Capítulo 12 – A Tempestade Desaba
Conforme os dias iam passando a sombra que encobria o sol durante o dia e a lua e as estrelas durante a noite ia ficando mais densa. A felicidade que tomara conta dos mestres do Templo, dos meninos e de Donko e Shion ficava frágil, como um fio de teia de aranha esticado a seu limite que estava para se romper a qualquer momento. Tudo dependia de Ravana.
Shaka estava se virando muito bem sem o sentido da visão. Shiryu conseguira lhe mostrar que os olhos podiam ser as janelas da alma, mas não eram o único meio dela ver o exterior. Lune estava novamente tendo problemas com Saori que cismara de trancá-lo no quarto e deixá-lo sem comida. Aproveitava estas oportunidades para melhor controlar os poderes que agora lembrava que tinha. Mu estava quase sempre junto de Shaka, pensando em um jeito de encontrarem Lune.
Radamanthys tomara sua decisão e procurava coragem para executar a primeira ordem de Ravana. Ele lhe dissera que era o único jeito de despertar Kamsa e seus poderes e que, daquela maneira, também se livrariam de um problema irritante de uma vez por todas. Não era nada fácil fazer o que lhe fora solicitado. Tinha que tentar. Por Pandora.
A tarde estava abafada. Nuvens escuras, que de modo algum eram nuvens de chuva, pairavam no céu, ocultando quase toda a luminosidade do sol. A população começava a se preocupar. Éris e Tatsumi apregoavam o fim do mundo sem medir o efeito que suas palavras poderiam causar naquela pobre gente.
Saori passava ainda mais tempo rezando e olhava desconfiada para Lune, como se o culpasse pelo que acontecia. Tentava a todo custo lembrar do que lhe acontecera. As feridas das mãos quase completamente cicatrizadas. Temia que o mundo realmente acabasse. Não queria que o Dia do Juízo chegasse sem que tivesse conseguido libertar Lune.
Estranhamente, não conseguia mais martirizá-lo. Algo de divino e inocente brilhava nos olhos do garoto, uma ternura indizível que a impedia de feri-lo de qualquer forma que fosse. Quando olhava nos olhos dele via um pálido reflexo da imagem divina, do amor que, no fundo de sua alma, sabia que o Criador sentia por todas as suas criaturas.
Sentada no sofá, conversava com Hilda sobre o futuro casamento dos filhos, que elas davam como certo. Eurídice presenciava a cena com uma raiva contida. A tristeza não deixava seus olhos nem por um segundo que fosse. Jamais perdoaria a mãe pelo que lhe tinha feito. Arrancara-lhe a felicidade como alguém que arranca uma erva daninha do jardim e espalha sal pela terra para que nada mais cresça naquele lugar.
--O que foi querida? – perguntou Saori, vendo que a menina arfava. – Não se sente bem?
--O calor me sufoca – respondeu secamente.
--Vá ao jardim tomar um ar, então.
--Com sua licença, senhora minha mãe – pediu a menina saindo para o jardim.
--O que há com ela? – perguntou Saori ao ver a menina passar pela porta que levava ao jardim dos fundos.
--Problemas de menina-moça – respondeu Hilda, parecendo preocupada. – Está na idade de casar. Siegfried quer que case logo e tenha um filho homem para que seja seu herdeiro, já que Deus não permitiu que eu lhe desse um.
--Ainda não consegui falar com Shion, ele anda cheio de problemas, coitado. A plantação tem lhe tomado todo o tempo – mentiu, engolindo a raiva por saber que os problemas do marido não eram a plantação de chá, mas sim um certo selvagem que o estava levando para o caminho da perdição.
--Meu marido faz gosto nesse casamento. Fale com o seu, creio que também não verá problemas.
Saori deu um sorriso sem-graça e pegou com dificuldade a xícara de chá à sua frente. Não poderia dizer que Shion recusara a idéia dizendo que Lune não queria se casar ainda. Esse casamento tinha que se realizar, o menino não encontraria partido melhor em toda aquela terra.
Saga separou-se ofegante do irmão que o beijava. Uma vertigem repentina fazia sua cabeça rodar. Sabia o que era. Toda vez que estava para ter uma visão sentia aquele mal-estar. Kanon o abraçou, procurando acalmá-lo. Tremia violentamente. As imagens se confundiam-se, disformes. De repente, tudo desapareceu em um turbilhão negro, deixando um vazio que o fez cair exausto nos braços de Kanon.
--Escute, Kanon. Você precisa tirar os garotos daqui. E vá com eles. Faça isso por mim, por favor.
--Por que está me pedindo isso Saga? O que foi que você viu?
--Nada. É só por segurança – disse. A voz carregada de tristeza.
--Não minta.
--Ravana... ele está vindo, eu acho – disse inseguro.
--Como assim, Ravana está vindo? – gritou assustado.
--Eu não sei direito... não tenho certeza do que vi. Apenas tire os garotos do templo. E vá com eles. Eles ainda não estão prontos para lutar. Precisamos retardar mais um pouco o encontro deles com Ravana, ou tudo estará perdido. Por favor, Kanon... pelo menos uma vez na vida faça o que eu peço sem discutir...
--Vou tirar os garotos daqui – disse indo em direção à porta. É claro que não iria com eles. Jamais abandonaria Saga, ainda mais se Ravana realmente estivesse vindo. Foi puxado de volta. Saga o beijou com um desespero que o assustou.
--Eu amo você...
--Eu também.
Encontrou Shaka e Mu no pátio interno, conversando concentrados. Mu veio falar com ele antes que pudesse tomar qualquer atitude e pediu se podiam ir ver Lune. Prontamente permitiu, mas pediu que Shura os acompanhasse. Não deviam andar sozinhos por aí em épocas como aquela. Mal sabia que estava colocando os meninos nas mãos do inimigo. Bastava uma simples ordem de Ravana para que Shura se visse obrigado a acabar com os dois.
Shiryu foi com eles, para fazer companhia a Shura enquanto os outros dois visitavam Lune. Não conhecia bem o caminho para a casa de Shion, então se apoiava no braço de Shura, encostando a cabeça em seu ombro de forma carinhosa. Sirhyu nada sabia da guerra que se travava. Ninguém sabia além daqueles que estavam diretamente envolvidos nela.
Shura queria que ele jamais viesse a saber. E que jamais viesse a saber que não era sua alma gêmea, como o rapaz vivia dizendo, simplesmente porque nenhuma alma vivia dentro de si. Esse fato o entristecia. Era estranho sentir tristeza. Era estranho sentir. Ele não fora criado para sentir e sim para executar ordens. Contudo, não era ruim.
Ao contrário. Sentir era muito bom. O simples contato da cabeça de Shiryu sobre seu ombro lhe causava arrepios. Os beijos, a sensação de estar com ele, eram indescritíveis. Porque Shiryu não podia ser seu mestre no lugar de Ravana? Seria a mais feliz das criaturas se pudesse receber ordens daquele garoto. Por hora, fazia questão de atender todos os seus pedidos, apesar dele não ser seu verdadeiro mestre.
Eurídice sentou em um dos bancos e suspirou. O que não daria para voltar à Inglaterra! Não que a Índia não lhe agradasse. Parecia o paraíso, poderia passar sua vida toda ali. Porém, o mais importante lhe faltava. O amor de sua vida lhe havia sido arrancado bruscamente. Ou melhor, ela havia sido arrancada bruscamente do amor de sua vida.
Hilda descobrira sua paixão e imediatamente decidira pela partida para a Índia. Não pudera se despedir ou dizer para onde ia. Seu amor nunca ia encontrá-la. Deixou uma lágrima solitária banhar seu rosto. Fechou os olhos e sorriu ao lembrar das mãos delicadas desfazendo os laços que lhe prendiam a parte de trás do vestido negro, beijos suaves em seu pescoço.
O barulho das teclas de um piano soando desafinadas quando escorregou com os braços sobre elas. Adorava aqueles toques. Eram a melhor parte das aulas de piano que tinha todas as tardes. Por sorte sua mãe ia à igreja naquela hora. O vestido de seda não demorou a deslizar por seus braços. Tirou-o por completo, ficando somente com as roupas íntimas que também eram negras, contrariando a moda da época.
Logo os fios do espartilho se alargaram e a peça caiu no chão, as tiras de madeira produzindo um baque seco. Pode respirar com alívio. Virou-se, sentando-se de frente para receber um beijo terno nos lábios. Novamente as teclas ressoaram quando teve as costas pressionadas contra elas.
Ia começar a desfazer os laços que prendiam o vestido de sua amada professora de piano quando a porta da sala bateu contra a parede com um baque seco. Hilda presenciava a cena, chocada demais para pronunciar qualquer palavra. Levou uma surra que a deixou de cama durante dias. Assim que pôde andar partiram para a Índia.
--Anna... sinto tanto a sua falta – murmurou em voz baixa. – Quem está aí? – perguntou ouvindo um barulho de galhos estalando.
--Desculpe, não queríamos assustá-la – disse um garoto de longos cabelos cor de lavanda e olhos verdes. Segurava a mão de outro garoto, mais ou menos da mesma idade, mas louro e de olhos fechados.
--Quem é, Mu? – perguntou o garoto de olhos fechados. Pensou que devia ser cego.
--Uma daquelas garotas filhas das inglesas. Acho que é amiga do Lune – respondeu em voz baixa. Voltou-se para a garota e sorriu. – Você é amiga do Lune?
Olhou desconfiada para aqueles dois garotos de roupas esquisitas. Sua mãe dizia que vivam num antro de perdição e serviam ao demônio quando viam alguém com aquelas roupas na rua. Mas quem se importava com o que Hilda dizia? Lembrou-se das tentativas de Lune de fazer amizade com ela e resolveu considerar.
--Sou... mais ou menos.
--Pode fazer um favor? É que a mãe dele nos proibiu de entrar aí... mas queríamos muito falar com ele – pediu Shaka. – Pode ir lá dentro e dizer que estamos esperando?
--Quem exatamente o está esperando? – perguntou intrigada.
--Mu e Shaka – respondeu Mu prontamente.
Ela levantou e sumiu dentro da casa. Pouco depois voltou com Lune. O garoto trazia um sorriso nos lábios, correu até os outros dois e lhes beijou a face. Eurídice permaneceu longe deles, perto da porta a pedido de Lune, para o caso de Saori ou alguém aparecer.
--Pensei que não viriam mais me ver – reclamou sentando na grama e puxando-os para que sentassem um de cada lado seu.
--Nós viemos. Sua mãe nos expulsou – disse Shaka com ar de enfado. Estendeu o braço e acariciou o rosto de Lune. Podia vê-lo claramente em sua memória. Shiva o estava ajudando. – Eu quero um beijo – disse. Seu tom oscilando entre a sensualidade e a inocência.
Lune não pôde resistir. Sabia que não deveria se atrever a tanto com Eurídice a olhá-los da porta. Colou os lábios nos de Shaka, colocando os joelhos ao lado de seu corpo, sentando no colo do garoto. O indiano estava sentado sobre os calcanhares e adorou sentir o peso de seu amado sobre o colo.
A garota arregalou os olhos, mal acreditando no que via. O filho de Saori Heathcliff, seu "futuro noivo", estava beijando outro garoto da forma mais apaixonada que já vira. Depois de passada a surpresa, achou a cena encantadora. Ia levantar e entrar, porque não tinha vocação para segurar vela, quando viu o outro garoto se aproximar dos dois.
Mu olhava para eles com um sorriso sonhador nos lábios. Não conseguiu agüentar por muito tempo. Ajoelhou-se atrás de Lune, afastando-lhe os cabelos. Beijou delicadamente o pescoço do garoto, causando-lhe um gemido involuntário por entre o beijo que trocava com Shaka.
--Também senti saudades – murmurou em seu ouvido. Mordeu de leve o lóbulo da orelha de Lune, fazendo-o soltar um gemido mais alto. Apertou mais o inglês em seus braços e sentiu a mão de Shaka a lhe acariciar o rosto.
Segurou a mão do loirinho entre a sua e depositou um beijo na palma, voltando a beijar o pescoço do inglês. De certa forma, era como se voltassem a ser uma mesma alma apenas com aquelas simples carícias e beijos. Lembrou vagamente de como era extasiante estar unido de verdade aos outros dois.
Eurídice entrou com o rosto um pouco corado. Jamais pensaria que Lune, com a cara de anjinho que tinha, fosse capaz de namorar garotos, ainda mais dois ao mesmo tempo. Ela entendia. Era amor, o que se podia fazer? Encostou-se na parede interna da casa, continuando a observar se vinha alguém do interior.
Saga estava muito pensativo. Aquela visão que tivera não devia ser boa coisa. Suspeitava que se tratasse de alguma armação de Ravana. Estava sentado sobre os calcanhares, os olhos erguidos fitavam a janela e a paisagem que se descortinava além dela. As pálpebras ficavam pesadas, uma sonolência indolente lhe embaçava a visão e lhe tirava as forças.
Caiu desacordado no chão antes que pudesse sequer descobrir o que estava acontecendo. Kanon entrou no quarto a tempo de ver uma luz avermelhada envolvê-lo e quando ela desapareceu seu irmão não era mais o mesmo. Os cabelos haviam se tornado cinzentos, os olhos vermelhos como sangue, cheios de más intenções. Um sorriso irônico deixava seu rosto com ar perverso.
--Ra... Ravana? – perguntou confuso ao ver no que seu amado irmão se transformara. A presença opressora não poderia ser de outra criatura. Uma aura pesada e angustiante pairava ao redor dele. – O que você quer com meu irmão, Ravana?
--Com o imbecil do seu irmão não quero nada. Com você o caso muda.
Olhou-o intrigado, sem entender o que se passava. Quando Saga disse que Ravana estava vindo pensou que fosse para tentar algo contra os meninos e que viria no corpo que estava ocupando. O que o espírito do demônio fazia no corpo de seu irmão? E o que queria ali se sabia que os meninos estavam em outro lugar? Pois certamente Ravana sabia que não estavam ali, nem sentia a presença deles por perto.
--Você! Quero você, Kanon! Ou será que devo dizer Sita? – sibilou, lendo os pensamentos do monge.
Kanon estremeceu. Que história era aquela de Ravana chamá-lo de Sita? Não pode ser, pensou, os deuses só descem à terra quando a terra precisa deles. Não posso ter o espírito de uma deusa dentro de mim. Esse cara tá maluco...
--Não, não estou maluco. Antes de ser preso pela primeira vez naquela torre horrenda joguei uma maldição em você. Usei minhas últimas forças para condenar seu espírito a retornar sempre que eu retornasse. Não vai se livrar dela a menos que ceda à mim.
--Não sei do que está falando. Se um espírito imortal vivesse em mim não acha que eu saberia?
--Boa pergunta. Infelizmente, meu querido irmãozinho Rama descobriu sobre a maldição. Tentando impedir que eu encontrasse seu espírito, fez um encantamento que selaria suas memórias e seus poderes quando passasse pelo portal que separa os mundos, para que eu não pudesse sentir sua presença e não a encontrasse.
--Se não pode sentir a presença de Sita, como pode ter tanta certeza que sou eu?
--Duas coisas: o rosário de contas que carregou com você em sua viagem. Apenas aqueles que possuem uma centelha divina na alma são capazes de tocá-los. E minhas sombras se recusaram a matá-lo quando ordenei. Elas só se recusariam a interromper a vida de uma única alma, a alma de Sita.
Kanon estava pálido e tremia. Não é possível, pensou. No entanto, as provas estavam ali. Ele levara o rosário de Mu envolto no pulso para entregar ao menino. E Saga dera o outro de presente à Shaka. Como não me dei conta disso antes? Então Saga também possuía uma alma divina. Pelo amor desmedido que sentia pelo irmão deduziu que deveria ser a alma de Rama.
--Bem Sita, por milênios eu fui paciente e esperei que cedesse a mim por vontade própria. Isto nunca aconteceu. Prefere ser fiel a Rama a ter tudo o que posso lhe oferecer. Minha paciência chegou ao fim. É a última vez que lhe faço esta proposta, se recusar terá que arcar com as conseqüências.
Permaneceu em silêncio. As nuvens se adensavam em torno do sol. O Dharma começava a ser rompido pela magia mal intencionada de Ravana, era o que significava aquela escuridão. Após uma pausa, o demônio levantou-se e continuou a falar, aproximando-se de Kanon:
-- Se ceder a mim, uma única vez que seja, liberto-o da maldição e pode escolher seu destino. Dou a você três opções: a destruição completa, passar a eternidade agonizando ao lado de seu amado Rama ou ficar ao meu lado e aceitar o poder que lhe ofereço.
--Nem uma única vez seu miserável! – exclamou dando-se conta de que Ravana não estava brincando. – Jamais vou trair Saga! E de que adiantaria? Eu ceder a você me libertaria, mas não libertaria o mundo de sua presença desprezível. Bela escolha você me oferece! Pois eu digo nenhuma das opções! Agora dê o fora e traga Saga de volta!
--Não. Realmente não desistiria de destruir aqueles três vermes que roubaram meu lugar no Início e fundar um novo Dharma, ao meu modo. Não desistiria do poder, mas o compartilharia com você.
--Olha, vai encher outra pessoa tá. Eu não sou Sita, nem nunca fui.
--Você sabe que falo a verdade. Seu coração o está avisando de que estou falando sério e estou certo em minhas afirmações. Então qual é a sua escolha? – perguntou calmamente.
--Já disse. Minha escolha é que traga Saga de volta de uma vez!
--Minha paciência realmente acabou. Foram milênios tentando ser gentil, colocando o mundo a seus pés e esperando que olhasse para mim e percebesse que Rama não se compara a mim nem de longe! Se não for por bem vai ser por mal.
--Ah é? Quero ver então!
--Continua petulante! – exclamou, pela primeira vez desde o início da estranha entrevista perdendo a calma e o ar de gentileza que aparentava.
--E é mais incrível que depois de tantos milênios você não desistiu, isso é claro, supondo que você não esteja louco e o espírito de Sita esteja em mim. Sinceramente não acredito nisso.
Cada vez mais ele se aproximava. O medo o acompanhava a cada passo, roçando suas garras no monge parado perto da porta. Num movimento mais brusco, enlaçou a cintura de Kanon e o prendeu fortemente contra si. Lágrimas desciam pela face do mestre do templo do oeste, era angustiante demais. Não podia suportar o contato. Tentou desesperadamente se soltar.
--Se resistir desta vez, eu o mato. Faço seu querido irmão em pedaços, não vai sobrar nem sombra do espírito mortal com o qual Rama fundiu sua alma. Quer que isso aconteça? Quer perder seu irmãozinho? – disse encostando os lábios no ouvido de Kanon.
Um grito sufocado na garganta. O ar faltando. O coração cheio de terror e desespero. Era ceder a Ravana ou perder Saga para sempre. Não importava mais se era Sita ou não. Não importava mais se perderia sua honra. Balançou a cabeça, respondendo negativamente às perguntas do demônio.
--Então é melhor ser bonzinho comigo – disse mordendo-lhe a pele sensível do pescoço sem dó. – E não chore, ou será pior para seu irmão.
Engoliu as lágrimas fazendo uma força descomunal para que não voltassem a cair. Parou de lutar. Sentiu o toque frio em sua pele quando o demônio começou a desatar os nós que lhe prendiam a túnica. Perdão, Saga. Repetia a frase, esperando que em algum lugar o irmão ouvisse e entendesse o porquê de sua atitude.
--Precisamos conversar – disse Shaka partindo o beijo. Ofegava e tremia um pouco.
--Você viu as nuvens? Estão ficando mais densas – disse Mu, preocupado.
Lune olhou para o céu e não viu nem o mais pálido reflexo de raios de sol. Ravana estava cobrindo a terra com a escuridão. Da Índia ela se espalharia até cobrir tudo. Sem a luz do sol refletindo sobre a terra e sobre as águas o equilíbrio se romperia em pouco tempo.
O dia precisava da noite e a noite precisava do dia. Um não poderia existir só sem o outro. Se as trevas encobrissem tudo seria o caos. As plantas morreriam por falta de sol, os animais e os homens por falta de alimento. Cinza, fumaça e poeira predominariam em toda a parte. Os garotos não conseguiam entender o que Ravana faria com um reino assim.
Desolação e morte. Esse seria o futuro se não conseguissem derrotá-lo. Um grande deserto escuro e sem qualquer resquício de vida que, com o tempo, tragaria também os deuses para si. Ravana não media as conseqüências do que tentava fazer. Sua ambição não lhe daria o domínio do mundo, porque era uma questão de tempo até o mundo desaparecer. Ele sozinho não seria capaz de criar e manter um novo Dharma.
O garoto baixou os olhos. Virou-se um pouco de lado e focalizou o rosto de Mu. Estava apreensivo. Nunca tinham perdido aquela luta, porém sempre há uma primeira vez. Impossível evitar a insegurança e o medo de que fosse aquela. Beijou-lhe ternamente, como a tentar dissipar as dúvidas. Dúvidas estas que também lhe atormentavam. Voltou-se para Shaka e depositou um beijo em cada um de seus olhos.
--Você logo vai poder abri-los novamente – disse com doçura.
--Sinceramente, tenho medo do que pode acontecer quando eu abri-los...
--Não tem que ter medo – disse Mu, acariciando seu rosto. – Tudo vai ficar bem.
--Nós estamos com você. Estamos juntos e vamos conseguir – disse Lune segurando as mãos dos dois.
--Acha que devemos ir atrás dele? Esperar e ver o que vai acontecer? – perguntou Shaka.
--Por isso viemos aqui, Lune. Queremos saber o que você acha. Além de estarmos com saudades – disse sorrindo.
--Devemos esperar. Não estamos totalmente prontos para lutar com ele de frente. E acredito que nem ele esteja.
--A questão é estarmos prontos antes dele, então – disse Shaka, mordendo o lábio inferior de forma nervosa. Mu há muito sabia exatamente o que teria de fazer. Lune aprendera em poucos dias. Somente ele não conseguia controlar os poderes sem causar desastres.
--Tudo tem uma hora certa pra acontecer, não precisamos apressar as coisas – disse Lune tentando consolá-lo. Deu-lhe um selinho carinhoso, virando-se e deitando as costas no peito de Shaka. Com um sorriso, estendeu a mão para Mu e convidou-o a aninhar-se em seus braços. Enquanto a hora da batalha não chegava poderiam aproveitar a companhia uns dos outros.
Nojo, repulsa, asco. Pavor. Não podia descrever com precisão a natureza do sentimento tão ruim que o perpassava. Cada beijo lhe dava náuseas, cada toque causava dor. Era o corpo de Saga sobre o seu, mas não era a alma de seu irmão. E o que é um corpo depois que a alma o deixa? Nada mais que um monte de pele, ossos e carne que não serve para nada e deve ser destruído.
Mesmo no Hinayana o corpo era considerado impuro depois que a alma o deixava, por isso era queimado e tinha suas cinzas jogadas no rio sagrado. As águas purificariam aquela matéria indigna, para que pudesse voltar a fazer parte do mundo de outra forma. Sem a alma de Saga, era um corpo impuro que tinha sobre o seu.
Não chorava, lembrando-se da promessa do demônio de cada lágrima seria uma gota de dor para seu irmão. Mantinha os olhos fortemente cerrados. As mãos trêmulas pousadas sobre as costas de Ravana, não tinha escolha senão corresponder aos toques, ou fingir que correspondia. Era a vida de Saga que estava em jogo e faria tudo por ele.
Não conseguia pensar direito. Todas as suas memórias e pensamentos estavam paralisados. Ravana não queria ouvir nem sequer seus pensamentos clamando por Saga enquanto o possuía. No vazio preenchido de horror e abominação que o inundava, Kanon repetia o nome do irmão, como um mantra que lhe dava força.
A pele clara e sempre acariciada com carinho por Saga estava agora marcada de arranhões e mordidas, cheia de hematomas e pequenas feridas que demorariam a cicatrizar. Não tanto no corpo, mas na alma do Mestre do Templo. Estava traindo Saga, seu único amor. Estava pertencendo a outro quando sempre se negara a pertencer a ele.
Em um sonho infantil e um pouco bobo que alimentava, queria guardar aquele momento para depois que o irmão finalmente casasse com ele. Quando Saga implorava entre beijos e carícias que o deixasse possuí-lo ria e negava. Só depois que você casar comigo. Respondia, divertindo-se com a expressão emburrada do irmão.
Como arrependia-se de tais palavras! Quisera ter se entregado a ele e não à violência daquele terrível demônio. Quisera ele fosse o primeiro e o único a tocar aquele ponto tão íntimo de si. Foi virado bruscamente na cama e invadido sem a menor compaixão. Ouviu o gemido de deleite do demônio.
A dor pôde ser sentida em todas as células de seu corpo. Uma dor dilacerante que não rompia apenas seu corpo, fazendo-o sangrar, mas partia sua alma e despedaçava seu coração. As unhas do outro apertando seus ombros, arranhando suas costas. Apertava o lençol quase rasgando o tecido fino. Sua única reação era manter com todas as forças as lágrimas presas atrás das pálpebras.
Ravana divertia-se com os gemidos de dor, com o sangue que saía dos arranhões. Seu regozijo dobrou ao dar-se conta que era o primeiro a tomá-lo para si. Naquela vida e naquela tarde vingava-se de Rama. Estava possuindo sua amada Sita antes dele e fazendo-a sua dali por diante. Sua honrada esposa o estava traindo e não dizia uma palavra para protestar.
O cheiro de sangue o inebriava. Sem parar com as frenéticas investidas, aproximou os lábios de um dos ferimentos e sorveu o líquido avermelhado sobre ele. Seu corpo estremeceu estranhamente. Desgraçado! Pensou dando-se conta do engano fatal de que fora vítima. Ao mesmo tempo em que se derramava dentro do monge puxou-lhe os cabelos, levanto seu rosto, e deu-lhe uma forte bofetada.
Caiu exausto ao lado dele, perdendo os sentidos antes que pudesse reagir à descoberta. O sangue que provara não era de Sita. Era de Rama. Não entendia o que podia estar errado. Como suas sombras haviam se recusado a eliminar seu pior inimigo? Como ele tinha se rebaixado ao ponto de deitar com o irmão que tanto odiava?
A verdade era que Rama fora mais esperto do que ele. Ao realizar o encantamento que selaria as memórias de Sita, selou as suas próprias também e usou um feitiço de confusão que faria Ravana confundi-lo com ela. Por todos os milênios em que voltara à terra, o demônio estivera perseguindo e fazendo propostas ao irmão, enquanto Sita, seu verdadeiro objetivo, ficava protegida de suas investidas.
A presença opressiva foi embora. O sangue de Rama havia libertado a alma de Saga, que estava de volta, tornando seu corpo puro e digno novamente. Kanon não teve coragem de se virar e olhar o irmão. Tudo o que sabia era que, por uma estranha ironia do destino, era Rama. E Saga era Sita.
Então ele chorou. Deixou caírem todas as lágrimas contidas durante aquele ato vergonhoso e humilhante. O desejo sem amor é a causa de todo o sofrimento. Thanatos nunca tivera tanta razão como quando lhe ensinara isso. Sofria imensamente por ter cedido ao desejo de um vil demônio, tornando-se tão sujo quanto ele.
Chorou por horas incontáveis. Esperando que as lágrimas lavassem sua alma. Pensava em tantas coisas e não queria pensar em nada. Sabia que há poucos metros estava o rio sagrado. Queria afundar-se naquelas águas e desaparecer.
O pranto foi acalmando. Permanecia deitado de bruços, com o rosto virado para o lado oposto ao qual o irmão dormia. A respiração tranqüila de Saga era um consolo. Ele estava de volta, seu sacrifício o salvara. Permitiu-se sorrir, sentindo muita dor no rosto inchado e ferido. O corpo todo doía, latejava e ardia. Os olhos avermelhados e inchados pelo pranto contínuo.
Chorava baixinho, semi-inconsciente, quando Saga acordou. Seus cabelos e olhos tinham voltado ao normal e não lembrava de quase nada. Viu o corpo do irmão hirto na cama, cheio de machucados, o sangue ainda descendo por entre suas pernas. Sentiu um nó na garganta, um peso no coração. Tocou-lhe as costas com a ponta dos dedos, fazendo Kanon se encolher e gemer de dor.
--Kanon... o que foi que aconteceu aqui? O que foi que eu fiz? – perguntou com um fio de voz. Levantou e foi até o outro lado da cama. Ajoelhou-se perto do irmão, tocando seu rosto de leve.
Kanon fechou os olhos, sem coragem de encará-lo.
--Eu traí você, Saga – disse deixando duas grossas lágrimas caírem.
--Do que você está falando, Kanon? O que foi que aconteceu? – perguntou preocupado.
No Hinayana havia somente uma atitude inaceitável, considerada indigna e condenada pelos deuses: deitar-se com outra pessoa sem amor ou qualquer outro sentimento além do desejo físico. Este era o pior mal que se poderia fazer, contra si mesmo e contra o outro. O desejo físico era a causa de todo e qualquer sofrimento, ninguém devia ceder a ele.
Kanon havia cedido, com boas intenções, mas havia cedido. Sentia-se a pior das criaturas. A traição, o fato de um demônio abominável ter sido o primeiro ao invés do irmão que tanto amava. Tudo voltou, fazendo-o cair no choro novamente. Saga lembrou da visão que tivera. As imagens tornaram-se incrivelmente claras.
Foi quando tocou a mão de Kanon que viu o sangue em suas unhas. Arregalou os olhos pedindo aos deuses que sua suspeitas estivessem erradas. Murmurou o nome do irmão em uma súplica implícita para que lhe revelasse o que tinha acontecido. Nada além de silêncio e mais lágrimas por parte do outro.
--Fui eu, não fui? – perguntou desesperado. – Kanon... me perdoa... por Shiva... o que foi que eu fiz?
--Não foi você... foi... foi Ravana – disse finalmente, achando que Saga tinha o direito de saber que a culpa não era sua.
--Ravana? Ravana... me usou pra... pra fazer isso com você? Mas... a troco de quê? – perguntou com lágrimas nos olhos, sem conseguir articular direito as palavras. – Eu pensei... que ele queria os meninos...
Escondeu o rosto com a mão, virando-o contra o travesseiro. Conhecia o irmão bem o suficiente para saber que ele passaria o resto da vida se culpando, achando que era ele quem deveria estar no lugar de Kanon e pensando que poderia ter evitado. Não queria que ele sofresse. Não sabia o que lhe dizer. Tudo o que queria era apagar aquela lembrança ruim, esquecer de tudo nos braços de Saga. Não era mais digno sequer de olhá-lo.
--Kanon... fala comigo...
Pousou a mão sobre os cabelos do irmão, alisando-os de forma carinhosa. Kanon esforçou-se e afastou-se para o outro lado da cama, desviando o toque. Sentiu a dor dos ferimentos roçando no lençol. Ela já não importava. Não havia dor pior que saber que nunca mais teria os beijos de Saga, que nunca mais o ouviria murmurar palavras carinhosas enquanto adormeciam abraçados.
Kanon nunca tinha fugido de seus toques antes. Era um fraco miserável por ter permitido que Ravana se apossasse de seu corpo e machucasse seu irmão daquela maneira. Ele tinha razão em fugir.
--Algum dia você vai me perdoar? – perguntou, a voz embargada pelas lágrimas. Estava perdendo a pessoa que mais amava no mundo e a culpa era toda sua. Embora não entendesse direito o que tinha acontecido, sabia que a culpa era sua.
Ao perceber toda a dor na voz daquele que amava, Kanon sentiu-se ainda pior.
--Não tenho nada pra perdoar, Saga... Você sempre foi tudo pra mim. Eu sempre te amei acima de tudo. E continuo amando apesar de não te merecer mais. Se fujo dos seus toques não é por estar com raiva de você, ou por não te amar mais. É porque minha alma está manchada e não quero manchar a sua.
Foi a vez de Saga ficar em silêncio. Pegou o irmão nos braços, tomando o máximo cuidado para não machucá-lo ainda mais, e o levou para um outro quarto, ignorando os protestos para que o soltasse. Ali estava a bacia de prata e um pequeno vaso das ervas que usava para auxiliarem seu poder de cura.
Preparou a infusão e foi para perto de Kanon. Era tão triste vê-lo daquela maneira. Não era o Kanon que conhecia. Algo em seu interior temeu que a alma de seu irmão de fato tivesse sido destruída por Ravana. Não queria perdê-lo.
--Escute bem, Kanon, porque eu só vou falar uma vez. Pouco me importa se você se deitou com outro ou não. Pouco me importa se me traiu como disse. Não importa se seu corpo pertenceu a outro e não a mim. Seu coração é só meu, eu posso sentir. Eu o amo e não vou permitir que fique nesse estado.
Pegou um pedaço de tecido macio, dobrou e mergulhou na infusão, começando a cicatrizar os ferimentos de Kanon. Cada ferida cicatrizada era um beijo que depositava em sua pele. Kanon não chorava mais. Seu coração transbordava de amor por Saga. Não queria sujá-lo também, mas não tinha forças para repelir seus toques.
O desejo sem amor é a causa de todo sofrimento, mas o desejo daqueles que amam é a causa de toda a felicidade. Não há ato mais sublime que a união de dois corpos cujas almas se amam. O amor verdadeiro purifica. O amor verdadeiro é capaz de realizar milagres.
Quando Saga pingou duas gotas do líquido em seus olhos e pousou os lábios sobre os seus, Kanon já não sentia dor alguma. Não restava em seu corpo qualquer marca de Ravana. A alma ainda estava dolorida, mas Saga faria passar. Deitou sobre o irmão, aprofundando o beijo. Kanon permitiu-se abraçá-lo e correspondeu no mesmo ritmo.
Separaram-se ofegantes, com um sorriso tranqüilo no rosto. Kanon sentiu-se um pouco idiota por pensar que Saga o desprezaria. Os olhares se encontraram dizendo tudo o que precisavam saber. Que se amavam e nem a maldade de Ravana poderia acabar com esse amor.
Mais tarde Kanon contou com calma tudo o que tinha acontecido. Nunca tivera segredos com Saga e, por mais que achasse que ele poderia sofrer, não esconderia nada dele. De fato, Saga sentiu-se muito mal por Kanon ter tomado seu sofrimento para si e passado por tudo em seu lugar. Concordaram em não tocar mais no assunto e procurar esquecer aquele pesadelo.
Quem não esqueceria tão cedo era Ravana. Estava de volta ao corpo de Abel e tomado de fúria por ter sido enganado. O sangue de Rama o enfraquecera consideravelmente, embora tivesse provado umas poucas gotas. Não ficaria assim. Ele iria se vingar de Rama.
Agora que sabia que o outro gêmeo é que era Sita, só precisava de um tempo para se recuperar. Um novo plano se formava em sua mente. Acabaria de uma vez só com todos os seus inimigos. E faria Sita pagar pelo atrevimento do marido. Rama não perdia por esperar. Nem aqueles três vermezinhos que se diziam avatares da Trindade. Acabaria com todos e o mundo seria seu.
Lune despediu-se dos meninos. Andava em direção à porta quando Radamanthys apareceu de um canto escondido do jardim e o segurou pelo braço. Havia uma luz diferente em seus olhos. Mais cruel e desalmada que a reles implicância de sempre. A mão apertava seu braço com força, de uma maneira incômoda.
--O que você quer? – perguntou tentando soltar-se.
--O tio está chamando na plantação. Tem que ir agora – disse secamente.
Estava nervoso. Gotículas de suor brotavam de sua testa. Lune sabia que o pai não estava na plantação, logo não poderia tê-lo chamado. O rosto do primo estava tão sombrio quanto as nuvens que se adensavam no céu. Apesar da implicância e da aparente antipatia, não queria mal o garoto.
Lembrou-se dos contos que sua mãe contava quando era pequeno. Sentiu-se o lenhador levando a doce princesa para a morte por ordem da madrasta malvada. Afinal, o que o primo tinha feito para merecer aquilo? Lune era doce, gentil e carinhoso num mundo onde todos eram falsos, dissimulados e pervertidos. Implicava com ele justamente por ser diferente de todos.
O garoto estava em dúvida se ia com ele ou não. Por detrás dos olhos de Radamanthys pairava a sombra de um demônio. A sombra de Kamsa. Shaka já o tinha avisado poucos dias depois que chegaram à Índia. Avisos não eram necessários. Naquele momento ele mesmo pôde ver a sombra adormecida, só esperando um gesto ínfimo para acordar e tomar conta da boa alma com a qual dividia o corpo.
A mente do rapaz refletia suas intenções escusas como um espelho reflete a imagem diante de si. Tudo o que Ravana dissera a seu primo para convencê-lo a se aliar a ele, o motivo daquela mentira. Não podia acreditar que Radamanthys realmente tentaria matá-lo. E quem era Pandora?
--Tem certeza que é isso que quer? – perguntou.
--O quê? – disse confuso sem entender a pergunta.
--Me ver morto – disse calmamente. A alma de Radamanthys era boa, precisaria de muito pouco para fazê-lo desistir e conservar Kamsa adormecido. – Ele mentiu pra você. Nós não queremos fazer mal a essa tal Pandora, nem sabemos quem ela é.
As palavras o deixaram tonto. É verdade que parte da tontura se devia às quatro garrafas que bebera para tomar coragem. Mas ouvir de Lune a afirmação que não tivera coragem de repetir piorara tudo. Não soube o que dizer. Que história era essa de Abel, Ravana ou qualquer que fosse seu nome, estar mentindo?
--É ele quem quer destruir tudo. Nós estamos aqui para detê-lo. Se me matar vai condenar o mundo à destruição.
--Já chega! Eu não vou ouvir! Você é o mau nessa história toda! É você que quer acabar com tudo! Minha tia tem razão quando diz que o demônio se apossou de você! – exclamou puxando Lune para o lado das plantações de chá.
O garoto resistiu, soltando-se de Radamanthys. Mantinha-se calmo. Em quanto Kamsa estivesse dormindo não havia o que temer.
--Não existe bem ou mal absoluto. E ambos são um ponto de vista. Achamos que uma pessoa é má quando ela age contra nossos interesses ou os interesses da maioria. Queremos destruir Ravana e acabar com seus planos, para ele nós somos os maus. Mas está vendo essa escuridão? Foi ele quem a criou. Está matando a humanidade aos poucos, logo não restara mais que desolação e morte em toda parte. É isso que queremos evitar.
--Mas ele disse... ele disse que – gaguejou confuso.
--Ele mentiu. E não contou a história toda. Se você não acredita em mim, pode me matar, não vou fazer nada para reagir – disse com a voz um pouco trêmula. Esperava que Kamsa estivesse sonolento o suficiente para não perceber uma vítima se entregando tão facilmente para o sacrifício.
Radamanthys levou a mão à cintura, pousando-a sobre a pistola carregada que trazia. Lune fechou os olhos e pediu a Vishnu que o ajudasse. Se ele morresse a guerra estaria perdida. O homem de cabelos e olhos dourados chegou a apontar a arma para o primo. As mãos tremiam de forma violenta. Puxou o gatilho, tentando mirar a testa de Lune.
Uma aura azulada brilhava quase imperceptível ao redor do garoto. O rosto calmo, apesar de o coração estar disparado. Não podia morrer agora. Radamanthys lembrou de todas as brigas que tiveram, de cada frase que dissera para implicar com o garoto. Fechou os olhos e atirou.
Lune abriu os olhos assustado. A arma estava apontada para o alto. Radamanthys suava frio. Não tinha coragem. Mentalmente pediu desculpas a Pandora. Amava-a de todo o coração, mas não se tornaria um assassino por esse amor. Achando-se um covarde, baixou a arma e apontou para o próprio peito, disposto a acabar com aquela existência miserável que de nada servia.
--Radamanthys, não faça isso – disse Lune arrancando-lhe a pistola. Abraçou-o tentando confortá-lo. O espírito do outro se acalmou um pouco. – Tudo vai ficar bem.
Abraçou o primo também, arrependido de ter tentado. Ravana que o desculpasse, mas não ajudaria desta forma. Ainda não sabia o que pensar sobre quem estava certo naquela guerra estranha. Pela primeira vez desde que entrara no Star Hill sentia vontade de nunca ter saído da Inglaterra.
Preferia aquela guerra violenta onde homens se matavam a balas e golpes de espada nos campos de batalha e canhões de navios eram apontados de uma nação para outra. Pelo menos esta ele podia entender. Não gostava daquela luz crepuscular que não deixava ver o sol. Seu coração estava pesado.
A escuridão assemelhava-se a uma noite clara de luar, porém não havia lua ou estrelas no céu. Era meio-dia. Durante toda a semana a escuridão foi se adensando e tornando-se mais pesada. Mesmo fraco, o poder de Ravana era incalculável. Crianças choravam em pânico, mulheres rezavam desesperadas e homens andavam furtivos pelas ruas, temendo pelo pior.
No Templo os monges meditavam aflitos. Os mestres estavam separados, cada um cuidando da vigília em seu próprio templo. Na noite anterior, quando perceberam que não haveria nascer do sol nem a claridade crepuscular que surgia todas as manhãs, reuniram os monges e contaram o que se passava.
Tornou-se perigoso andar pelas estradas, os animais atacavam todos os que se aproximassem. As águas do mar e do Ganges estavam revoltas e violentas. Nenhuma brisa soprava para amenizar o calor. As plantas começavam a murchar lentamente. Era o começo do fim.
Ravana estava furioso com a hesitação de Radamanthys. Outro detalhe que não estava em seus planos. As coisas começavam a complicar para seu lado. Precisava agir e com urgência. A escuridão atingira seu auge, mas para espalhá-la para o resto do mundo precisava de mais poder.
A cidade estava um caos e o representante da Companhia nada fazia para controlar a situação. Alguém precisava agir. Donko andava de um lado para o outro, dando ordens para que os comerciantes fechassem as portas e os marinheiros não saíssem do porto com os navios.
Mandara uma carta à Shion naquele dia pedindo que não saísse de casa. Era perigoso ele andar sozinho numa situação como aquela. E Ravana poderia capturá-lo e usá-lo contra Lune. Também era perigoso ele próprio andar na cidade, dando ordens e tentando controlar o pânico, mas não podia deixar aquelas pobres pessoas sem amparo algum. Seu pai não gostaria que deixasse.
Samia estava no templo do leste. O filho não quis que ficasse sozinha em casa e contou sobre a guerra quando viu sua preocupação. Ela estava otimista, confiava nos meninos. Uma pálida esperança brilhava em seu coração. Talvez William ainda pudesse voltar para ela.
Perto do mar, Julian Solo tentava acalmar as águas. Ondas enormes quebravam contra a praia, levando para as profundezas tudo o que encontravam em seu caminho. Com um suspiro resignado, decidiu que era hora de tomar parte naquela guerra.
Seu pai estava morto. O mar o havia levado e o navio em que estavam terminava de afundar em chamas. E ele continuava vivo. As ondas enormes não o tragavam para dentro da água. Naquela noite tempestuosa em que seu pai afundou no Cabo da Boa Esperança ele descobriu que havia um espírito diferente dentro de si.
Os deuses sentem falta da terra. Alguns deles usam o mesmo truque que Ravana para poderem voltar e fundem sua alma a uma alma mortal. Alguns adormecem por milênios e de repente acordam em um corpo mortal sem nem saberem o que estão fazendo ali. Foi o que aconteceu com Varuna, senhor dos mares.
Acordou no meio das águas, no corpo de um garoto de 15 anos. Pouco depois recebera um pedido de ajuda dos monges do Templo. Pediram-lhe que pegasse um rosário de contas que estava guardado e entregasse ao verdadeiro dono no tempo certo. Reconheceu no menino chamado Lune o dono do objeto.
Pensou que poderia terminar em paz seus dias naquela vida depois de entregar o rosário ao menino. Mas não foi o que aconteceu. Ravana apareceu para atormentá-lo com propostas insanas que recusou veementemente. Só queria ter uma vida tranqüila, perto do mar que tanto amava. Fizera um acordo com o demônio concordando em não entrar na guerra, em troca ele não voltaria a incomodá-lo. Sabia que Ravana não ia cumprir. Tampouco ele tinha planos de permanecer fora do conflito.
Olhou para as águas uma última vez e virou-se para o lado do Templo. Não deu dois passos. Uma dor aguda o atingiu e o fez cair de joelhos. À sua frente um homem de cabelos azul-claros observava impassível. A um pensamento, a dor de Julian aumentou, era como se sua alma estivesse sendo arrancada do corpo.
Uma pequena esfera de um azul-prateado brilhante escapou pelos lábios entreabertos do senhor dos mares e foi pousar na palma da mão de Ravana. O demônio sugou-a para seu interior com uma expressão de deleite no rosto, apreciando a nova energia que o revitalizava.
Quando abriu os olhos Julian nada mais sabia além de seu nome e de uma ordem que paira no meio do vazio que se tornara seu coração: obedecer Ravana. Não sentia absolutamente nada e algo lhe disse que não tinha este direito. Com sua energia sugada por Ravana, Julian não passava de mais uma de suas sombras.
O som suave de uma flauta invadiu o salão principal do templo do leste, tranqüilo e reconfortante. Um sorriso inocente desabrochou nos lábios de Saga. As pálpebras cerradas tremeram. A voz, concentrada na meditação e nas preces, vacilou. Quem estaria tocando? De olhos fechados, era como se os raios do luar viessem brincar em sua face através das notas da canção.
Levantou-se de súbito. Os monges nada perceberam. Continuavam as preces sem hesitar, mesmo depois da voz do mestre do Templo ter silenciado. Andava como se uma mão invisível guiasse a sua. Uma mão feita de ondas musicais. A flauta o atraiu para fora do templo do leste e para dentro da mata. Não abria os olhos com medo da magia se desfazer.
Sua mente completamente livre de qualquer pensamento. Só havia a música. E aquela estranha carícia gelada em sua pele que lembrava por demais a sensação de estar exposto a mais linda noite de luar. Não percebeu que seguia por uma trilha íngreme que começava a subir mata a dentro. Luz alguma penetrava a densa vegetação.
No topo da encosta, uma torre negra subia altaneira muito acima das copas das árvores. Por detrás de uma das janelas em arco uma figura de olhos verde-dourados tocava flauta como se sua vida dependesse disso. Ravana descobrira seus sentimentos e ameaçara matar Shiryu se não obedecesse.
Nunca pensou que pudesse tocar uma música como aquela sendo vazio por dentro. No entanto, já não era mais vazio. O amor por Shiryu preenchia todo o seu coração. Quando o monge entrou na torre continuou tocando até que Ravana o trancasse no aposento mais alto. A porta foi selada com a magia do demônio, nada poderia abri-la, a menos que ele fosse expulso da terra.
A música cessou. O ser que a tocava foi dispensado e voltou ao templo do leste para continuar sua tarefa de coletar e mandar informações a seu mestre. O coração condoia-se por estar fazendo mal a um daqueles que o acolhera há tantos anos e lhe dera todo o carinho de um amigo. Justamente aquele que lhe entregara Shiryu pela mão e pedira que cuidasse do menino.
Acostumara-se a esses sentimentos, já que não podia nem queria evitá-los. Nas noites frias e escuras dos últimos dias abraçava-se ao garoto tentando aquecê-lo da brisa mórbida que soprava. Então se dava ao luxo de imaginar que ele realmente era sua alma gêmea, que não era uma mera sombra e que acordaria com a luz do sol no rosto, descobrindo que tinha sido tudo um sonho ruim. Não haveria mais guerras e eles poderiam ser felizes juntos.
Crystal of Stars fora o local escolhido pelas senhoras religiosas e de boa família de Calcutá para rezar e esperar a hora do Julgamento Final. As cabeças cobertas por finos véus de seda ou musselina. As mãos unidas ou segurando o Livro de Orações. Os joelhos dobrados. Rezavam sem interrupções desde a tarde anterior. Tatsumi conduzia as preces, com um sorriso sombrio nos lábios. Chegou a hora dos pecadores pagarem. Vão para o inferno, todos eles. Pensava satisfeito.
As crianças também estavam ali, além de algumas outras senhoras que antes não faziam parte do pequeno e seleto grupo que se reunia todas as tardes para tomar chá. Estas eram as mais conservadoras, que preferiam passar o dia rezando na igreja ao invés de tomar chá, comer biscoitos e falar da vida alheia. Em horas difíceis a união tornava-se essencial.
Shion andava de um lado para o outro no escritório. Estava preocupado com Donko, com os meninos, com a batalha que se aproximava. Há três dias não via seu amado, recebera uma carta pedindo que não saísse em hipótese alguma. Achou-a sensata, apesar de sentir saudades. Seu coração estava pesado, como o de todos os que estavam debaixo da escuridão.
O forte cheiro de vela que vinha da sala o deixava enjoado. Preferia permanecer no escuro, os olhos fechados, relembrando cada momento que tivera com o amante. Tinha medo de nunca mais voltar a vê-lo. Sabia que seria verdadeiramente o fim do mundo se os meninos falhassem. Eles não vão falhar! Gritava sempre uma voz em seu interior.
Em meio a toda a angustia, permitiu-se sorrir. No bolso da casaca, que fora obrigado a tirar do armário para se proteger do frio súbito que a escuridão trouxera consigo, repousava uma caixinha de madeira forrada em veludo verde. Dentro dela duas alianças douradas lado a lado. Tudo ia passar. Pediria a separação a Saori e casaria com Donko.
Na sala as orações continuavam. Meera passava de quando em quando uma bandeja com copos de água, xícaras de chá e biscoitos. Ela seguia o Caminho, confiava na Trindade e sabia que não havia o que temer. O que menos queria agora era uma fanática caindo desmaiada.
Achou Tatsumi um homem desprezível. Impossível simpatizar com alguém que parava de rezar de quando em quando para ir contar histórias aterrorizantes de fogos incendiando a terra e queimando todos os pecadores a crianças pequenas. Não havia uma delas que não estivesse com os olhos cheios de lágrimas.
Até os mais velhos abraçavam-se com medo. Mime recostava a cabeça no ombro de Fenrir e chorava baixinho. Tinha muito medo do fim do mundo e as histórias que Tatsumi contava lhe causavam arrepios. Também não gostava daquele cheio de velas, a casa toda fechada estava com o ar sufocante. Sentiu o corpo ceder sobre o de Fenrir, que estava ajoelhado de frente para si.
--Hei... o que foi? – perguntou com carinho, deixando todo o sarcasmo de lado.
--Estou com falta de ar – respondeu com um pouco de dificuldade.
--Vamos sair daqui. Esse circo já está passando dos limites pro meu gosto – disse em voz baixar ajudando o namorado a levantar.
Recebeu um olhar fulminante de Tatsumi. Seu filho tinha que dar o exemplo, tinha que rezar e mostrar que não era um pecador. Respondeu com um "ele está passando mal" e saiu com Mime, procurando um lugar onde pudessem ter paz.
Encontrou este lugar em um dos quartos desocupados. Trancou a porta e deitou Mime delicadamente na cama. Abriu a janela e deixou o vento entrar por alguns minutos, fechando logo depois, junto com as cortinas. O aposento continuava da mesma forma: imerso em trevas. A tarde ia pela metade, mas não se via luz alguma no exterior.
--Está melhor? – perguntou sentando ao lado dele.
--Um pouco – disse puxando o namorado para que deitasse a seu lado e se aconchegando nos braços dele. – Estou com medo, Fenrir... e se acabar mesmo?
--Você acredita mesmo nas besteiras do meu pai? Não se preocupe, ele não vai arruinar nossos planos. A escuridão vai passar e nós vamos dar o fora como tínhamos planejado.
Ergueu-se um pouco, tomou os lábios do garoto de cabelos azuis entre os seus, sendo correspondido com avidez. Se o mundo acabasse, queria estar ali, nos braços de Fenrir. Sentiu as unhas compridas entrarem por debaixo de sua blusa e arranharem suas costas. Foi virado bruscamente, tendo Fenrir sobre si e os lábios dele em seu pescoço.
--Espera... podem nos ouvir...
--Não acredito que no meio daquela ladainha toda vão reparar em um gemido ou dois – disse divertido, começando a desabotoar a camisa do namorado. No fundo também sentia um pouco de medo. Seja lá o que fosse acontecer queria estar com Mime. Aquela história que para ele tinha começado como um capricho por vingança a falsa moral pregada por seu pai havia se tornado um amor tão forte que não conseguia imaginar sua vida sem o outro garoto.
Sentado sobre a cama em posição de meditação Lune sorriu. Em meio a toda aquela angústia e opressão uma réstia de amor estava brilhando. Enquanto há amor, há esperança. Foi até a porta tentando abrir. Trancada. Saori cismara de trancá-lo quando tinha tentado sair.
Ela nunca seria capaz de entender. Algo grave estava acontecendo. O coração batia descompassado, advertindo-o de que precisavam dele, de que o momento havia chegado. Um raio seco cortou o céu cor de breu. Sabia que a chuva não viria. No entanto, a tempestade acabava de desabar.
Notas:
Varuna é o deus protetor dos mares para os Hindus.
Por favor, não me matem pelo que eu fiz com o Kanoninho!
Obrigada a Aniannka (o sofrimento do Shura logo vai chegar ao fim! Vc tem razão, é contrário, só o Ravana que não percebeu XD O pai do Donko em breve vai aparecer. Lune é bonzinho com a Saori pq... nem ele sabe, afinal das contas XD) e Litha-chan (Rada já se revoltou contra o Ravana, ele não ia seguir aquele doido. Os maridos tinham sim plenos poderes sobre as esposas, mas o caso do Shion é complexo. Saori era uma esposa modelo e ele tinha um caso com um homem e não fazia muita questão de esconder, se tentasse fazer algo seria pior pra ele. Mas as coisas vão se resolver XD Rada e Pandora vão se acertar um dia, ele é insistente e ela não vai resistir pra sempre, mesmo que seja só pra ele calar a boca XD). E obrigada a Yumi Sumeragi pelo apoio e por me aturar com essa fic! Tanks aos leitores silenciosos que não se manifestaram, mas acompanham a fic! Façam uma boa ação: comentem please!
Na semana que vem o último cap e o epílogo! As coisas vão se resolver mesmo ou Ravana ganha e detona com tudo? Não percam sábado, a atualização XD
