poder abrir os olhos novamente – disse Saga guiando-o até as almofadas.
--Vou mesmo? – perguntou sorrindo. Um sorriso doce, cheio da inocência que ainda possuía.
--Vai sim, não se preocupe – tranqüilizou-o Kanon. – Pode demorar um tempo até que você consiga controlar, mas vai conseguir.
--Desculpem, mas acho que todos nós merecemos uma explicação – disse Shion recuperando a calma e parte do bom-senso.
--E nós vamos dar, por isso os esperávamos – disse Saga ajudando Shaka a sentar e sentando também.
A atenção de todos foi voltada para os gêmeos. Seguiu-se um momento de expectativa em que tudo o que podia ser ouvido era uma música doce cantada por vozes suaves no lado de fora. A paz voltava a seus corações, como o último momento de calmaria que antecede o romper de uma grande guerra.
Os cabelos de Saori estavam desfeitos, espalhados sobre o travesseiro. Os olhos abertos, fitando o nada. Não sentia a dor das queimaduras que tinha nas mãos. Uma das criadas preparara um emplasto de ervas e colocara sobre os ferimentos, cobrindo-os com ataduras. Estava longe dali, em um lugar rodeado pela escuridão em que nada sentia, nada via e nada ouvia. Não queria lembrar. Não queria sentir.
--O que foi que aconteceu para deixá-la assim? – perguntou Ártemis à Meera que a acompanhara até o quarto da senhora.
Ela e suas companheiras de oração, Marin, Éris e Hilda, haviam sentido falta de Saori no chá do dia anterior. Resolveram fazer uma visita para saber o motivo da ausência e, quem sabe, ficar para o almoço. Acomodavam-se ao redor da cama, compadecidas pela situação da companheira.
--Não sei, senhora – responde certa de que não deveria mencionar nada do que acontecera no quarto de Lune há pouco.
--Como não? De alguma maneira ela deve ter se ferido.
--Bem, isso eu sei senhora, mas não sei como foi.
--Criadas indianas não servem para nada mesmo – reclamou Hilda. – Por isso trouxe as minhas da Inglaterra.
--E seu patrão? – perguntou Éris.
--Senhor Shion saiu com o menino Lune.
--E deixou a esposa aqui, nesse estado? – exclamou Marin. Seu Aiolia nunca a deixaria doente e indisposta sozinha com as criadas.
--Oras, Marin, não o condene. Deve ter seus motivos. Quem sabe não foi levar o menino a igreja?
--Duvido que Saori o tenha convencido. A pobrezinha vive um inferno nesta casa com um marido que não se preocupa com a moral e com a religião.
--Eu disse que é o fim dos tempos chegando – falou Éris. – Um homem que não se preocupa com a religião e a moral! Em que mundo estamos! Isso não vai longe, podem ter certeza!
--Deus nos proteja! – disse Marin, baixando os olhos, visivelmente incomodada com a possibilidade do fim do mundo.
--Saori, querida, diga alguma coisa – tentou Ártemis, sem obter qualquer som ou gesto como resposta.
--Vamos rezar por ela. Isso só pode ser obra do Maligno – disse Hilda.
--Talvez devêssemos chamar o pastor? – sugeriu Marin.
--Sem falar com o marido dela? – hesitou Ártemis.
--Bem, se o marido foi corrompido pelo mal, é nosso dever fazer algo para salvar Saori e esta família do Maligno. Pobrezinha. Saori sempre foi a melhor de nós todas. Desde que chegou aqui não deu sequer um passo em falso.
--Deus está testando a fé dela – disse Éris convicta de que falava a verdade. – Você, vá mandar alguém à cidade chamar o pastor Tatsumi.
Meera não se moveu. Seu patrão não ia gostar nada daquilo. Achava que estava na hora daquelas mulheres intrometidas irem cuidar de suas vidas e deixarem os outros em paz. Ninguém mais as agüentava.
--O que está esperando? Vá de uma vez!
--Sim senhora – disse indo a contragosto. No fundo preferia Saori como ela estava. Calada, sem poder fazer mal ao menino Lune. Religião estranha a dos ingleses, que permitia que uma mãe fizesse mal ao filho sem motivo nenhum. Eles sim eram selvagens ferindo uns aos outros e condenando uma dádiva tão sublime quanto o amor.
No templo, a voz de Kanon se fez ouvir. Começou a contar a História, tal como ela havia acontecido. Shion mantinha a mão de Donko presa à sua, ouvindo com interesse e curiosidade. Os meninos tinham a vaga impressão de conhecerem aquela história.
--No começo havia o Um, que na Tradição do Hinayana é chamado Brahman ou a Força Maior. Seu espírito possuía duas partes: a parte clara, detentora da luz e da vida, e a parte escura, origem da morte e das sombras, ambas convivendo em equilíbrio, sem que uma dominasse sobre a outra. Primeiro Brahman criou a Trimurti, a Divina Trindade formada por Brahma, Vishnu e Shiva, para que lhe fizesse companhia antes que tudo o mais fosse criado.
--Brahma, dotado de grande poder de criação, desenvolveu a flauta, o primeiro instrumento musical, e começou a tocar. A melodia era alegre e refletia o lado claro de Brahman. Vishnu viu que o lado escuro de seu criador recuava ante aquela música cheia de luz e que o equilíbrio estava se rompendo. Então ele elevou sua voz em uma canção triste e melancólica, reflexo do lado sombrio do Um.
Mu sentiu uma vontade súbita de tocar. Lembrava de uma música alegre que costumava tocar para se distrair nas tardes quentes em que ficava cuidando das ovelhas nas montanhas. Lune ouvia uma canção em sua mente. As palavras tristes e belas que cantava desde pequeno quando caía naquela espécie de transe.
--Aconteceu o contrário do que desejava, o equilíbrio se tornou mais frágil, pendendo ora para um lado ora para outro – continuou Saga. – Shiva, que se mantivera quieto observando, levantou e começou a dançar. Sua dança era ao mesmo tempo alegre e melancólica, cheia de luz e carregada de sombras. Os gestos e movimentos não destoavam nem da melodia nem da letra, completando-as e tornando perfeito o equilíbrio.
A dança é o equilíbrio. Shaka lembrava das palavras que dissera a Lune quando este pediu para vê-lo dançar. Adorava dançar. Era como se uma chama invisível queimasse dentro dele, esperando o tempo certo para explodir. Mordendo o lábio inferior de leve, Shaka começou a compreender o que se passava.
--Brahman se alegrou e começou a lhes propor temas para que criassem a partir deles e os ornassem com seus pensamentos. Durante eras eles assim permaneceram, tocando, cantando e dançando para o Um. Porém, chegou um momento que em seus corações começaram a desejar algo mais. As canções tornaram-se cheias do som das águas e dos ventos, as letras falavam de uma terra distante onde cresciam verdes árvores e a grama era coberta de flores e a dança deixava implícita a idéia de outros seres dançando tão belamente quanto Shiva.
--Percebendo o que acontecia com seus amados filhos, Brahman chamou-os e lhes mostrou a mais bela visão – continuou Kanon. – O novo mundo surgia bem diante de seus olhos e o que haviam imaginado estava visível para eles. O Um olhou-os com carinho e disse: Conheço o desejo de seus corações, de que tudo isto se torne realidade. Digo-vos agora que por meu sacrifício as coisas passarão a existir. Eu lhes entrego o mundo para que dele tomem conta e mantenham o equilíbrio. E enquanto o equilíbrio for mantido o mundo existira e será como vocês o desejarem.
--Assim foi que Brahman tornou-se o mundo através de seu sacrifício e, posteriormente, o mundo tornar-se-á Brahman novamente. Por isso tudo é Deus e Deus é tudo. Brahman é a essência de tudo o que existe e rege o mundo através de sua magia, a Maya.
Os meninos tinham os olhos úmidos de lágrimas. Nobre fora o sacrifício de Brahman, abrindo mão da própria existência para que o mundo passasse a existir através de sua energia. Após uma pequena pausa, Saga retomou o relato:
--Brahma encantou-se com a vastidão do mundo. Criou outros seres semelhantes a ele e seus dois irmãos, mas inferiores em poder. Os outros deuses seguidos pela Tradição e pelo Hinduísmo, para ajudarem a cuidar de um domínio tão vasto. Logo depois criou os homens para habitarem a terra. Deuses e mortais conviviam em relativa paz e harmonia.
--Em um determinado momento – continuou Kanon –, não se sabe exatamente quando, o deus Ravana passou a ouvir somente seu lado escuro. Não se importava mais com os outros, defendendo apenas seus próprios interesses. Queria todo o poder para si, a qualquer custo. Tornou-se ambicioso em excesso, cobiçando tudo o que os outros possuíssem e que lhe agradasse. Seu único objetivo era saciar seus desejos e vontades.
--Revoltado com o desprezo de Sita, a deusa mais bela que já pisara na terra e mulher de seu irmão gêmeo Rama, seqüestrou-a e levou-a para longe, decidido a torná-la sua noiva. Sita não cedeu a ele, permanecendo fiel a Rama, a quem muito amava. Rama foi ao socorro de sua amada, perseguindo Ravana pelos quatro cantos do mundo. Conseguiu soltar Sita e levá-la de volta, mas nada pôde fazer contra o irmão (2).
Os gêmeos se olharam de forma carinhosa. Conheciam muito bem a história de Sita, Rama e Ravana. Hypnos e Thanatos costumavam contá-la aos dois na hora de dormir. Às vezes tinham a impressão de lembrar de detalhes que não estavam no Ramayana, ou em qualquer outro livro daquela extensa biblioteca.
--As maldades de Ravana aumentavam na mesma proporção de seu poder. Queria vingança por ter perdido Sita. Declarou guerra contra Rama e contra a Divina Trindade, pretendendo derrotá-los e assumir seu lugar como controlador do mundo. Nisso implicaria destruir o Dharma, o equilíbrio tão preciosamente preservado pelos Três, a ordem natural do mundo.
--Temendo que o sacrifício de Brahman e toda a sua obra fosse destruída, os Três decidiram trancar Ravana em um mundo paralelo. Para tanto, foi necessário um encantamento muito forte, que não permitisse que qualquer alma divina pisasse no mundo mortal novamente. Junto com Ravana todos os outros deuses foram selados para fora do mundo.
--Brahma criou para eles o Nirvana, o paraíso supremo. Este também é o lugar para onde as almas humanas vão depois de finalmente alcançarem a Iluminação e se libertarem do Sansara. Para aqueles que se desviam do caminho da compaixão, do amor e da libertação da ignorância foram criados os Seis Infernos, lugares de punição para quem prejudicou demais os semelhantes em favor próprio ou cometeu crimes muito graves durante alguma vida.
--E Ravana? Depois de tudo o que fez foi para o paraíso com os outros deuses? – perguntou Shion, sem duvidar nem um minuto de que aquela era a verdadeira história da Criação.
--Ravana foi castigado e mandado para o pior dos Seis Infernos, trancado na Torre dos Tormentos – respondeu Kanon. – Naquela torre cercada de espinhos pontiagudos e venenosos Ravana dormiu durante mil anos, curando suas feridas e recuperando as forças. Cumprido este prazo ele acordou. Rompeu as defesas e saiu da torre. Contudo, os portais para o mundo dos humanos e para o Nirvana estavam fechados para ele.
--Nada o privaria de sua tão sonhada vingança. Estudou e desenvolveu métodos escusos de magia e encantamentos. Através de uma delas descobriu como fundir seu espírito ao de um mortal, podendo assim voltar à terra, já que não mais era totalmente divino. Fundindo-se com uma das almas que cumpria pena no Sexto Inferno, renasceu na terra, dividindo o corpo com a alma mortal que posteriormente expulsou.
--A Divina Trindade percebeu o que acontecia à tempo, pois a terra voltou a ser varrida por calamidades e atos maléficos. Brahma se compadeceu dos mortais. Em momento algum os Três haviam abandonado a terra, continuavam a protegê-la através do Hinayana, o Pequeno Caminho que haviam ensinado aos homens antes de partir.
Mu olhou para Lune e Shaka. Também começava a entender. Procurou a mão direita de Lune e a esquerda de Shaka e apertou entre as suas, sorrindo levemente. Um laivo de memória apareceu entre seus pensamentos.
--Brahma criou em seu coração uma alma humana e a dividiu em três partes – disse Saga, consciente de que as coisas começariam a ficar mais claras. – Na primeira fundiu uma pequena centelha de seu espírito, esta representava o divino, o Espírito, a compaixão, a ternura e a inocência. Na segunda fundiu uma centelha do espírito de Vishnu, esta representava o humano, a Alma, era o amor puro dos amantes, a justiça e a bondade. Na terceira foi fundido o espírito de Shiva, esta representava o natural, o Corpo, era o desejo e a sensualidade daqueles que conhecem o amor verdadeiro, a inteligência.
--Estas três partes de uma mesma alma foram enviadas à terra em três corpos diferentes, com a missão de se unirem para lutar contra Ravana e expulsar seu espírito da terra, de volta para a Torre dos Tormentos. Por serem frutos do coração de Brahma e criados da mesma alma, se amavam intensamente e não conseguiam ser felizes ou permanecerem longe um do outro.
Por fim, Lune entendeu. Uma alma dividida em três partes. Três partes que não podiam ser felizes longe uma da outra e que se amavam intensamente. As lembranças iam ficando mais claras.
--Eles lutaram e concluíram a missão, com a ajuda dos Mestres do Templo, os gêmeos que representavam a dualidade em equilíbrio e conduziam o Hinayana, cuidando dos Templos Gêmeos à margem do Rio Sagrado. Quando Ravana foi preso eles foram recompensados com o repouso eterno no Nirvana, não precisando passar pelo Sansara como acontecia com todas as almas que Brahma criava e ainda cria.
--No entanto, a cada mil anos, Ravana voltava a insistir em seu plano de dominação do mundo e usava da mesma magia para retornar à terra. Não havia no universo força suficiente para destruí-lo de forma permanente, nem nunca haverá. Por isso a cada mil anos os Três enviam aqueles que têm os espíritos fundidos com os seus de volta para combaterem Ravana. Por isso vocês três estão aqui hoje.
--Ravana voltou. E nós precisamos impedi-lo de destruir o Dharma e mandá-lo de volta para seu lugar – disse Mu com uma simplicidade cortante e uma força que não lembrava em nada sua fragilidade habitual.
Podia lembrar claramente de uma tarde de verão, em que o sol batia sobre a grama e os miosótis que cresciam entre ela. A voz de Lune inundava a paisagem como o retinir de sinos de prata. A canção acompanhava o ritmo das águas do rio que corria ligeiro ali perto. O tempo corria de forma diferente no Nirvana, onde um dia correspondia a um ano na terra.
Mil dias de paz e tranqüilidade haviam passado juntos, até que Ravana se recuperou da batalha e voltou a ameaçar o equilíbrio do mundo dos mortais. Foi então que a Trindade apareceu, avisando que a hora chegara e que precisavam partir. De mãos dadas, andaram em direção ao portal e despediram-se nele, sem saber quantos anos levariam para se encontrarem de novo.
Quase dezesseis anos haviam se passado sem que sequer lembrassem direito um do outro. A passagem entre os mundos obscurecia a memória e apagava dela quase todas as lembranças de vidas anteriores. Algumas delas voltavam com o tempo, nenhuma estava perdida para sempre. Os três sorriram. Estavam juntos outra vez, o amor que sentiam ainda mais forte.
--Quanto tempo temos? – perguntou Lune, sabendo que a pergunta não teria resposta precisa.
--Ravana já se manifestou – disse Saga. – Sentimos a presença dele perto do templo ontem. Não podemos dizer ao certo quanto tempo vai levar para começar a agir. Dias, semanas ou, se tivermos sorte, alguns meses. Ele não vai agir sozinho, precisa encontrar quem o apóie e treinar esses seguidores.
--Ravana lutaria com a ajuda de mortais? – perguntou Shion sem entender.
--Não. De outros deuses de menor poder. Os deuses sentem falta da terra. E alguns deles usam do mesmo truque de Ravana para poderem voltar, fundindo sua alma com almas mortais. Ravana vai procurar aqueles que conseguir reconhecer e tentar levá-los para seu lado – respondeu Kanon.
--Temos que usar esse tempo para ajudá-los a controlar seus poderes. Shaka... sei que será difícil para você, mas... terá que ter uma alternativa para o caso de não conseguir controlar seu poder antes da batalha – disse Saga com o coração na mão.
--Eu sei. Se não posso ver com meus olhos, tenho que arrumar outra maneira de ver. Pensei em pedir ajuda ao Shiryu – disse mais calmo. O pânico havia passado. Talvez não pudesse mais abrir os olhos naquela vida, mas não estava triste. Fora presenteado com o espírito de Shiva. E tinha o restante de sua alma junto de si.
--É uma boa idéia, faça isso – disse Kanon sorrindo e despenteando mais um pouco o cabelo do garoto.
Donko e Shion se entreolharam, entendendo que a missão era dos meninos e não deveriam se meter. Por mais estranho que parecesse, os dois continuavam vendo Shaka e Lune como seus filhos e não como avatares da Trindade que eram. Não podiam deixar de sentirem-se preocupados pelo que poderia acontecer.
Na beira do caminho que levava ao templo do leste apareceu um homem de cabelos negros revoltos e olhos esverdeados, permeados por um laivo de luz dourada. Chamava-se Shura e era uma das sombras de Ravana. Nem mortal, nem divino. Não possuía alma, não sentia nada, agia apenas pela vontade de Ravana e por essa vontade estava condenado a vagar eternamente pela terra.
Quando seu mestre voltara naquele milênio, ordenara de imediato que se infiltrasse no templo como seu informante. Não cabia a ele decidir se queria obedecer ou não. Indiferente, apresentou-se com um homem que cansara da vida desregrada que levava e ansiava por encontrar a Verdade.
Foi muito bem recebido por Saga e Kanon, que na época haviam acabado de receber o título de Mestres do Templo. Não demorou para que recebesse um encargo. Todos os monges e monjas tinham que realizar alguma atividade. Foi encarregado de cuidar de um menininho de três anos que ficara cego por causa de uma doença em seus olhos.
Todos eram tão humanos naquele lugar, tão gentis e cheios de amor e bondade. E ele era vazio como uma concha. O garoto chamava-se Shiryu. Teria que ajudá-lo a se adaptar à nova condição, a aprender a ver sem os olhos. Tarefa difícil para um ser sem emoção. Shiryu era um garotinho adorável. Não reclamava do mal que lhe tomara os olhos, nem da escuridão que cobria tudo à sua frente.
Com o passar dos anos, o menino deixou de precisar de sua ajuda e aprendeu a virar-se sozinho. Porém, sempre o procurava para conversar e ajudá-lo em suas tarefas. Não entendia o que o garoto via de interessante nele. Não conseguia chegar nem perto de um ser humano. Seu rosto era frio e indiferente a tudo, como se tivesse sido esculpido em pedra. O comportamento não destoava do restante.
Não reagia a nada de forma alguma. Fazia o que lhe pediam, cumpria suas obrigações como monge e informava Ravana de tudo o que se passava no Templo. Não tinha o direito de pensar ou ter uma opinião sobre nada nem ninguém. Nunca havia se importado com isso. Não até conhecer Shiryu.
Andava lentamente pelo caminho de terra batida. Um vento fresco soprava da direção do templo, atenuando o calor que fazia. A manhã ia pela metade. Não entendia por que o jovem monge não lhe saía da cabeça ultimamente. Mas teria ele o direito de não entender alguma coisa? Ou de se sentir confuso?
--Estava procurando você – disse uma voz conhecida.
Dobrando a curva do caminho viu um jovem de mais ou menos dezoito anos. Os longos cabelos negros ondulavam levemente com a brisa. A franja encobria um pouco os olhos, sem atrapalhar a visão a muito perdida. Os olhos de um verde-água muito claro, apesar de cegos, pareciam sorrir para o homem à sua frente.
--Não deveria sair sozinho. O mundo aqui fora é perigoso e ruim – disse tentando manter-se indiferente. Não devia estar preocupado. Mas estava. Não queria que nada de mal acontecesse a Shiryu.
Ele havia se tornado um garoto ponderado, calmo, bem-educado e atencioso, sempre gentil com todos. Passava boa parte do tempo a cuidar das crianças do templo e do jardim interno. Quando não estava ocupado com isso ia procurar Shura para conversarem ou só para ficarem juntos um pouco. Gostava muito da companhia do outro, apesar de achá-lo um pouco distante.
Era sempre mais carinhoso com Shura. Tinha por ele um amor muito grande, que o acompanhava desde a infância. Fora ele quem lhe devolvera a visão. Não lembrava com clareza do verde das árvores ou do azul do céu, que deixara de ver quando era muito pequeno. Mas tinha uma imagem exata do rosto de Shura em seus pensamentos.
--Não gosto quando você desaparece sem avisar. Tenho medo que vá embora e não volte – disse angustiado. Indo abraçá-lo.
Ás vezes tinha a impressão de que Shura estava com ele somente porque lhe pedira e que partiria a qualquer momento para nunca mais voltar. Não gostava dessa sensação de estar sempre prestes a perder a pessoa que mais amava. Era um relacionamento difícil. Shura nunca dissera que o amava ou que sentia qualquer coisa por ele.
Fora em uma tarde morna de novembro, era seu aniversário de quinze anos. Shura perguntou o que gostaria de ganhar e respondera que um beijo, mesmo que fosse o único. Shura atendeu prontamente seu pedido. Foi um beijo leve, o primeiro de ambos. Não sabia o porquê daquele gesto, mas não conseguiu negar um pedido daquele que cuidara desde pequeno.
Ao sentir os lábios de Shura sobre os seus pela primeira vez, soube que nunca amaria ninguém além dele. Confessou seu amor no mesmo dia. A atitude indiferente de Shura machucou um pouco seu coração. Foi como se seus sentimentos não lhe fizessem a mínima diferença. Aí vieram as palavras: Se você quiser é só pedir, faço qualquer coisa que você pedir.
E ele pediu. Aquele homem gélido que parecia estar acima de tudo e de todos e não se importar com o que quer que fosse tornou-se seu namorado e depois seu amante. Acostumara-se a adormecer em seus braços sem ouvir qualquer palavra de amor. Os gestos eram tudo o que precisavam. Os lábios, antes frios, ficaram quentes com o tempo. Os toques desatentos haviam se tornado carinhosos e cheios de sentimento.
Shura não queria. Não queria tremer cada vez que o garoto acariciava sua pele. Não queria sentir. Muito menos o que sentia quando ele estava por perto. Ele não podia sentir. Se Ravana sequer suspeitasse disso o destruiria e destruiria o garoto também. Seus gestos o traiam de uma forma que palavra nenhuma poderia. Beijou Shiryu de forma lenta, sem pressa, passando os lábios sobre os dele carinhosamente.
O que ele acharia se soubesse de sua verdadeira natureza? O amaria da mesma maneira sabendo que não tinha alma? Não queria pensar nisso. Não queria pensar em nada. O que mais o angustiava era saber que um dia seria Shiryu a partir, tomado de si pela morte, e que talvez nunca mais se encontrassem.
Queria ter uma alma, ser mortal e poder ficar com o menino. Se pudesse escolher, escolheria a mesma vida que tinha. Longe de Ravana, é claro. Começa a desprezar o mestre, aquele ser que o criara da própria sombra, sem ter ao menos a compaixão de lhe dar uma alma. Pensamentos impossíveis, sentimentos impossíveis. Pegou o garoto pela mão e pôs-se a andar com ele para o templo.
No gabinete do representante da Companhia Inglesa das Índias Orientais, Radamanthys ouvia pasmo a história que Ravana terminava de lhe contar. A cabeça girava e doía. Nem quando bebia além da conta se sentia tão confuso. Pressionou os dedos contra as têmporas tentando fazer a dor passar.
--Então quer dizer que eu não sou eu? – perguntou com uma expressão de confusão, surpresa e quase pânico.
--Não – disse Ravana já perdendo a paciência. A alma mortal de Radamanthys parecia ter dominado por completo o demônio que estava adormecido. Precisava acordar Kamsa ou ele lhe seria inútil. – Quer dizer que dentro de você há uma outra criatura. O espírito de um ser sobrenatural muito poderoso.
--Então os sonhos estranhos não são sonhos? São lembranças que eu tenho da vida dessa criatura que está dormindo dentro de mim?
--Exatamente – disse apertando as mãos, unidas sobre a mesa. Estava cansado de ter que repetir a mesma coisa pela enésima vez.
--Mas se esse ser está dormindo, como eu posso sonhar por ele?
--Oras, senhor Radamanthys! Isso por acaso importa? Estou dizendo que possui dentro de si um poder tão grande que poderia destruir toda essa cidade com um estalar de dedos, e o senhor está preocupado com questões inúteis como essa? – levantou-se de um pulo apoiando as mãos na mesa e encarando o inglês.
--Desculpe, mas não tenho poder algum. Sou bem fraquinho até... outro dia mesmo briguei com um sujeito no Chalak Chalak e apanhei feio... passei a maior vergonha. Só pode haver um engano – disse tentando despistar Abel, ou quem quer que fosse e sumir dali o mais rápido possível.
--O poder está dentro de você. Tudo o que precisa fazer é desejá-lo até que ele não possa resistir e acorde.
--E como eu faço isso?
Ravana sentou-se e passou a mão sobre o rosto. Começava a achar que Pandora tinha razão. Radamanthys tinha o pior defeito que poderia ter. Sua alma era boa de natureza, tão boa que bloqueava qualquer influência do demônio Kamsa sobre ele. Lhes seria completamente inútil se continuasse assim. E Ravana o mataria naquele momento se Julian Solo não tivesse se recusado veementemente a ajudá-lo.
Não podia lutar com a Trindade apenas com a ajuda de Kali. Por mais indefesos que fossem os meninos não devia subestimá-los. Precisava de pelo menos mais um ao seu lado, só para garantir. Pelo que Shura lhe dissera, os monges iam contar tudo aos garotos naquele dia ainda. Não tinha tempo a perder. Era Radamanthys ou nada.
-- Suponhamos que Pandora esteja em perigo, prestes a ser morta por três garotos imbecis que acham que ela é uma ameaça para o mundo. Seria capaz de matá-los para protegê-la?
--Pandora está em perigo? – perguntou preocupado, aproximando-se da mesa que o separava de Ravana.
O demônio sorriu, percebendo finalmente uma saída para o impasse em que se encontrava.
--Sim. Ela está em perigo. Três meninos, que você deve conhecer, alias, estão achando que Pandora é extremamente perigosa. Eles querem eliminá-la a qualquer custo. Junto comigo e com você. Acham que queremos dominar o mundo, imagine! Nós que estamos aqui para protegê-lo! Um absurdo!
--É claro! A doce Pandora jamais faria mal a qualquer ser que fosse – defendeu sua amada. A essa altura já tinha entendido que ela não era esposa de Abel. E que Abel não era Abel.
--Por isso preciso de sua ajuda. Precisamos destruir esses meninos metidos a deuses antes que eles nos destruam e destruam o mundo também – disse com a expressão mais deslavada.
Seu plano não tinha erros. A única falha fora Julian Solo se recusar a ajudar. Falha já devidamente concertada, já que Solo ficaria fora da batalha e ele arrumara um outro tolo com os mesmos poderes. Pensando bem, o capitão seria um problema. Não teria o que fazer com ele depois que destruíssem os pirralhos.
Para Radamanthys já tinha um fim. Depois de acabada a luta, absorveria os poderes dos meninos e dos rosários que levavam consigo. Deixaria que Pandora fizesse o trabalho sujo e se livrasse de Radamanthys e dos homens. Depois acabaria com os outros mortais e com Rama e levaria Sita consigo. Os outros deuses teriam que se curvar a ele diante de todo o poder que conseguiria.
--Aceita ajudar? Pelo bem de Pandora? – perguntou encorajando-o.
--Não vou deixar que façam mal à Pandora. Por ela sou capaz de tudo, inclusive de matar – disse fazendo-se de mais valente do que realmente era.
--Ótimo. Temos que começar o quanto antes – disse Ravana, seu sorriso triplicando de tamanho.
A fortuna sorria para ele. Acordaria o demônio Kamsa e depois o mandaria assassinar os garotos enquanto resolvia outro problema mais importante. Sita. Era nela que pensava agora. Perdão mestre, as sombras se recusaram a matar o monge Kanon, que estava com o menino. Esta frase que ouvira de Abel não lhe saía da cabeça. Suas sombras jamais se recusariam a matar alguém. A menos que esse alguém fosse Sita. Precisava encontrar o monge.
A manhã escoou rapidamente nas respostas das inúmeras perguntas feitas aos gêmeos. Não tinham certeza de algumas coisas, outras não puderam responder. Ao final da conversa um peso parecia ter sido retirado de todos, para que outro ainda maior lhes fosse colocado em breve. Uma onda de paz e felicidade espalhou-se pela sala, prenúncio da velada calmaria que antecede as tempestades.
Shaka lembrava das palavras que ouvira de Brahma certa vez. Cada vida é diferente, e em cada uma delas a alma precisa aprender algo novo. É o ciclo da evolução espiritual que leva à Iluminação. Vocês não estão livres dela, embora possam descansar no Nirvana entre uma existência e outra. Não mais de quinze vezes os avatares da Trindade haviam descido à terra desde que os deuses haviam sido selados no Nirvana. E cada uma dessas vezes havia sido diferente.
Lune nunca tivera um pai ao seu lado por muito tempo antes de Shion. Mu nunca vira sua família toda ser assassinada por sombras demoníacas que buscavam por ele. E Shaka nunca precisara fechar os olhos para conter seus poderes. Porém, havia algo que nunca mudava, por mais diferentes que fossem as vidas.
O amor e amizade que sentiam pelas pessoas com as quais conviviam e pelo restante da humanidade eram tão grandes que os impeliam lutar, para que estas pessoas não viessem a sofrer por causa das más intenções de Ravana. Lutavam não apenas para que o sacrifício de Brahman não fosse tornado inútil, ou para proteger a criação de Brahma que viera depois, mas pelas pessoas que amavam.
Donko, Shion e Lune foram convidados a almoçarem no templo. O indiano recusou, queria ir para casa almoçar com a mãe. Samia andava melancólica demais nos últimos dias, provavelmente pela proximidade do aniversário de morte de William. Ela nunca aceitara a forma trágica com que o marido lhe fora tomado.
Despediu-se dos monges e dos meninos, dando um tímido selinho em Shion. Tinha medo que o inglês não gostasse de demonstrações de carinho em público. Enganou-se. Shion o puxou pela nuca e lhe deu um beijo de verdade, fazendo Lune sorrir. Shaka teve que conter a vontade de abrir os olhos e ver a cena pela qual esperava desde pequeno, a de ver Donko feliz, ao lado de uma pessoa que ele amasse e que lhe correspondesse.
Shion ia ficar mais um pouco, almoçaria no templo a pedido de Lune. O que menos queria era ir para casa e encontrar Saori. A raiva que sentia dela estava muito recente. Entretanto, Donko tinha razão. Não valia a pena estragar sua vida e fazer uma besteira sem concerto. Saori não conseguiria estragar sua felicidade. Os garotos venceriam Ravana e depois que a guerra acabasse todos seriam felizes.
O almoço foi bastante divertido. Depois de saber o que acontecia consigo e lembrar de tudo, Shaka estava muito melhor. Permitia-se sorrir quando se atrapalhava e deixava a comida cair, levando o garfo vazio à boca. Shiryu sentara-se à sua frente na mesa, atendera de pronto o pedido do amigo de lhe ajudar a se adaptar aquela nova condição.
Kanon contava histórias para as crianças e ajudava Jisty, uma jovem monja de cabelos arroxeados, a dar comida para os menores. Saga conversava com Shion. O inglês estava disposto a abrir mão das crenças preconceituosas de sua religião e seguir o Hinayana, não só porque era o caminho que Donko seguia, mas porque lhe parecia o mais correto.
--Saga... acha que eu poderia... casar com ele? – perguntou um pouco envergonhado.
--É claro. Mas primeiro tem que desfazer seu casamento com Saori. O Caminho não permite que se mantenha compromisso com duas pessoas ao mesmo tempo. Mu, Lune e Shaka são a única exceção. A única alma que Brahma dividiu em três partes.
--Vou fazer isso. Donko é a outra metade da minha alma e é com ele que eu quero ficar. Como são os casamentos?
--São cerimônias simples. O Caminho não possui complicações. Os noivos precisam se apresentar no Templo, onde assumem um compromisso diante do altar central da Trindade e trocam alianças. Os votos variam porque são palavras que devem vir do coração. Se o casamento não der certo ou os noivos quiserem desfazê-lo por alguma razão só tem que voltar ao Templo e devolver as alianças, que serão derretidas.
Shion sorriu. O preconceito dos outros já não importava. O que mais queria era casar com Donko, envelhecer ao lado dele e, por que não, ter uma família. Não pedia o milagre praticamente impossível de ter filhos com Donko. Haviam muitas crianças precisando de uma família, poderiam oferecer um lar para algumas delas. Naquela tarde o comerciante inglês que, meses antes, deixara a Inglaterra sem nenhum sonho saiu do templo com o coração povoado por eles e desejoso de que se realizassem em breve.
Era final de outubro. O vento soprava forte no início de mais uma estação fria. Uma jovem de longos cabelos castanhos, ondulados, e belos olhos azuis andava pelo mercado com um cesto de vime nas mãos, procurando pelos itens da lista que lhe havia sido entregue. Sentiu o vento aumentar um pouco e lhe tomar o xale de seda branca que cobria suas costas.
Temendo perder a valiosa peça que viera de Varnasi (3), correu a ver onde o vento a levava. Foi dar nos pés de um homem de aparência ocidental. Alto, de cabelos negros bem cortados e olhos verdes como as matas que cercavam a cidade. Sua pele clara evidenciava que não era indiano. Abaixou-se e para ver o que era aquilo que estava em seus pés e suas mãos encontraram as da jovem.
Olharam-se calados por alguns minutos, o coração palpitando fortemente. Ela sorriu e baixou os olhos, pegando o xale e voltando a colocá-lo nas costas. Ele lhe ofereceu a mão e, juntos, levantaram. A magia se desfez quando uma voz irritada chamou a garota, que pegou o cesto e saiu correndo para atender o chamado.
Samia tirou o xale branco de dentro de um caixa de madeira que tinha no colo e colocou com carinho sobre a cama. A primeira lembrança que tinha de William. Demorou um bom tempo para descobrir quem era e de onde tinha vindo. Seu pai não gostava de ingleses e preferia manter as filhas o mais longe possível deles.
Foi em um fim de tarde de novembro, quase um mês após o incidente na cidade. Ela passeava pela margem do rio, apreciando o pôr-do-sol perto de casa. Ele apareceu de repente, aproximando-se e cumprimentando-a de forma gentil. Beijou-lhe a mão e apresentou-se, como um cavaleiro de respeito deveria fazer.
--Com licença senhorita, meu nome é William. Saí para passear e acabei me perdendo, será que poderia me dizer para que lado fica a estrada para a cidade? – perguntou.
--Fica pra lá – disse com o rosto um pouco corado, sem olhar para ele, apontando a direção oposta à do rio. – É só seguir em frente e vai encontrar o caminho.
--Obrigado – disse lhe sorrindo e virando-se para ir embora. – Desculpe, mas... a senhorita não é a moça do xale? – perguntou voltando-se novamente para ela.
--Moça do xale? – fez-se de desentendida.
--No dia em que cheguei da Inglaterra estava perdido no mercado e o vento trouxe um xale até mim. Tenho quase certeza de que pertencia à senhorita.
--Agora me lembro! Era meu sim. Curioso...
--O que é curioso?
--A mania que o senhor tem de estar sempre perdido por aí – riu ela.
--Falando assim parece que me perco de propósito. A culpa não é minha se esta terra tem milhares de ruazinhas e estradas e nenhuma tem nome – riu entrando na brincadeira.
--Ah, mas elas têm nome. O senhor é que não sabe ler as placas.
--A senhorita ainda não me disse o seu nome – comentou, mudando de assunto, vendo que aquela conversa acabaria em confusão. Era impressão sua ou aquela senhorita estava caçoando dele?
--Samia Desai.
--Muito prazer então, senhorita Desai – disse. Abaixou-se e arrancou de entre a grama algumas miosótis que cresciam. Entregou a ela que aceitou sorrindo.
Colocou o ramo seco de miosótis ao lado do xale, sorrindo com as lembranças. Seis anos longe de William. Pensava se ele voltaria algum dia. Não conseguia aceitar sua morte, seu coração dizia que ele não estava morto. Mais de uma vez lhe aparecera em sonhos, perdido em um lugar ermo, pedindo ajuda para voltar para casa.
Os encontros tornaram-se mais freqüentes. William adquiriu o costume de se perder na margem do rio quase todo entardecer. Sabia que encontraria Samia passeando ali naquela hora. Passavam os fins de tarde conversando sobre os mais diversos assuntos. Uma amizade muito bonita crescia entre eles.
Um dia William apareceu com alguns doces envoltos num papel prateado, dizendo que se chamavam chocolates e que ele mandara vir da Inglaterra especialmente para ela. Sentiu-se grata por tamanho esforço. A gentileza de William a encantava. Sempre educado, sempre carinhoso, sem nunca pedir nada em troca.
Lágrimas começavam a correr pelos alhos azuis de Samia. Não eram lágrimas de tristeza ou de dor. Eram lágrimas de saudade. Sentia tanto a falta de William que começava a sufocar. Se pelo menos tivesse visto seu corpo inerte saberia que não mais poderia vê-lo naquela vida e se conformaria. Mas nem isso tivera, nem a oportunidade de queimar o corpo do marido e jogar as cinzas no rio sagrado como mandava a Tradição. Colocou o papel do primeiro chocolate que dividira com William sobre a cama.
Ela adorou os chocolates. Seu agradecimento veio logo e de forma muito inesperada. William tinha dado os doces apenas para agradá-la, para ver nos lábios da mulher que já amava o sorriso que lhe aquecia o coração. Ela, no entanto, fez questão de retribuir o presente.
Saiu de casa acompanhada da irmã mais velha, Sarasvati, e foi esperar que William saísse do forte para ir almoçar. Quando o viu do outro lado da rua tirou um limão amarelo do bolso do vestido. Esperou que se afastasse um pouco e pediu a ajuda dos deuses quando atirou a fruta. Segundos depois ouviu um grito baixo e viu o inglês parar para ver o que tinha lhe acertado a cabeça.
Ele olhou confuso para o limão caído a seus pés. Quem em sã consciência jogaria um limão na cabeça de outra pessoa? Procurou em volta e deu com Samia sorrindo satisfeita. Os deuses a haviam abençoado. William pegou o limão e foi andando, confuso, até onde ela estava.
--O que foi que deu em você para me atirar um limão? – perguntou de forma descontraída.
Após alguns meses de convivência com o povo indiano, havia aprendido a deixar o formalismo excessivo dos ingleses de lado e, com a permissão de Samia, já a tratava por você.
--Oras, se não sabe pergunte a alguém! – riu ela puxando a irmã pelo braço e correndo para casa. Não ia dizer a um inglês que na Índia limões atirados equivaliam a um pedido formal de casamento.
Por uma estranha brincadeira do destino, William perguntou justo ao pai de Samia. Ele era representante dos produtores de chá junto à Companhia, muito contra à vontade, diga-se de passagem. Odiava ingleses. Achava que eram um bando de selvagens que se achavam os donos do mundo e não tinham nem a decência de tomarem banho todos os dias.
O senhor Desai ficou furioso ao saber que fora justo sua filha a atirar limões em um inglês. Proibiu Samia de sair de casa sozinha e de falar com qualquer inglês que fosse. Somente depois de muito tempo insistindo é que ele permitiu o namoro e sob várias condições que William teve que aceitar sem reclamar.
Em uma caixinha menor estavam as sementes do limão, que tirara das mãos de William antes de sair correndo e guardara de recordação. Guardou tudo rapidamente e fechou a caixa ao ouvir barulho de passos no corredor. Reconheceu os passos do filho e não queria que a visse chorando.
A casa dos Desai estava por mais demais silenciosa para Donko. Não havia música nem canto e o próprio ar parecia acompanhar aquela tristeza velada. Entrou no quarto da mãe e a abraçou fortemente, tentando afastar dela aquela tristeza. Compreendia sua dor. Se Shion tivesse sumido sem explicação nenhuma e dado como morto também se sentiria assim.
Pedia aos deuses todas as noites que, se o pai realmente estivesse vivo, o ajudassem a voltar para casa. Pensou em contar a ela o que havia se passado. Melhor não preocupá-la. Acreditava com todo o seu coração que os meninos conseguiriam mais uma vez derrotar Ravana e que a paz voltaria a suas vidas.
--Ela parece estar em choque ou algo assim – disse Tatsumi balançando a mão em frente aos olhos abertos e inexpressivos de Saori e constatando que ela não reagia.
--Deve ter visto uma coisa muito ruim para ficar desse jeito – disse Éris, aproximando-se do marido.
--Como ela queimou as mãos? – perguntou ele.
--Ninguém sabe, ou não querem nos dizer – respondeu Marin. – Pobre Saori! Tão boazinha!
--Não vamos lamentar antes de saber o que aconteceu. Pode ter sido uma manifestação divina. Uma mulher tão boa e religiosa quanto Saori com certeza seria merecedora de tamanha graça – disse Hilda.
Lune e Shion, que chegavam do templo ouviram estas palavras. Uma idéia começou a tomar forma na mente de Lune. Por hora precisavam tirar aquelas carolas da casa e fazer com que Saori esquecesse tudo o que tinha se passado.
--Boas tardes, posso saber o que está acontecendo? – perguntou Shion entrando no quarto da esposa.
--Senhor Shion – disse Tatsumi deixando Saori e indo até ele. – O senhor deveria saber muito bem que a mulher deve obedecer o marido em tudo e lhe ser fiel e respeitá-lo. Mas o homem também deve respeitar sua mulher e protegê-la dos males deste mundo. Como é que o senhor sai de casa e deixa sua esposa nesse estado?
--Pois quando saí com meu filho ela estava bem – respondeu fazendo-se de desentendido. Era o melhor com aquele tipo de gente. – Acabei de chegar e de receber a notícia de que ela foi encontrada caída no quarto, com as mãos queimadas. Gostaria de saber o que todos vocês fazem em minha casa, pois se minha esposa está doente o que ela precisa é de um médico.
--Orações são melhores que remédios humanos – respondeu Tatsumi.
--Creio que foram orações suficientes por hoje. Não se preocupem – acrescentou vendo a cara de desagrado de todos ao dizer esta frase. – Eu e meu filho continuaremos rezando ao lado dela, até que reaja e possa nos dizer o que aconteceu. Agora se nos dão licença – concluiu estendendo o braço em direção à porta.
Tatsumi e as boas senhoras que rezavam ao pé da doente se retiraram exasperados. Pobre Saori com um marido daqueles. Parecia não ter o menor respeito pela religião. Tatsumi chamaria sua atenção no sermão de domingo, com toda a certeza. Por isso o menino estava como estava. Só a mãe lutando para que se salvasse e fosse libertado, enquanto o pai agia como um desviado, não adiantava de nada.
--Não acha melhor deixarmos ela assim? – perguntou Shion, fechando a porta e se aproximando da cama. Não tinha a mínima vontade de que Saori voltasse a ser a mesma de sempre.
--Sei que o senhor está com muita raiva dela, mas pense que ela também merece compaixão. Ela achou que estava agindo certo... e eu estou bem, pai. Tente entender e perdoar.
Entender e perdoar. Parecia tão fácil para Lune. Ele tinha feito durante todos aqueles anos de castigos e penitências. Para Shion não era tão simples. Saori quase matara a pessoa que mais amava, algo que não se esquece nem se perdoa com tanta facilidade. Ele iria tentar e sabia que um dia conseguiria. Um dia, mas não naquele momento.
Lune segurou o rosto dela entre suas mãos. Tinha um pouco de medo desse poder. Bastava-lhe olhar nos olhos de uma pessoa para ver o que ela estava sentindo. E bastava um pensamento um pouco mais forte e decidido para alterar sua memória ou apagá-la. No entanto, havia um risco muito grande da pessoa ficar louca ao ter a memória alterada.
Não queria que Saori enlouquecesse. Não queria fazer mal nenhum a ela. Apesar de tudo era sua mãe, a pessoa que o trouxera novamente ao mundo para cumprir sua missão. Esqueça e volte. Ela piscou os olhos assustada. Soltou-se da mão que prendia seu rosto e olhou em volta, tentando perceber onde estava.
--O que foi que aconteceu? Minha cabeça... só pode ter sido obra do demônio! – exclamou levando às mãos à cabeça, estranhamente enevoada.
--A senhora estava desmaiada no chão. As criadas a encontraram com as mãos queimadas e desacordada – mentiu o menino.
Não gostava de mentir. Preferia sempre a verdade, por mais dolorosa que fosse. Porém, nesse caso a verdade seria dolorosa demais para Saori e poderia lançá-la novamente em estado de choque. Ela o encarava com um olhar acusador. Não lembrava de tê-lo visto com os outros dois garotos, nem de quase tê-lo matado com os cacos de vidro.
--Não adianta olhar o menino. Lune estava comigo na plantação de chá quando tudo aconteceu. Não lembra de nada?
--Não... Lembro de estar procurando Lune e de não encontrar. Eu ia atrás dele naquele antro onde ele se enfia com a sua permissão. Então tudo fica confuso. Um branco sem fim e sem lembranças.
--Eu não fui ao templo hoje, mãe. Estava com meu pai na plantação.
--É verdade. O menino acordou, tomou café comigo e saímos. Você estava aqui rezando.
--Eu vou lembrar! E se, quando eu lembrar, descobrir que você tem alguma coisa a ver com isso, como eu acho que tem...
--Não ameace o garoto – interrompeu-a Shion. A raiva que sentia por ela aumentando momentaneamente. – Deixe-o em paz e continue rezando. Quem sabe assim Deus não a perdoa pelas maldades que faz com seu filho e permite que lembre do que lhe aconteceu.
Ela encarou-o profundamente ofendida. Não fazia maldades com seu filho. Tentava libertá-lo do pecado e do demônio que se apossara da alma da criança. Queria salvá-lo e torná-lo um bom cristão. Nada mais justo e mais digno. No dia em que o libertasse, aí sim o chamaria de filho e lhe daria o carinho que lhe caberia.
Ajoelhou-se e pegou o livro de orações na cabeceira da cama, fazendo sinal para que o menino ajoelhasse também. Lune fez sinal para que Shion não interferisse, era melhor assim. O inglês saiu do quarto se perguntando até quando aquela situação continuaria, até quando teria que esconder seu amor por Donko e manter aquele falso casamento que já não agüentava mais.
Notas:
1- Em fevereiro de 1793 irrompe a guerra entre a França republicana e a Inglaterra. Seguem-se lutas quase ininterruptas até a derrota de Napoleão em Waterloo. È a essa guerra que o Radamanthys se refere.
A historinha da criação do mundo foi inspirada em uma história do Silmarilion, de J. R. R. Tolkien, e na versão Hindu da criação.
2- Na versão original Rana derrota Ravana depois de salvar Sita.
3- Varnasi é uma cidade indiana que produz uma das melhores seda do mundo.
Obrigada a Litha-chan (hehehehehe ainda não foi dessa vez que Xatori virou churrasco! Ela acha que o Lune tem o demo no corpo e ta tentando exorcizar, mas ela sossega agora. Finalmente as respostas sobre o Rada! Espero que tenha ficado tudo esclarecido! Rada não vai desistir, ele vai encher a Pan até ter sua chance XD O Lune ta mto bem servido com o Mu e o Shaka hehehe e o Shaka logo atacará novamente XD Nhaaa! Tomara que vc consiga ler e que goste do cap!) e Yumi Sumeragi (brigada pelo apoio que você tem me dado e pelos elogios! Adoro vc!). E obrigada também a todos os leitores tímidos que não deixaram review. Façam essa escritora doida feliz! Comentem, please!
No próximo capítulo: Ravana encontrará Sita? O que acontecera a Kanon quando tentar proteger o irmão de um mal inevitável? Saori lembrara que tentaram fazer churrasco dela? Atualização sábado que vem!
