Capítulo 13 – Luz e Escuridão, o retorno do equilíbrio
Todos estremeceram quando o raio cortou o céu e rompeu a escuridão por alguns segundos. Lune forçou um pouco mais a porta que nem se moveu. Tinha que sair dali. Ouviu algo entrar pela janela e bater na mesinha de cabeceira. Pelo cheio parecia ser um limão. Olhou para fora sorrindo. Mu e Shaka o esperavam.
Foi uma questão de segundos até Mu usar da telecinese que controlava para baixá-lo da janela e fazê-lo tocar o chão. Olharam-se um pouco apreensivos. Lune beijou rapidamente os dois, a vontade que tinha era de abraçá-los com força e se perder naquele abraço. Precisavam lutar. O destino do mundo estava em suas mãos.
--Mestre Saga sumiu – disse Shaka preocupado.
--Ele saiu ontem à tarde e não voltou. Kanon partiu atrás dele há pouco tempo, quando estranhou a falta de notícias e veio ver o que estava acontecendo desse lado do rio. Não conseguimos impedir – disse Mu aparentando calma, embora seu espírito estivesse revolto em um mar de medos e angústias.
--Depois que mestre Kanon saiu tentamos descobrir mais alguma coisa. Shura confessou que é espião de Ravana. Disse que atraiu Saga a mando do demônio para uma torre negra no meio da floresta. Viemos buscar você para irmos atrás dele.
--Como assim Shura é espião de Ravana? – perguntou Lune confuso. Conhecia Shura desde que começara a freqüentar o Templo. Apesar do monge aparentar certa frieza não havia maldade em sua alma. Lune saberia se houvesse.
--Foi o que nós perguntamos. Ele contou uma história confusa sobre ser uma sombra de Ravana e estar vagando pela terra há milênios, obrigado a obedecer as ordens do demônio sem conseguir se rebelar.
--Ravana roubou os poderes e lembranças dele – constatou Lune.
--Achamos que sim. Mas o encantamento está se rompendo. Shura encontrou a alma gêmea. Pelo amor que sente por Shiryu conseguiu se rebelar e nos contar onde Saga estava. Se derrotarmos Ravana ele será totalmente libertado.
--Nós vamos derrotá-lo. Temos que derrotá-lo. Vocês sabem o caminho?
--Shura está no portão nos esperando. Shiryu também veio, não teve jeito de deixar Shura vir sozinho. Está com medo que Ravana o mate pela traição.
--Vamos então. Quantos antes melhor – disse Lune.
--Não vai querer andar por aí no escuro, vai? – disse Shaka um pouco divertido. Estava ansioso para mostrar à Lune o que conseguira.
Só então Lune percebeu que mal podia ver o vulto dos outros dois. A floresta densa em que entrariam acabaria por completo com a pouca visibilidade que tinham. Surpreso, viu Shaka aproximar as mãos uma da outra e uma pequena chama amarelada se formar entre elas.
Na companhia de Shura e Shiryu saíram da casa dos Heathcliff e entraram na mata, seguindo uma trilha sinuosa que se inclinava para cima. Sobre a escrivaninha do quarto de Lune um bilhete endereçado a Shion escrito há algum tempo explicava seu sumiço e despedia-se, desejando-lhe felicidades, caso não pudesse retornar.
Pandora andava furiosa, cortando caminho pela floresta para chegar mais depressa. Se usasse a estrada era certo que ia cruzar com os três garotos que Ravana insistia em chamar de pirralhos. Nunca os tinha visto, nem sabia o que achar deles. Fora Ravana que lhe estendera a mão quando mais precisou e oferecera a vingança que tanto desejava. O resto não vinha ao caso.
A uma boa distância, Radamanthys a seguia com dificuldade, tropeçando nos galhos mortos e pedras que se espalhavam pelo chão. Queria que ela lhe tivesse dado tempo para pegar uma tocha, não via quase nada naquela escuridão. Distraído depois de tropeçar pela centésima vez, bateu de frente com uma árvore e caiu sentado, soltando um grito de dor.
--Levante e continue – disse Pandora sem olhar para trás. – Não temos tempo para lamentos, Ravana nos espera.
Ela chegara em Crystals of Stars interrompendo de súbito uma das preces de Tatsumi e fizera sinal para que a seguisse. Não fez perguntas, pensou que conversariam do lado de fora. Tatsumi e as distintas senhoras ficaram horrorizados, mas preferiram pensar que senhor Abel havia requisitado a presença do senhor Radamanthys e, no meio da confusão, precisara mandar a mulher ir buscá-lo.
Quando saíram, ela nada disse. Pôs-se a andar e ele a seguiu. Era a primeira frase que conseguia e estavam naquela floresta há quase meia hora. O coração do rapaz se encheu de alegria ao ouvir a voz doce da amada. Levantou o mais rápido que conseguiu e foi atrás dela. Pandora balançou a cabeça achando-o mais ridículo que de costume.
Ele quis dizer que não ia ajudar. Desde o dia em que tentara matar Lune e fracassara não quis mais saber de Ravana ou daquela guerra. Havia ficado quieto em seu canto, muito assustado com os acontecimentos. Pensava que, como ele, Pandora também havia sido enganada e não deixava de ter razão. Tentou lhe dizer, mas foi interrompido ao pronunciar a primeira palavra.
--Nem pense em falar! Já é suficiente aturar sua presença, não me faça aturar sua voz também – disse ela.
Resignou-se a continuar o caminho. Como era doce sua amada! Na certa pensava estar fazendo um bem e não queria distrair-se. Falaria quando chegassem, fosse lá para onde estivessem indo. Salvaria sua querida Pandora das garras de Ravana e se tornaria um herói aos olhos dela. Sonhando com o beijo recompensador de sua donzela, distraiu-se novamente e tropeçou. Não pela última vez. A culpa não era dele se estava escuro.
Confusão, medo, frio. Foram as primeiras sensações que Saga teve ao recuperar lentamente a consciência. As pálpebras se abriram para ver uma ampla sala de pedra escura e um monte de almofadas rodeadas por cortinas de musselina também escuras. Um vento gélido entrava pela janela em arco. Percebeu alarmado que aquela era a única abertura do local.
Como viera parar ali e o que fazia naquela sala eram perguntas para as quais não tinha respostas. Lembrou-se da música. Tinha que ter ligação com a música. Mas como associar uma música tão bela a um aposento frio de paredes escuras? Aliás, escuridão era o que não faltava. Havia tanta luminosidade quanto em uma noite sem luar e sem estrelas.
Apertou o manto de casimira junto ao corpo na tentativa de se aquecer. Levantou e andou lentamente até a janela. Temia o que poderia ver. Seus pressentimentos pessimistas não podiam ser mais certos. Encontrava-se no alto de uma torre rodeada de espinhos e não havia qualquer saída aparente que pudesse usar para fugir.
Só podia ser coisa de Ravana. Arrepiou-se ao pensar que a torre se assemelhava demais às descrições da Torre dos Tormentos que constavam nas escrituras sagradas. Kanon. Era nele que pensava. Kanon suportara os toques lascivos de Ravana para que ele não passasse por isso. Não tinha o direito de fazer a besteira que fizera saindo sozinho, correndo o risco de colocar a perder o sacrifício de seu irmão.
Ouviu o ruído de pedras deslizando e logo apareceu uma abertura na parede oposta à janela. A luz de uma tocha deixou ver claramente o rosto de Abel. Então era ele. Ao pensar que aquele desgraçado havia violentando seu irmão, a pessoa que mais amava no mundo, Saga teve vontade de matá-lo.
--Acalme-se, não adianta de nada ter vontade de me matar. Nem junto com meu querido irmãozinho Rama e os três pirralhos você teria poder para tanto.
--O que você quer de mim, desgraçado? Já não chega o que fez ao meu irmão? – perguntou cheio de raiva.
--A ele, você disse bem. Aquele verme me enganou, me humilhou da pior forma possível. Ele vai pagar. E você também... Sita – acrescentou depois de uma pausa.
O nome fez Saga estremecer, embora nada lembrasse de claro e concreto sobre isso. Os passos de Ravana traziam consigo angústia e medo. Encolheu-se contra as almofadas, abraçando-se a uma delas, como para se proteger. Kanon tinha razão, era a pior sensação do mundo. Ravana carregada consigo todos os sentimentos sombrios e impregnava com eles a alma dos que estavam por perto.
--Viu o que aconteceu com meu irmãozinho quando fui visitá-lo? – perguntou ele cinicamente. – Aquilo não será nada perto do que eu vou fazer com você. Vai pagar por cada vez que me rejeitou e pelo atrevimento dele se passando por você. Quando eu acabar será sorte se sua alma continuar inteira ou tiver forças para se manter dentro do corpo.
Lágrimas carregadas de dor e pânico deslizavam pela face do mestre do Templo. Sentia todas as sombras do mundo a envolvê-lo. Viu uma mão branca estender-se para si e encostar-se ao tecido da túnica. Não conseguia reagir e tremia muito. No momento em que ia descobrir o ombro de Saga o demônio parou e olhou para a janela.
--Ora, ora, temos companhia! – exclamou afastando-se.
Menos de um minuto depois ouviram Kanon chamando pelo irmão. Ele não conseguiu responder, a voz não mais lhe obedecia. Queria gritar para que fosse embora e salvasse sua vida e ao mesmo tempo queria-o perto de si, abraçando-o e protegendo-o daquelas sensações odiosas e repulsivas.
--Quer convidá-lo para nos fazer companhia? – perguntou o demônio de forma cínica e debochada. A palavra não se formou nos lábios de Saga, mas ele não conseguiu pronunciá-la. – Ou acha melhor irmos nos juntar a ele?
Sem dar tempo para respostas, Ravana agarrou o braço de Saga e o puxou para a abertura pela qual entrara. Os dedos queimavam sobre o tecido fino, o mestre do Templo sentia dor e nojo através daquele toque. Foi arrastado por um longo lance de degraus até uma porta pequena e sombria.
Fora da torre a escuridão reinava imponente, arruinando qualquer tentativa de Saga ver claramente o rosto do irmão. Adivinhou a expressão de pânico e alívio que deveria estar em seu rosto. Ravana estava com Saga. Ele, contudo, estava vivo e ainda ileso. Deu um passo para frente, saindo das sombras.
--Nem pense nisso – disse Ravana.
Largou o braço de Saga e passou uma mão por sua cintura, impedindo-o de tentar fugir. Com a mão esquerda puxou uma cimitarra que trazia no cinto e posicionou-a sobre o pescoço do gêmeo. Kanon surpreendeu-se, não pensou que ele fosse capaz de fazer mal a Sita.
--Não se engane. Eu tenho tempo, toda a eternidade para esperar que ela volte à terra e seja minha, assim como o mundo será em breve.
--Kanon vá embora – pediu Saga.
--Eu nunca deixaria você. Não vim aqui pra te ver nas mãos desse desgraçado e desistir e ir embora. Ou levo você comigo ou morremos os dois aqui.
--Que comovente! Fiquei emocionado! – disse sem abandonar o cinismo. – Infelizmente para vocês não estou disposto a facilitar as coisas. Vocês dois esgotaram minha paciência, me fizeram de tolo por tempo demais. Não deixarei que morram sem antes terem sofrido o suficiente para pagarem pelo que fizeram.
--Seria capaz de ver Sita sofrendo? Mesmo com todo o amor que diz ter por ela?
De súbito, Saga entendeu. Seu irmão estava tentando ganhar tempo para que Ravana não o ferisse até os garotos chegarem. Desejou de todo o coração que eles viessem e acabassem com aquele pesadelo. Sentiu a lâmina fria afastar-se ligeiramente de sua pele. Ravana ponderava sobre as palavras de Kanon.
Em algum lugar entre Deli e Calcutá um homem andava sem saber que direção deveria seguir. Há anos estava assim. Não lembrava o nome ou de onde vinha, se tinha família, se alguém estaria a sua procura. Andava em círculos de um vilarejo para o outro, ajudando as pessoas que encontrava e prestando pequenos trabalhos em troca de comida. Era uma das muitas vítimas de Ravana.
Às vezes, quando deitava em um monte de palha ou mesmo no chão para dormir, tinha vislumbres de uma luz avermelhada, ouvia gritos de homens e barulhos de cavalos assustados. E depois silêncio. Em seus sonhos um rosto aparecia constantemente.
Uma mulher ainda bela, de meia idade, cabelos castanhos e olhos azuis. Quem era? Não tinha idéia. Sabia apenas que a amava. Pedia-lhe socorro, dizendo que estava perdido e queria voltar para casa. Então tudo sumia e acordava assustado. Por vezes chorava, angustiado por não poder lembrar de sua casa.
Parou de repente, vendo uma bifurcação na estrada. Nunca reconhecera nada em todo o tempo que vagava por aquelas estradas. No entanto, reconhecia aquele caminho. Levava a um vilarejo pequeno, onde havia uma ponte sobre o rio. A ponte, por sua vez, dava em uma estrada grande e ampla, ladeada por árvores frondosas.
Estranhou aquele laivo de memória em meio a tanta confusão e incerteza. Com um sorriso sincero agradeceu aos deuses e seguiu pela bifurcação. Ainda não sabia para onde estava indo, mas estava feliz em lembrar. Sentiu que o fim de sua longa viagem se aproximava. Foi como se uma nuvem escura que pairava sobre sua cabeça durante todos aqueles anos – não sabia exatamente quantos – fosse embora e lhe permitisse ver o sol, justo quando ele se escondia em meio daquela terrível escuridão.
Ravana concentrava todas as suas energias para a luta que viria em breve. Não ia desperdiçá-las com coisas sem importância como manter o antigo representante da Companhia Inglesa das Índias Orientais com amnésia para que não voltasse a se colocar no caminho de Abel. Abel estava condenado e o que importava era ter todo o poder que pudesse reunir.
No templo do leste, Samia parou as preces por alguns instantes. O coração batia descompassado, querendo dar-lhe o aviso. Seu William estava voltando para ela. Mais que rapidamente, voltou a recitar as orações com o rosário de contas entre as mãos. Agradecia aos deuses por este aviso e pelo retorno tão esperado que o iria suceder.
Ravana cansou rapidamente do jogo de palavras a que Kanon o instigava. A lâmina aproximou-se perigosamente do pescoço de Saga, fazendo um corte superficial e deixando um fio de sangue escorrer. É claro que não o mataria daquela forma. Seria rápido e indolor demais para seu gosto.
--Não! – gritou Kanon, entrando em desespero.
Uma alta muralha de espinheiros circundava a torre e o pequeno espaço gramado onde estavam. Havia uma abertura, Kanon passara por ela. Porém, logo depois da passagem do monge ela havia se fechado. Ravana não queria que ninguém interrompesse o início de sua vingança.
Quando acabasse com Rama e Sita deixaria os pirralhos passarem e então tudo estaria terminado. Subestimara seus adversários. Quando descia a cimitarra lentamente para o peito do monge, ameaçando fazer outro corte ali uma luz intensa explodiu e abriu um buraco entre os espinhos, provocando um estrondo que ecoou colina abaixo.
Mu, Lune e Shaka passaram um ao lado do outro. A luz continuava a brilhar ao seu redor, embora mais fraca e quase crepuscular. Era a luz divina que se libertara do lacre atrás do qual descansava nas almas dos meninos. As trevas de Ravana recuaram diante de seu avanço.
--Solte-o – disse Mu com a voz calma e confiante, demonstrando a segurança e simplicidade daqueles que nada tem a temer, pois lutam por uma causa nobre e defendem o amor.
--O que significa isso? – perguntou atordoado. – Mais um passo e eu o mato! – ameaçou com a cimitarra novamente ao pescoço de Saga.
Isso definitivamente não estava em seus planos. Sentiu-se acuado, prestes a vê-los ruírem novamente. Não, não desta vez. Tudo o que precisava fazer era acabar com Sita e enfrentá-los. Kali estava chegando e o ajudaria. Hesitou. Mu percebeu e usou a telecinese para atrair a cimitarra e ajudar Saga a se soltar. O mestre do Templo correu para o irmão e o abraçou, ainda trêmulo de pânico.
--Não pensei que depois de tantos milênios seria tão tolo a ponto de confiar mais em uma arma feita por mortais que em sua magia – zombou Shaka, ouvindo a lâmina cair aos pés de Mu.
--Como se atreve! – perguntou indignado. Dos três, o espírito de Shiva era o que mais odiava.
A um gesto, todas as sombras se reuniram ao redor de seu mestre. Havia aquelas criadas da sombra do próprio Ravana, que não possuíam corpo ou qualquer tipo de vontade e matavam pelo horror que causavam ao cercarem a vítima. E aquelas de quem o demônio roubara a energia e as lembranças, cuja força vital fora consumida por ele. Shura era uma destas.
Resistia com todas as forças ao chamado do demônio. Não queria mais obedecer. Segurava fortemente a mão de Shiryu entre a sua, apoiando-se naquele amor. Não pretendia lutar contra aqueles que estavam lá para devolver o equilíbrio ao mundo.
--Ousa desobedecer a mim? – perguntou Ravana, voltando-se para ele.
Shura sustentou firmemente o olhar, não dando o braço a torcer. O coração doía, sabendo que estava colocando em risco a vida de Shiryu. Suas suspeitas se mostraram verdadeiras quando um golpe invisível atingiu o garoto e o fez cair inerte sob o chão.
--Ainda se nega a obedecer? Quer ter o mesmo fim que ele?
Sim, ele queria. Queria ser destruído e não ter que suportar a dor por ser responsável pela morte daquele que amava. Pois era amor o que sentia por Shiryu. Ele lhe mostrara os sentimentos, lhe ensinara a amar. E agora que sabia como era não o teria a seu lado. Duas lágrimas gélidas desceram pelo rosto de Shura quando se ajoelhou ao lado de Shiryu e apoiou sua cabeça no colo.
--Você é tão... tão bonito... como eu imaginei que seria – disse o garoto abrindo os olhos. Com as forças que lhe restavam, passou a ponta dos dedos pelo rosto de Shura. Podia vê-lo. Visão que durou apenas poucos segundos. A mão caiu inanimada e as pálpebras cerraram-se.
--Já não me importa mais nada. Faça como quiser – respondeu Shura, abraçando-o ao corpo que começava a perder o calor e deixando as lágrimas caírem.
Ravana levantou a mão para puni-lo. Foi interrompido por uma voz extremamente familiar e irritante que soou perto da passagem aberta pelos meninos.
--O que está acontecendo aqui? – perguntou Radamanthys aparecendo acompanhado de Pandora.
--Certamente não é uma festinha de boas vindas para você – disse ela secamente.
Como minha amada é doce! Pensou ele. Preocupa-se comigo mesmo no meio de tanta confusão. A esta altura ele havia bebido as duas garrafas retangulares de metal que trazia nos bolsos e começava a ver as coisas embaralhadas. Achava estar vendo o primo ao lado daqueles outros dois garotos que estavam sempre com ele.
--Mate-os – disse Ravana sem rodeios. Estava se prolongando demais. – E comece pelo loirinho.
Mal sabia que acabara de cometer seu pior erro. Pandora não discutiu a ordem. Teria sua vingança quando a luta terminasse, então que terminasse logo. Virou-se para Shaka e levantou as mãos em sua direção. Foi quando ele abriu os olhos, revelando as íris de um azul-esverdeado que não era estranho à ela.
Pandora era o espírito de Kali. Shaka era o espírito de Shiva. Embora não fossem almas gêmeas não poderiam ser indiferentes a este fato. Kali era o avatar enfurecido da esposa de Shiva, aquela que se levantava com as armas dos deuses para punir os que faziam o mal e visavam apenas os próprios interesses. Contudo, em sua ira Kali perdia o controle e começava a matar inocentes.
Shiva, compadecido da sorte daquelas almas, atirava-se aos pés de Kali e se deixava ser pisoteado até que ela recobrasse a consciência, percebendo que machucava o marido que tanto amava. E toda a raiva sumiu do coração de Pandora quando ela viu aquele olhar inocente e cheio de bondade. Até quando te destruo eu te protejo. Era a frase que aparecia em todos os escritos sagrados que se referiam a ele.
--Vamos! O que está esperando? – perguntou Ravana impaciente.
--Eu não posso... não ele...
--Ravana o enganou, Kali – disse Lune, que se mantivera calado até aquele momento. Vira a verdade e mostraria a ela. – Não são os homens que você deve odiar. E nem ele. O ódio envenena a alma e a mata lentamente, secando-a como um veneno seca uma árvore.
--Do que está falando?
--Não o escute! Ele só quer fazê-la desistir de sua vingança!
O véu caiu de sob os olhos de Pandora e ela viu os homens que incendiaram o templo onde vivia e violentaram e mataram as sacerdotisas. Matem todas, menos aquela que está consagrada a Kali. Façam o que quiserem com ela, mas não a matem. Era a voz de Abel pronunciando aquelas palavras. O homem cujo corpo agora Ravana dominava. Havia sido ele. Tudo para enredá-la em seus planos e fazê-la ajudar.
A raiva voltou e ela investiu furiosa contra o demônio. Uma luz avermelhada saiu das mãos de Ravana. A luz nunca chegou a atingi-la. Pandora foi jogada para o lado e só pode ouvir o grito de Radamanthys ao ter a alma despedaçada pelo encantamento.
--Por que...? – foi a pergunta que se formou em seus lábios.
Estava caído ao lado dela, com um sorriso débil no rosto. A bebida não o impedira de perceber que sua amada estava em perigo. Nunca a teria para si, como Ravana tinha prometido. Ela seria morta e não poderia nem mesmo vê-la de longe passando na rua, ou ouvi-la desdenhar seu amor. Não pensou duas vezes. Preferia morrer a viver com a certeza que ela estava perdida.
--Porque ele a amava – Lune tinha os olhos rasos d'água. Era um gesto muito nobre sacrificar-se pela vida da pessoa amada, precisava-se de muita coragem e de um amor sincero para tanto.
--Já chega, Ravana! Isso acaba aqui! – disse Shaka com a voz firme, voltando-se para o demônio.
O estrondo da explosão foi ouvido em Crystals of Stars. Tatsumi deu um sorriso satisfeito. Começou, finalmente começou. Pensava tolamente que era o início do Juízo Final. O choro das crianças dobrou de intensidade, nada mais faziam para ocultar o pranto de suas mães. Algumas mulheres também choravam, por seus maridos, por ser filhos, ou por elas mesmas.
A possibilidade de um fim definitivo era assustadora. Nem as promessas de uma eternidade de paz e alegria para aqueles que cressem e não cometessem pecados podia aplacar a sensação desesperadora do fim. Foram poucas aquelas que não procuraram o abraço de quem estava perto. Não queriam partir sozinhas, fosse para onde fosse.
Freya caiu desacordada nos braços do irmão. Ele, mais que depressa, tirou-a da sala. A garota estava pálida, os lábios descorados como se a própria morte já tivesse vindo buscá-la. Não era sua hora. Despertou assustada, olhando em volta, talvez à procura dos fogos do inferno onde imaginou que cairia ao ouvir o barulho tão terrível.
--Tudo bem... foi só um raio mais forte – disse Hagen, tentando consolá-la.
Estavam no corredor que dava para a sala, a poucos metros das rezas, do choro e do desespero. Hagen sentara com as costas apoiadas na parede e tinha Freya em seu colo. A sensação doce que o corpo da irmã tão próximo ao seu lhe causava apagava todo o resto. Beijou-lhe o rosto em um gesto de carinho e estreitou os braços em volta dela, tentando protegê-la.
--Hagen... eu não quero ir para o inferno...
--Você não vai. E o mundo não vai acabar – disse querendo muito acreditar nas próprias palavras.
--Você não entende... minha alma está perdida... e nem o arrependimento pode me salvar, porque eu não consigo me arrepender.
Ele pensou por um momento, não conseguindo entender qual pecado tão grave sua irmã cometera. Freya sempre fora uma boa filha, não respondia aos pais, obedecia-os em todo, era a melhor irmã que ele poderia ter, ia sempre à igreja, rezava todas as noites e tinha compaixão pelos outros. Um anjo como ela merecia certamente o paraíso.
--Eu o amo, Hagen – sussurou, voltando-se para o irmão e baixando os olhos logo depois, sem coragem de encará-lo. – O amo muito mais que uma irmã deveria amar.
--Deus perdoa aqueles que pecam por amor – disse, desta vez acreditando realmente no que dizia.
Segurou-a pelo queixo e depositou um beijo cheio de amor em seus lábios. Freya estremeceu ao contato, assustou-se e quis se afastar. Não conseguiu. O amor que sentia foi mais forte. Abraçou o irmão e correspondeu ao gesto, afundando naquele abraço e esquecendo o medo naquele beijo.
As orações tornavam-se mais fervorosas. Algumas pediam perdão, outras imploravam o adiamento do fim. Shion andava de um lado para o outro no escritório, querendo mandar tudo para o alto e ir procurar Donko. A única coisa que o mantinha em casa era a preocupação pelo filho. Ouvira a explosão, a luta devia ter começado.
Shaka sabia que não poderia destruir Ravana. Destruir as sombras seria romper o equilíbrio e causar um desastre maior do que deixá-las triunfar sobre a luz. Precisava mandá-lo de volta pela passagem. Romper o vínculo que o mantinha preso à terra.
Juntou as mãos em forma de oração, separando-as novamente de vagar. Uma esfera de luz dourada brilhava entre elas e ia crescendo à medida que as afastava. Um mantra saía de seus lábios, os olhos não se desviavam do demônio. Virou as mãos contra ele e a esfera de luz explodiu.
Foi rápido demais para que Ravana pensasse em reagir. Do corpo que ocupava não sobrou nem mesmo pó. A alma de Abel foi libertada e enviada para os Seis Infernos, para expiar suas culpas e pagar por parte da maldade que tinha feito naquela vida. O restante lhe seria cobrado quando voltasse a viver. A torre também desapareceu, assim como os espinhos.
Somente a escuridão continuava. As nuvens espessas não fizeram menção de se retirarem, mesmo o poder de Ravana tendo desaparecido da terra. Shaka caiu de joelhos e fechou os olhos. Sentia-se fraco. Lançara todo o poder que pudera reunir sobre o demônio, não queria dar chances dele escapar.
Duas esferas azul-claras e brilhantes flutuaram pelo ar. Uma voltou para Shura, fazendo-o lembrar de quem era. Candra, o senhor da lua. Shiryu era seu irmão e amante, Surya, o senhor do sol. Sol que já não brilhava sobre a terra. Tudo o que queria era voltar para o Nirvana e ficar com ele.
A outra das esferas foi para longe, para perto do mar. Julian Solo recuperou as lembranças. Viu com prazer as ondas se acalmarem aos poucos. Era bom sinal. O equilíbrio estava sendo restituído. Poderia terminar seus dias em paz como desejava.
No alto da colina, Mu olhava as nuvens. De olhos cerrados, fez um vento forte soprar, começando a dissipá-las. Lune ordenou que a água caísse, levando embora qualquer vestígio que as maldades de Ravana poderiam querer deixar naquela nova era que começava. A escuridão cedia lugar a um fim de tarde cinzento e chuvoso.
--Eu não entendo... como ele pôde morrer em meu lugar quando eu sempre o desprezei? – perguntava-se Pandora, fitando o rosto de Radamanthys.
Não mais repelia seus sentimentos por ele. Não mais queria vingança contra os homens. Eles não eram de todo maus, somente quando influenciados por seres desprezíveis como Ravana. Estava triste por ter decido dar uma chance ao amor justamente quando a pessoa amada havia partido.
--Daria uma chance a ele se ele voltasse? – perguntou Lune aproximando-se, sentindo a chuva cair sobre ele com alegria.
--Pode fazer ele voltar?
O garoto apenas sorriu e colocou a mão sobre os olhos de Radamanthys. Uma luz azulada brilhou por um instante e ele recuperou a consciência, confuso. Pandora também sorriu. Era um novo começo para ela. O ódio havia se esvaído quase por completo.
--Eu estou no céu? Então os anjos são como minha amada – disse um pouco atordoado.
--Deixe de bobagens! É isso que dá beber demais!
--Eu não estou morto? – perguntou incrédulo. Lune fez que não com a cabeça.
--Levante e ande logo, vamos sair daqui! – disse Pandora, sem perder o costume de brigar com ele.
Ele obedeceu imediatamente, feliz por estar vivo. Não ia discutir ou fazer perguntas tentando entender a situação. Ofereceu-se para acompanhar Pandora até a cidade e ela prontamente aceitou. Achou estranho, mas também não discutiu. Tirou o casaco pesado que usava e estendeu-o sobre a cabeça de sua amada, impedindo que se molhasse mais.
Shaka viu os dois se afastarem colina abaixo. Também ele estava feliz. Feliz e aliviado. Podia ver novamente e tudo estava acabado. Percebeu que Shura ainda chorava com o corpo de Shiryu nos braços. A tristeza dele lhe cortou o coração. Levantou-se lentamente e foi até ele.
--Me ajude – pediu Shura com um sussurro. – Sei que pode me mandar para junto dele... faça isso, por favor...
--Não prefere que ele volte pra você? – perguntou sorrindo docemente. Podia destruir também a morte e fazer com que a vida triunfasse sobre ela. Foi assim que fez Shiryu abrir os olhos e respirar novamente. Era um de seus melhores amigos, desejava-lhe a felicidade e ficava satisfeito em contribuir para ela.
Saga e Kanon, que estiveram abraçados a um canto observando tudo, deram-se as mãos, certos de que o perigo os tinha deixado, e trataram de descer também. Precisavam acalmar os que estavam no Templo e cuidar para que tudo voltasse ao normal. Os meninos, Shura e Shiryu seguiram-nos a certa distância.
No horizonte eles podiam divisar um entardecer cinzento, uma luz fraca substituía aos poucos a pesada escuridão de tantos dias. As gotas de chuva que continuavam a cair pareciam ter se transformado em cristal prateado. Um véu de cristal que se estendia entre eles e um novo começo, pronto para ser retirado e deixar a vida seguir seu curso.
Mime dormia nos braços de Fenrir. A pele clara estava marcada em várias partes. Os arranhões, bem mais fundos desta vez, iam arder por vários dias, mas ele não se importava. Se o mundo acabasse levaria aquelas marcas consigo, como lembrança de toda a felicidade que tivera na terra. Nem o pior dos infernos ia tirar-lhe aquele amor.
Fenrir acariciava as costas do namorado com um carinho que não sabia possuir. Passava levemente os dedos sobre os vergões avermelhados que causara com as unhas, arrancando gemidos quase inaudíveis do outro. Ele acordou assustado com mais uma explosão, a segunda que ouviam. Um barulho estranhamente familiar se fez ouvir no lado de fora.
--O que é isso?
--Chuva – respondeu Fenrir sem parar o que fazia.
--Como assim chuva?
Levantou-se apressado, indo até a janela. Não levou em conta o fato de estar sem qualquer peça de roupa, o que fez surgir um sorriso malicioso nos lábios de Fenrir. Uma luz pálida delineou o corpo de Mime quando ele abriu as cortinas para vislumbrar a água caindo pacificamente do céu. A mais encantadora das visões para o garoto de cabelos azulados que descansava sobre a cama.
--Parece que meu pai vai ter que esperar mais um pouco pelo fim do mundo. Está até mais claro.
Mime sorriu aliviado. Porém, os barulhos que vinham da sala o fizeram preocupar-se novamente. Não podiam ser apanhados naquele estado. Pegou as roupas e começou a se vestir, sendo impedido de continuar. Fenrir o abraçava pelas costas, puxando-o de volta para a cama.
--Chega, Fenrir... temos que arrumar a bagunça que fizemos... Daqui a pouco vão nos procurar e eu não quero encrenca, nem com a fanática da mãe do Lune nem com o seu pai.
--Você arrumou encrenca com o velho quando aceitou ficar comigo. Agora agüenta – riu.
Preocupado em esconder uma marca no pescoço com o colarinho da camisa, Mime também sorriu. Imaginava a briga que comprariam em breve, quando fossem embora para viverem juntos. Depois de tudo aparentemente arrumado, esforçou-se para aparentar ainda estar passando mal e seguiu Fenrir para a porta do quarto. Impossível esconder o sorriso de alívio pela claridade do fim de tarde.
Na sala, Tatsumi olhava incrédulo pelas janelas. As cortinhas tinham sido afastadas e os vidros abertos, deixando passar uma brisa morna e o cheiro de terra molhada. O frio, o medo, a apreensão e a angústia haviam ido embora. Poucas pessoas ali estavam realmente decepcionadas com o adiamento do Juízo Final. Éris e Tatsumi eram os únicos que demonstravam abertamente sua frustração.
Novamente abraços foram trocados. Desta vez em comemoração. A vida continuaria e todos poderiam voltar a seu cotidiano. Alguns, contudo, haviam aprendido lições valiosas e não seriam os mesmos. Estar perto do fim, ou do que se imaginava ser o fim, pode causar um efeito devastador nas pessoas, mas também fazê-las ver que o tempo não é eterno, ele está correndo e é preciso aproveitá-lo enquanto se pode dispor dele.
Tatsumi logo se retirou para a igreja, precisava ver se estava tudo em ordem. Éris o acompanhou, estava exasperada demais para continuar rezando e agradecendo a graça do Juízo Final ter sido adiado. Fenrir foi arrastado com eles. Decidiu que era melhor não discutir para não levantar suspeita. Antes de ir combinara com Mime de se encontrarem no outro dia para acertarem a partida.
Shion saiu do escritório, um tanto desconfortável por ter tantas mulheres em sua casa. Esperava ansioso que os maridos percebessem que a situação estava sob controle e viessem buscá-las. Pensava em Lune, sabia que apesar da vitória ele poderia não estar bem. Donko também não saía de seus pensamentos.
As mulheres foram partindo uma a uma, até restarem apenas Shion e Saori na sala. No lado de fora a chuva continuava a cair torrencialmente, formando poças espalhadas pelo pátio. O céu noturno irradiava uma claridade acinzentada, como sempre acontece quando a lua cheia paira atrás das nuvens de chuva e reflete sua luz nas gotículas de água que estão em seu interior.
Os cascos de um cavalo foram ouvidos se aproximando da casa. Shion sentiu o coração sobressaltado. Poderia ser Lune, ou Donko. Ou alguém trazendo notícias ruins sobre seu filho. As batidas na porta soaram firmes e decididas. Saori ia chamar Meera para abrir, mas Shion foi mais rápido. Atravessou com poucos passos o espaço que separava o sofá da porta.
Abriu apenas uma fresta, para ver do que se tratava. Era segunda opção de seus pensamentos: Donko. Por alguns instantes naquela tarde, instantes sombrios que queria esquecer, teve a impressão de que nunca mais veria aquele rosto que tanto amava. Saiu batendo a porta e deixou que todos os temores se dissipassem naquele abraço.
--Nós vencemos – ouviu Donko sussurrar em seu ouvido para depois receber um beijo no pescoço.
--E os meninos?
Shion permanecia abraçado a Donko. A cabeça confortavelmente apoiada em seu ombro.
--Eles estão bem. Se algo de ruim tivesse acontecido já saberíamos. Não se preocupe, daqui a pouco devem estar aqui.
--Você está bem? O que foi isso? – perguntou voltando o rosto e olhando para Donko. Tinha um corte profundo na face direita e estava um tanto desalinhado.
--Estou. Não foi nada demais. A confusão foi grande na cidade, as pessoas corriam em pânico de um lado para o outro, acabei cortando o rosto em algum lugar.
--Vamos entrar, você precisa cuidar disso.
--Shion... o que eu menos quero agora é entrar na sua casa e dar de cara com a sua mulher... O que pretende fazer agora? – perguntou com um pouco de receio da resposta.
--Não sei – disse deixando o outro ainda mais apreensivo. – Tudo depende de você. Se aceitar meu pedido de casamento, nos casamos assim que eu resolver a situação com a Saori. Se não aceitar, bem, aí não sei o que vou fazer – riu.
--Está me pedindo em casamento? – perguntou pensando ser uma brincadeira.
Difícil imaginar que um dia o homem sério e melancólico que chegara da Inglaterra e relutara tanto em aceitar seus sentimentos o pediria em casamento daquela forma tão doce. Shion não brincaria com um assunto assim. Acreditou ao vê-lo assentir com um movimento da cabeça e tirar do bolso a caixinha com as alianças. Aproximou a mão para tocá-las, precisava sentir que era real.
--Você ainda não respondeu se aceita ou não – disse Shion guardando a caixinha, antes que a mão do amante pudesse pegá-la.
As palavras foram todas embora, deixando apenas a única resposta adequada para aquela situação. Donko estreitou aquele que tanto amava em seus braços e o beijou. Não foi um beijo como os outros que carregavam junto com o amor e a ternura um medo indelével do futuro, do que estava por vir e do que talvez não pudesse ser. Desta vez o medo não estava lá.
Muitos minutos se passaram antes que se separassem e trocassem um olhar cheio de ternura. Donko pousou levemente seus lábios sobre os de Shion outra vez, mas não o beijou. Ao invés disso murmurou um "eu aceito", fazendo o outro sentir cada letra sobre seus lábios. Era o primeiro passo dado em direção ao novo começo.
Nem sempre os começos são fáceis. Este não seria nem um pouco. Iam beijar-se outra vez quando foram obrigados a voltar os rostos para a porta que fora batida com força contra a parede interna da casa. Saori os olha tão lívida de raiva quanto no dia em que entrou no quarto de Lune aos berros, afirmando que Shion era o culpado pela perdição do filho.
O encanto do menino havia sido quebrado. Ela saíra para ver qual era o motivo da demora do marido e presenciara tudo, desde as primeiras palavras. Uma forte dor de cabeça trouxera-lhe as lembranças de volta. Achava ter sido vítima de feitiçaria da pior espécie. Só desta forma para esquecer algo tão abominável como a traição de seu marido e o que vira entre Lune e os dois demônios do antro onde ele costumava se meter.
Sentia tamanho nojo e asco pela cena que acabava de ver que o estômago estava embrulhado. No entanto, no fundo de sua alma uma dúvida começava a nascer. Esperava ver a mais despudorada luxúria e devassidão nos olhos daqueles dois pecadores. Não era assim. Havia outra coisa que em nada lembrava o que sempre ouvira sobre a obra do demônio.
Era uma luz que aquecia tudo ao redor e afastava as sombras. A luz de um sentimento que ela ainda demoraria muito para entender. Shion não mais sentia culpa. Não se considerava um adúltero, Saori nunca fora sua esposa de fato, nunca agira ou se sentira como tal. Segurava a mão de Donko entre a sua, disposto a esquecer tudo. Não havia lugar para o ódio ou a raiva em seu coração.
Ela não sabia como reagir. Era bizarro demais. Queria gritar, chamá-los de pecadores, de depravados, pervertidos, sodomitas, tudo o que eles mereciam por se atreverem a ir contra a lei do Senhor daquela forma. Sua voz não obedecia, bem como seu corpo. Fechou os olhos e caiu de joelhos. Lágrimas desciam emocionadas por sua face.
Donko e Shion olharam-se sem entender quando um sorriso se desenhou nos lábios dela. O rosto, antes contraído e desfigurado pela raiva, estava tranqüilo, na mais perfeita paz. Em seus costumeiros trajes negros, com o corpo delineado pela luz das velas que vinha da sala, sorrindo ternamente, Saori era uma estranha visão para eles.
--Vão para dentro e finjam que nada aconteceu – era Lune. O menino saiu das sombras falando em voz baixa, como se tivesse medo de quebrar o encanto que estava criando.
Acreditava sinceramente que um dia Saori fosse entender. Ela não era má por natureza. Agia por pura ignorância. Fora criada daquela forma e não sabia ser diferente. Ao ver o pai e Donko entrarem em casa e fecharem a porta, Lune aproximou-se dela e tocou-lhe as mãos. Uma forte luz azulada o envolvia, de modo que seu rosto não podia ser claramente reconhecido.
Conversou Saori sob a única forma que ela ouviria e que a faria mudar: a forma de um anjo. Disse-lhe com palavras doces que ela estava errada. Que Deus não condenava o amor, nem o julgava como pecado quando era verdadeiro. Que preconceitos não a levariam à felicidade nem à salvação que tanto almejava. Era preciso amar o próximo como a si mesmo, fosse esse próximo do jeito que fosse. O que importava realmente era amar, amar de todas as formas, mesmo sem ter o amor correspondido.
Só o ato de amar sinceramente trazia consigo a felicidade, a paz e a libertação. Ela devia fazer o bem, praticar a compaixão. Pensar nela mesma, mas pensar nos outros na mesma medida. Tomando cuidado com o que dizia, explicou-lhe os preceitos do Caminho.
Ela escutava com atenção, bebendo cada palavra e guardando-as dentro de si. Fora abençoada. Deus mandara um anjo para lhe falar. A ela, a mais insignificante das criaturas, aquela que acreditava estar colaborando para Sua obra, mas agora via que não podia estar mais errada. Arrependia-se do mal que havia feito. Sentia-se culpada pelo desprezo que tivera por Shion, pela forma cruel com que tratara o filho. A palavra perdão tomava forma em seus lábios.
Está perdoada. Vá e seja feliz. E faça os outros felizes, com amor, compaixão, piedade e fé. Somente assim será libertada.
Lune sabia que não tinha autoridade para perdoar ninguém. Nem achava que Saori precisasse de perdão, pois agira na ignorância, pensara que estava fazendo o que era certo. Porém, ela não sentiria paz se não ouvisse aquelas palavras. Ele a amava, apesar de tudo. Era sua mãe.
A luz desapareceu lentamente e ele correu para o quarto, para se trancar lá dentro antes que ela o descobrisse. Não podia curar todas as dores do mundo, nem eliminar o sofrimento. Ele fazia parte da vida. Mas queria cuidar para que todos os que amava estivessem no caminho da felicidade quando tivesse que partir.
Andavam à quase duas horas na estrada lamacenta quando avistaram as luzes de uma casa. O casaco que os cobria estava pesado pela água que o penetrara. As roupas encharcadas e os pés doloridos da caminhada não ajudavam muito. Radamanthys tropeçou mais uma vez, parecia ter uma atração especial por pedras e galhos no meio do caminho, tanto que conseguia achar absolutamente todos e tropeçar em cada um deles.
Pandora suspirou exasperada. Nem sequer sabia que rumo ia tomar. Com o fim do falso casamento não pretendia voltar à casa de Abel, que estava repleta de lembranças ruins para ela. Voltar a ser monja ou sacerdotisa estava fora de questão. Fora cruelmente machucada por ter uma deusa dentro de si, para servir aos propósitos de um demônio. Queria distância de tudo isso. Kali estava outra vez trancada no fundo de sua alma e de lá não sairia mais, se fosse por sua vontade. Perguntou ao rapaz se sabia de quem era a casa que parecia mais próxima a cada passo.
--Do senhor Donko Desai e sua mãe, são amigos do meu tio – respondeu. Não conseguiu evitar o riso quando pensou no tipo de amizade que havia entre Donko e seu tio. Também ele sabia do romance dos dois. Descobrira por acaso ao chegar em casa e ver Shion se despedindo do indiano de uma maneira nada convencional, com um beijo que, no ver de sua tia ou qualquer outra senhora cristã, seria quase indecente.
--Creio que não é caso para rir, senhor Radamanthys! – indignou-se ela, interpretando mal o motivo do riso. – Estamos encharcados até os ossos, andando sem rumo a um tempo considerável e já são quase onze horas da noite! Uma situação dessas nada tem de engraçado!
--Perdoe-me, minha doce senhora. Não quis rir de nossa lamentável situação. A senhora fica adorável com gotas de chuva a lhe adornarem os cabelos e a face, mas pode pegar um resfriado. Sugiro pedirmos abrigo até que amanheça.
--Que idéia brilhante! – exclamou com certa ironia no tom de voz. Puxou o casaco sobre si e foi andando pesadamente em direção à casa. Radamanthys piscou algumas vezes, aparvalhado, e a seguiu. Sua adorada senhora acabara de lhe fazer um elogio.
Samia, que voltara para casa quando a chuva começara, estranhou os visitantes que lhe bateram à porta. O tapete persa de sua sala foi parcialmente arruinado pela lama e água que escorriam das roupas dos dois. Não importava, daria um jeito mais tarde. Fez com que recebessem roupas secas e pudessem tomar um bom banho antes de ficarem doentes.
Só então tratou de entender o que estava acontecendo. Enquanto jantavam, perguntou a Radamanthys o que fazia ele fora de casa naquele temporal e com uma moça a acompanhá-lo. Ele bem tentou explicar, mas se enrolou com as palavras e deixou que Pandora falasse.
Sentindo que podia confiar em sua anfitriã, Pandora contou a verdade. Parecia ignorar a presença de Radamanthys, ou preferir que soubesse de uma vez quem realmente era ela. Contou de sua vida como sacerdotisa de Kali, da educação que recebera e da forma cruel como fora arrancada de sua vida e da morna felicidade que tinha naquele templo. Contou também como Ravana a enganara, querendo somente que servisse a seus propósitos enquanto lhe era útil.
Para a surpresa de Radamanthys, quando chegou na parte em que ele a havia salvado da morte Pandora sorriu para ele e agradeceu. Confessou que não tinha para onde ir ou a quem recorrer. A dona da casa de pronto lhe ofereceu abrigo. Também ela, quando jovem, fora educada naquele templo, o único de Kali nos arredores de Calcutá que seguia o Hinayana.
Radamanthys não pôde deixar de oferecer sua solidariedade, ao ponto de quase pedir a moça em casamento. Não o fez de fato porque achou que a hora não era apropriada e que deveriam conversar com calma sobre aquele assunto. Precisaria de tempo para escolher as palavras certas e ter uma mínima esperança de não ser rejeitado.
Donko não demorou a chegar, mais ensopado e coberto de lama que Pandora e Radamanthys juntos. Tomou um banho demorado, embevecido com o que Shion dissera. De tudo o que poderia esperar do fim daquela guerra insana em que se viram metidos, um pedido de casamento de Shion era um item que não constava em sua lista. Como ele amava aquele inglês! Não podia estar mais feliz ante a possibilidade de passar a vida ao lado dele.
Samia ficou um pouco apreensiva quando soube, pensou que Saori iria criar o máximo de problemas que conseguisse. Tranqüilizou-se ao saber que Lune havia resolvido a situação com ela. No fim das contas, Saori não era tão má quanto pensara. Não poderia ser, já que tivera a nobre atitude de perceber que estava errada, mesmo precisando de um pequeno empurrão para tanto.
No dia seguinte o sol voltou a brilhar, recuperando as plantas que definhavam com sua ausência e os espíritos abatidos das pessoas. O calor, que antes seria incômodo e modorrento, foi recebido como a melhor das dádivas. Calcutá fervilhava em movimento, como um formigueiro colorido nos mais diversos tons.
A música tocava com mais emoção e as pessoas saíam às ruas pela simples vontade de sentir que estavam vivas, que as ruas ainda estavam ali para elas e que o mundo era o que sempre conheceram, talvez um pouco melhor. O ar morno da estação quente estava outra vez cheio dos perfumes dos incensos e das especiarias. O Ganges corria rápido até alcançar um mar de águas esverdeadas ondeado de quando em quando por uma brisa leve.
Sobre os tempos ruins e turbulentos muito há que se contar, mas os dias felizes e tranqüilos passam de tal maneira que podem ser narrados em poucas linhas. Os acontecimentos sucedem-se naturalmente, quase por magia, as pessoas seguem com suas vidas, momentos tristes se intercalam com momentos alegres. A sensação, porém, é de leveza e bem-estar.
Os dias passaram e os funestos acontecimentos trazidos pela chegada da escuridão foram logo guardados no fundo da alma para, com o passar de muitos anos e o acumular da poeira sobre a caixa da memória, serem esquecidos completamente. Mas as lições aprendidas não poderiam ser apagadas nem pela eternidade.
Em uma tarde anormalmente fresca, um homem chegou à casa de Samia e Donko. Seus pés estavam machucados pela longa caminhada, as roupas quase em farrapos. O rosto cansado já não demonstrava a mesma aparência, mas a jovialidade continuava estampada nos olhos brilhantes. Era William Desai. Impossível descrever o sentimento que tomou sua esposa ao vê-lo subindo as escadas e entrando na sala.
Depois de cinco anos vagando a esmo, sem rumo e sem lembranças, havia finalmente voltado para casa. Muito havia para ser contado. As histórias e novidades poderiam esperar. Tomou um banho e trocou as roupas gastas de andarilho por roupas limpas e novas que estavam a sua espera. Samia sabia que voltaria e estava com tudo pronto para recebê-lo.
Shion ficou um pouco envergonhado. Viera contar a Donko que o divórcio havia saído e poderiam se casar e vira-se no meio do reencontro. Quis ir embora e voltar mais tarde. Foi impedido por Donko e Samia. Já era da família e, em breve, seria oficialmente genro de William, não tinha por que se envergonhar.
A noite caía quando William deu sua história por encerrada, não querendo entrar em maiores detalhes. Estava em casa e queria deixar o passado do lado de fora dos portões. Foi quando Donko começou a contar as novidades, ajudado pela mãe. Shion permanecia quieto, fazendo um comentário ou outro de vez em quando.
Ao perguntar quem ele era, William recebeu uma resposta que nada respondeu e Donko desconversou. Começou a contar sobre o que acontecera na ausência do pai. A parte de Ravana surpreendeu-o, não esperava ter que viver aquela guerra. Também não esperava ser vítima das armações do demônio como havia sido. Donko acabou o que tinha a dizer e ficou em silêncio.
--Diga-me, filho, estou ficando caduco ou você enrolou, enrolou e ainda não me disse quem é este senhor? – perguntou William.
Na verdade tinha uma suspeita nada vaga de quem era, mas não ia perder a oportunidade de se divertir um pouco. Lembrou do sufoco que passou com o pai de Samia. Meses tentando agradar para conseguir permissão para namorá-la, anos de implicância até que ele o aceitasse e parasse de provocar. Ao que parecia, sua vez de implicar havia chegado. Samia riu discretamente, William não havia mudado nada.
--Shion é seu futuro genro – respondeu Donko, sendo direto.
Shion engasgou com o chá que tomava e quase derramou o que sobrara na xícara tentando conter o ataque de tosse. Depois que se acalmou teve que responder a um interrogatório e deixar bem claras suas intenções. William tentava se manter sério, embora morresse de vontade de rir do nervosismo de Shion. Não passava de brincadeira. Havia simpatizado com ele, lembrava a si mesmo quando jovem.
Quando Shion se despediu e foi embora, o casamento estava acertado. Ele e Donko iriam ao Templo na tarde seguinte para conversar com Saga e Kanon e ver se a cerimônia poderia ser realizada no fim de semana. O indiano resolveu mudar-se para Crystal of Stars e deixar que os pais aproveitassem a companhia um do outro, como ele queria aproveitar a companhia de Shion.
Saori não criou nenhum problema. Decidiu partir em uma espécie de peregrinação. Depois da visão que tivera estava encarando as coisas de outra maneira. Queria aprender o que não sabia, queria ser melhor. Pretendia andar pela Índia, conhecendo de perto todos os costumes e tradições que havia repudiado, sentindo de na pele a vida daquelas pessoas e fazendo por elas tudo o que pudesse fazer. Inconscientemente, estava traçando o caminho de sua Iluminação.
Donko e Shion trocaram as alianças no mesmo dia que Saga e Kanon. A cerimônia foi uma das mais belas realizadas no Templo. O casamento dos irmãos foi uma surpresa para todos e um choque para alguns. Kanon cumpriu a promessa de pertencer ao irmão e pôde esquecer em seus braços o dia maldito em que Ravana o violentara.
Shion arrastou Donko para sua casa assim que a cerimônia acabou, não queria atrapalhar Samia e William que tinham muito tempo para recuperar. E queria um tempo com seu marido. O desejo de um filho que fosse deles crescia em seu coração, na mesma proporção em que era impossível de ser realizado, ofuscando um pouco o brilho de seu amor. Não o suficiente para impedir que aproveitasse a nova vida e a companhia constante de seu amado. Muitas vezes pegava-se admirando a aliança com um sorriso bobo nos lábios.
Tatsumi armou um escândalo no dia do casamento e tentou impedir de todas as formas. Era o fim de toda a moral e decência homens se casando, ainda mais irmãos. Podiam ser pagãos declarados, mas ele não ia permitir na cidade de sua Congregação. Desistiu imediatamente quando um moleque de recados veio encontrá-lo para dar uma carta do filho.
A seu modo, Fenrir dera a notícia de que ele e Mime eram amantes e tinham partido juntos na noite anterior. Não era uma fuga, não estavam fazendo nada errado e não tinham do que fugir. Como presente de despedida, ele levara o cofre com as moedas de ouro doadas para a igreja desde que Tatsumi assumira o cargo de ministro daquela Congregação.
Foram para um lugarejo chamado Lumbini (1), nas montanhas do Himalaia, fato que a carta não mencionava. Encontraram em uma casinha simples, com teto de palha e chão de madeira, mobiliada com conforto, a vida que procuravam. As rendas que Tatsumi guardava para reformar a catedral foram bem gastas no sustento dos dois, complementando o que conseguiam como pastores de lhamas. Estavam juntos, amavam um ao outro e isso lhes bastava.
Marin e Aiolia sabiam onde o filho estava e foram visitá-lo diversas vezes. Para eles não importava se Mime vivia com outro homem ou com uma mulher, desde que fosse uma pessoa merecedora de seu amor e capaz de fazê-lo feliz. Fenrir não decepcionou os sogros. Tatsumi e Éris, por outro lado, sentiram tanta vergonha que voltaram para a Inglaterra dizendo que o filho morrera nas mãos de selvagens locais.
Hagen e Freya permaneceram solteiros por algum tempo, cuidando um do outro com o mesmo amor que descobriram no primeiro beijo. Até que um escândalo abalou a família e precisaram escolher entre a moralidade cristã ou partir da cidade e unir suas vidas como a muito desejavam. Decidiram por partir e foram embora carregando sua pequena filha nos braços.
Ártemis e Ikarus ficaram desnorteados. Ela chorava dia e noite, não entendendo por que Deus a castigara daquela maneira tão cruel. A dor só foi atenuada quando soube que estava grávida. Grávida àquela altura da vida! Só podia ser um milagre. O milagre se confirmou quando nasceram gêmeos, um casal. Dos outros dois filhos nunca mais tiveram notícias.
Os dois deixaram a Índia e foram conhecer a Europa da qual não lembravam. Estabeleceram-se na França, em uma casa de campo nos arredores de Paris. As alianças douradas que ambos traziam na mão esquerda denotavam sua escolha. Os irmãos haviam ficado na Índia, dali por diante eram marido e mulher.
Eurídice encontrou o que procurava com a chegada de um navio. O Hope of the West veio da Inglaterra trazendo sua amada professora de piano. Não pensou duas vezes em entrar no navio somente com a roupa do corpo e partir. Os bosques de Oxford tornaram-se seu novo lar e Anna sua eterna companheira. Hilda e Siegfried não conseguiram descobrir o que foi feito da filha, nem insistiram em procurar.
Pandora achou o pedido de casamento de Radamanthys o verdadeiro cúmulo do brega. Nem por isso deixou de aceitar. Começava a achar bonitinho o jeito de falar de seu futuro marido. Só precisaria de um pouco de paciência com ele. Para garantir, como paciência não era seu forte, fez uma lista de exigências que ele teria que cumprir para que se casassem. No topo da lista estava o item "parar de beber e de cheirar a cachaça".
Shura lembrou que tinha uma alma e que ela era gêmea da alma de Shiryu, como o garoto sempre dissera. Shiryu recuperou a visão no momento em que Shaka lhe devolveu a vida. Os dois se casaram naquela noite em que voltaram da clareira, após a luta. Viviam juntos no Templo, desfrutando da felicidade com que sempre sonharam. Todas as noites, antes que Shiryu pegasse no sono em seus braços, Shura repetia em seu ouvido o quanto o amava. Era uma forma de compensar os anos de silêncio e aparente falta de sentimento para com aquele que, mesmo em meio à escuridão e falta de memória, era seu grande amor.
As estrelas cintilavam no céu encobertas por nuvens esparsas, prenúncio da estação chuvosa que chegaria em breve. O calor escaldante da tarde tornara-se uma corrente de ar morno perfumado. Era final de junho e alguns meses haviam passado desde a derrota de Ravana.
Lune caminhava de mãos dadas com Shion na pequena estrada de terra batida que levava ao Templo. Pararam na frente da imponente construção em mármore branco. Shion olhou com carinho para o filho. Estavam se despedindo. Ele decidira tornar-se monge e viver no Templo com Shaka e Mu.
Shion suspirou e abraçou o garoto. Lune era seu maior tesouro, seu único filho. E estava saindo de casa para viver sua vida, como sabia que ia acontecer mais cedo ou mais tarde. Um pensamento passou rápido por sua mente, não pela primeira vez. Se pudesse ter um filho com Donko... Não se atrevia a pedir tal milagre aos deuses. Lune talvez se atrevesse e sabia que se o fizesse os deuses o atenderiam.
--Cuidado com os seus desejos, pai. Eles podem se tornar realidade e depois não há como voltar atrás e desfazê-los – disse quase num sussurro, com um sorriso enigmático nos lábios.
Na hora, Shion não entendeu as palavras nem a razão pela qual foram ditas. De qualquer forma, pensou, não ia querer voltar atrás se este desejo se tornasse realidade. Beijou a testa do filho e despediu-se, não sem um pouco de pesar. A casa ficaria tão vazia sem Lune. Não entendia como Donko conseguira viver todos aqueles anos longe de Shaka, tendo o menino apenas alguns dias por semana com ele.
Conformou-se sabendo que o Templo não era longe e que poderia ver o filho sempre que quisesse. Lune estaria feliz, junto daqueles que amava e que completavam sua alma. Não poderia desejar destino melhor para ele. Assim como não poderia desejar destino melhor para si mesmo.
Donko o esperava em casa, provavelmente sentado na sala, lendo o Ramayana ou alguma das peças de Shakespeare ele mandara vir da Inglaterra. Já não se sentia tão ridículo ao admitir que amava aquele indiano teimoso e insistente mais que qualquer outra coisa. A vida ao lado dele não era um mar de rosas, mas as reconciliações compensavam até a pior briga que pudessem ter. Sorriu, apressando o passo para chegar logo em casa.
O antigo quarto de Shaka precisou ser modificado para que os três meninos pudessem ocupá-lo confortavelmente. Uma enorme cama de dossel com cortinas de musselina laranja e roxa tinha sido colocada com a cabeceira encostada em uma das paredes. Dois criados mudos a ladeavam. O chão de mármore branco era todo coberto por tapetes com desenhos de flores de lótus.
Vasos de flores e pequenas palmeiras enfeitavam o ambiente, junto com almofadas coloridas, cortinas de musselina em tons variados e velas distribuídas para fornecerem uma boa iluminação durante a noite. A cômoda, um banquinho estofado, uma mesa com um jarro e uma bacia de prata cheia de água e um espelho grande com moldura de prata completavam a decoração.
A janela entreaberta fazia tremular as cortinas e as chamas das velas com uma brisa levíssima, que insistia em perfumar o quarto com aromas exóticos de incenso e especiarias. O som de passos e vozes alegres inundou o aposento quando os garotos entraram. Vestiam túnicas curtas de linho branco e tinham os cabelos ainda úmidos do banho recente. Lune sorriu ao ver o resultado do trabalho dos outros dois. O quarto estava lindo.
Shaka jogou-se sobre um monte de almofadas perto da cama, deitando-se de lado, apoiando o cotovelo no chão e descansando a cabeça na mão espalmada. Lune foi sentar-se a seu lado enquanto Mu fechava a porta e juntava-se a eles também. Os três pares de olhos encontravam-se de quando em quando para depois irem parar no tapete, nas almofadas ou em qualquer outro lugar.
O silêncio perdurou por longos minutos. Não sabiam o que dizer, ou se alguma palavra ainda era necessária. Seus corações ainda acostumavam-se a idéia de estarem vivos e bem. Nunca antes os três haviam sobrevivido sem graves ferimentos que os impedissem de continuar na terra. Não sabiam o que era passar da adolescência, tornar-se adulto ou envelhecer. Naquela vida lhes fora dada a chance de descobrirem e era o que iam fazer.
De repente um riso claro e límpido cortou o ar. Shaka ria de olhos fechados, seu rosto havia adquirido a mais angelical das expressões. Lune e Mu levantaram os olhos para ele, sem entender o que era tão engraçado. O riso acabou por contagiá-los também. Foi um daqueles ataques de riso sem motivo algum que as pessoas têm quando estão muito felizes e querem extravasar um pouco da alegria porque seus corações não são suficientemente grandes para contê-la.
--É estranho, não é? – perguntou Shaka quando se acalmaram, limpando as lágrimas dos olhos.
--O quê? – perguntou Mu curioso, acomodando-se no colo de Lune.
--Estarmos aqui, juntos e felizes depois de tudo o que aconteceu. É como se tivesse sido apenas um pesadelo, do qual só agora os deuses nos deixaram acordar para viver de verdade.
--É estranho, mas é muito bom – disse Lune sorrindo. Fez com que Mu deitasse a cabeça em seu peito. Os fios lavanda e os lilases se misturaram, deixando quase imperceptível a diferença que havia entre eles.
--E dessa vez não tem ninguém aqui pra atrapalhar a gente – disse Shaka.
Um sorriso de canto surgiu em seus lábios. Todos os desejos e vontades que ele mantivera sob controle até ali ardiam em seu corpo, em sua mente e em seu coração. Ao perceber o que havia dito e no que estava pensando seu rosto corou tanto que Lune parou de acariciar os cabelos de Mu e perguntou se estava bem.
--Tudo bem – respondeu com a voz rouca. Respirou fundo, tentando se acalmar. Engoliu em seco, encolhendo os joelhos e apertando-os junto ao corpo na tentativa vã de diminuir o que estava sentindo. Apoiou a cabeça nos joelhos dobrados, gemendo baixinho. Mu correu ao lado dele.
--O que foi, Shaka? Está passando mal? – perguntou com a voz carregada de inocência, pegando uma mecha de cabelo louro entre os dedos para afastá-la do rosto de seu amado.
Lune, que não era tão inocente quanto Mu, riu divertido. Na certa Shaka deveria estar mordendo o lábio inferior até que sangrasse como sempre fazia quando estava nervoso ou queria se conter. Será que ele tinha noção do quanto ficava lindo daquele jeito? Foi a vez de Lune suspirar. Ele queria o mesmo que Shaka e sabia que Mu também.
--Shaka... olha pra mim – disse segurando-lhe o queixo e puxando o rosto de Shaka até que seus olhos se encontrassem.
Os olhos do indiano faiscavam com um brilho azulado que Lune não soube distinguir entre desejo, amor e ternura. Eram os três sentimentos fundidos na mesma luz. Não se enganara, o lábio inferior estava cortado e sangrava. Como no primeiro encontro que tiveram, Mu se aproximou e pousou os lábios sobre os de Shaka, tomando para si o sangue que deles saía. Shaka encolheu mais os joelhos contra o corpo, deixando outro gemido escapar por entre o beijo.
--O que você está querendo esconder de nós, Shaka? – perguntou Lune, dando beijos leves na bochecha de Shaka. – Acha que não sentimos o mesmo?
Os beijos desciam para o pescoço do loirinho e passaram a pequenas mordidas no lóbulo da orelha. Mu o beijava nos lábios. Shaka foi relaxando aos poucos. Seu corpo parecia queimar e as chamas se espalhavam sobre os outros dois. Eles desfaziam os laços da túnica de Shaka com uma lentidão torturante e beijavam cada centímetro de pele que ficava exposto.
De joelhos, permitiu que a roupa deslizasse por sobre seus ombros e fosse jogada a um canto. Logo outras duas túnicas jaziam no chão junto com a primeira. Mu estremeceu ao sentir os lábios de Lune sobre as duas pintinhas que tinha na testa. Shaka afastou os fios lavanda e pôs-se a beijar o pescoço do inglês, abraçando-o por trás.
As chamas das velas pareciam abalar-se a cada suspiro soltado pelos garotos. A intensidade dos beijos e carícias aumentou, até refletir todos os desejos guardados por tanto tempo. Mu abraçou Lune enquanto beijavam os lábios um do outro e o garoto deitava sobre ele, levando Shaka consigo.
Lune sentiu as unhas e Mu enterrarem-se com força em seus ombros e viu duas lágrimas descerem pelos olhos verdes, um sorriso brincava em seus lábios. Movia-se com cuidado para não machucar aquele anjo, cada vez mais envolvido pelo corpo do amado. Shaka recolheu com beijos o sangue que descia pelos arranhões nas costas do inglês, beijando também a ponta dos dedos de Mu.
Entrou de uma só vez no corpo de Lune, arrancando-lhe um grito rouco que nada tinha de dor ou sofrimento. Fios louros, lavanda e lilases misturavam-se enquanto os três moviam-se na mesma velocidade e palavras e murmúrios desconexos ecoavam no ar.
A única alma que Brahma dividira em três partes era uma só novamente. O êxtase que atingiram ao mesmo tempo era muito maior que qualquer sensação que a Iluminação ou o Nirvana poderiam proporcionar. Caíram exaustos nos braços um do outro, as faces enlevadas em puro contentamento.
O sono veio encontrá-los abraçados e completamente felizes. O último pensamento de Lune antes de adormecer foi um pedido aos deuses em nome de seu pai e de Donko. Uma estrela cadente riscou o céu em direção a Crystal of Stars. O céu começou a clarear lentamente, uma linha de fogo no horizonte indicando que Shiva estava destruindo o mal para que Brahma pudesse criar um novo mundo.
Nada é impossível quando se acredita sinceramente e de todo o coração. Pequenos milagres acontecem todos os dias, só precisamos prestar um pouco mais de atenção e poderemos vê-los. Naquela manhã um grande milagre aconteceu e nem Shion nem Donko precisaram se esforçar demais para percebê-lo.
Uma linda menina recém-nascida que, coincidentemente, tinha os olhos verdes como os de Donko e os cabelos louros com pequenos cachinhos, como os de Shion foi encontrada na porta de Crystal of Stars. Os olhos de Shion encheram-se de lágrimas quando segurou a pequena nos braços pela primeira vez.
Os deuses lhe haviam dado a mais impossível das dádivas, a que achou que nunca receberia: uma filha dele e de Donko. Ela recebeu o nome de Lakshmi, nas crenças indianas este é o nome da parte feminina de Vishnu, a personificação da graça divina, da beleza e do amor. De fato, encheu a vida de seus dois pais de amor e beleza e completou a felicidade dos dois.
A vida só não era pura felicidade porque se assim fosse não teria valor algum. A dor, as brigas e desentendimentos existem para que se saiba apreciar o que há de bom. Alegria e tristeza, dor e conforto, brigas e reconciliações. Assim mantinha-se o Equilíbrio que deve reinar sobre o mundo.
Epílogo
Cada um dos personagens desta história seguiu seu caminho, buscando a seu modo o que todos anseiam. Aqueles pequenos momentos em que nada mais importa além do próprio momento, que se completa por si próprio. Quando se está onde se quer estar e com quem se quer estar e esta certeza é compartilhada pela outra pessoa. Quando o infinito cabe na palma da mão e o mundo pode ser visto num grão de areia e o céu numa flor selvagem. E a eternidade personifica-se em uma única hora (2). São os momentos que se podem chamar felizes.
Muitos e muitos anos depois, a Índia estava completamente em poder dos ingleses, tornando-se apenas mais uma colônia do Reino Unido a ser explorada. Em 1857 os indianos se rebelaram contra a Companhia das Índias Orientais, estiveram muito próximos da vitória, mas fracassaram.
A Companhia foi retirada do poder e suas terras passaram ao Parlamento britânico sob a denominação de Índia Inglesa. O domínio britânico continuou até 15 de agosto de 1947, quando a independência finalmente foi conseguida. O povo nunca deixou de lutar por sua liberdade como também não deixou morrerem suas tradições.
Apesar dos conflitos que ainda existem, a Índia é um país fascinante e seus mistérios, sua magia e suas crenças continuam firmes, convivendo lado a lado com os últimos avanços da civilização e da ciência como prova de que nada pode destruir o espírito e a essência de um povo.
Por volta de 1858 a situação tornou-se insustentável no Templo. Algo precisava ser feito antes que a Tradição do Hinayana fosse extinta pela violência e intolerância dos colonizadores. Com a ajuda da Trindade e de um encantamento poderoso os Templos Gêmeos foram retirados dos círculos do mundo e afundaram em uma névoa prateada.
Conta a lenda que essa névoa pode ser vista todas as manhãs sobre o Ganges e é mais densa na parte das margens que era ocupada pelos dois prédios de mármore. Os Templos Gêmeos ainda podem ser encontrados por aqueles que procuram a Verdade e estão prontos a aceitá-la sem preconceitos. De seu lugar entre as brumas, os monges do Hinayana continuam a zelar pelo Dharma e pelo bem da humanidade.
E esperam pacientemente pelo retorno de Ravana e dos Três que deverão combatê-lo e impedir que espalhe as trevas e as imponha sobre a luz, rompendo o Equilíbrio. Até lá, pode-se dizer que todos viveram felizes para sempre.
Fim.
Como a lua ama a noite / Como o vento ama o fogo / Como a chuva enche todo o oceano / E o sol, a terra / Seu coração irá amar meu coração / Pegue meu coração / Pegue meu coração / Ame-o com seu coração / E meu coração não pode ser amado sem você / Com seu coração / ame meu coração...
Tradução de Kindle My Heart
Notas:
1- Lumbini é o nome do jardim onde o Buddha Shakyamuni nasceu. Não ficava no Himalaia, mas entre as cidades de Kapitavantthu e Devadaha.
2- Para ver um mundo num grão de areia / E um céu numa flor selvagem / Segurar o Infinito na palma de suas mãos / E em uma hora a Eternidade. Poema escrito por William Blake.
A música Kindle My Heart é tema do filme "A Princesinha", foi por causa desse filme e dessa música que a idéia surgiu e a fic começou. Recomendo para quem quiser baixar!
Nhaaaaaaaa! Nem acredito que consegui terminar minha primeira longfic! Feliz da vida!
Obrigada a Litha-chan (não consegui resistir, tive que estrebuchar o Kanoninho XD Sou uma menina muito, muito má XD Mas tive peninha do Donko e do Shion e deixei eles serem felizes sem mais tormentos, até livrei eles da Xatori hehehehe. Shura e Julian se livraram da mala do Ravana. E os anjinhos... ninguém mandou a Eurídice ficar na porta olhando XD Esteja a vontade para espancar o Ravana, ou que o sobrou dele XD), Aniannka (acertou de novo! Mu usou os poderes dele pra tirar o Lune do quarto e Shura também era um deus, mais uma vítima do desgraçado do Ravana. Espero que você goste desse último cap!), Deni Chan (valeu pela review! Fico feliz que esteja gostando da fic!) , Ia-Chan (Shaka, Lune e Mu deixaram de vez de ser inocentes agora XD Espero que tenha gostado do lemon XD Saga vai consolar o Kanon sim e muito ainda hehehehe) pelas reviews e a Yumi Sumeragui por todo o apoio, pelos palpites, por me aturar falando por horas sem parar a respeito da fic e por ter me feito terminar a história! Agradeço a todos os leitores tímidos e silenciosos que não deixaram review, mas acompanharam a história. Ainda é tempo de deixar uma review e dizer se ela agradou, se está ruim e onde eu posso melhorar. Façam uma escritora ainda mais feliz do que já está por ter terminado a fic e deixem um comentário, please!
Beijinhos e obrigada a todos os que leram e deixaram review! Adoro todos vocês!
