O som da chuva no telhado e o cheiro de terra molhada eram deliciosamente devorados pelo rapaz de olhos azuis que acordava. A sua primeira atitude foi coçar os olhos, mas sentiu que uma de suas mãos estava presa. Olhou ao seu redor e lembrou-se de onde estava. Sentou-se, assustado.
– Finalmente acordou.
– Essa voz... Miro?
– Eu mesmo, Kamus.
Tudo não passara de um grande mal-entendido. Ao invés de dar-lhe uma injeção fatal, Capricórnio havia aplicado uma espécie de calmante. Kamus não entendera por que ele havia tomado essa decisão. Será que queriam torturá-lo ainda mais? Teriam outros motivos para mantê-lo vivo e como Miro sabia o seu nome?
– Mas como... Como sabe o meu nome?
– Você disse. O Paul nunca lhe contou que é sonâmbulo?
Havia esquecido desse detalhe. Quando criança, tinha o hábito de andar pela casa, falar enquanto dormia, o que causava grandes preocupações ao mais velho. Passou por tratamentos psicológicos, mas nunca adiantava. Ironicamente, no momento em que seu quarto passou a ser ao lado da escada que dividia os dois pisos da casa, Kamus nunca mais saiu da cama. Infelizmente ainda falava e contava todos os seus segredos durante o sono, mas não sabia disso e talvez nem seu irmão. Respondeu de forma cansada:
– Não... Quer dizer, eu achei que tivesse me curado.
Curar-se do sonambulismo? Na opinião de Miro, isso era algo impossível. Talvez o rapaz à sua frente fosse mais inocente do que ele imaginava, talvez fosse mais puro que uma criança e estivesse sendo induzido a fazer aquilo por acreditar nas palavras dos bandidos, por não saber reconhecer a mentira nos olhos de seu interlocutor. O grego olhou o corpo escultural do francês, demorando-se nas marcas roxas que Saga havia deixado. Era um pecado! Respirou fundo e perguntou ternamente:
– Entendo. Como se sente?
Sua mente ansiava por pedir ajuda, reclamar da dor, da tristeza e do destino, mas tinha que ser forte. Tinha que ser impassível. Não poderia ganhar a confiança e nem a amizade do outro, mas sabia que ele seria insistente, por isso resolver responder com frases curtas a qualquer pergunta do grego.
– Melhor.
– Desculpe pela brincadeira estúpida de ontem à noite. Eu nunca imaginei que você pudesse ter aquela reação.
– Esquece! Já passou...
– Eu achei que você fosse morrer.
– Eu também.
Miro entendera as respostas curtas, ausentes de qualquer sentimento. Aquarius provavelmente estava evitando formar uma amizade, pois já entendera que estavam condenados à morte. Ainda tinha o motivo que o fizera participar daquele crime: uma chantagem suja, covarde que ameaçava arrancar-lhe a vida, a existência e o seu amor próprio. Sentia pena e vontade de ajudá-lo.
– Você está aqui por causa do seu irmão, não é mesmo?
Kamus lembrou-se de Paul, sentiu necessidade de desabafar e não conseguiu controlar-se. Tinha orgulho do mais velho e gostava de citar todas as qualidades e proezas deste. Sorriu vagamente com as lembranças de seu passado e tentou resumir ao máximo tudo o que sentia, tudo o que lembrava.
– Oui. Ele é muito importante pra mim. Me deu todo o carinho que podia e conseguiu fazer papel de pai, mãe e irmão mais velho quando tinha só 18 anos. Meus pais tinham morrido...
Miro imaginava que, se Paul era o irmão mais velho, Aquarius deveria ser adolescente quando ficou órfão. Uma fase muito difícil. Talvez nem fizesse muito tempo, o que fazia com que sentisse muita tristeza e falta dos entes falecidos. Usando o mesmo tom de quem daria os pêsames, o grego proferiu:
– Deve ter sido horrível!
– Eu não lembro direito. Na época tinha apenas 6 anos e era um pouco mimado.
O escorpiano não pôde evitar o susto pelo que acabara de descobrir. Isso significava que a diferença de idade entre os irmãos era de 12 anos! Aquarius certamente era um filho temporão, talvez nem tivesse sido planejado ou então era o fruto de um novo casamento de um de seus pais. Por achar a primeira opção menos indelicada, resolveu arriscar e perguntar:
– Você foi um filho temporão?
– Exato! O Paul já tinha 12 anos quando nasci e apesar de ter perdido o posto de filho único, sempre me bajulava, como se eu fosse um brinquedo, um boneco.
Miro gargalha. A expressão que o outro fazia lembrava a de uma criança birrenta, inconformada por receber uma negativa. Lembrou-se de que sua situação não era diferente e comentou, alegremente.
– Sei como é isso. Meu pai é filho único, assim como eu. Imagine como meus avós paternos me tratavam...
Kamus responde ao comentário com um sorriso. Não sabia o que era ter um pai, uma mãe ou mesmo avós, mas não podia negar que o grego era simpático! Um leve movimento o fez lembrar de que não estavam num acampamento e não podiam ter qualquer laço, pois estavam em lados opostos. Se ele sobrevivesse, seria o culpado pelo seqüestro e iria direto à cadeia.
– Você deveria sorrir mais vezes... – Miro comentou de forma sedutora.
Sorrir? Kamus não podia sorrir. Estava condenado, sua dignidade se esvaía pelas suas mãos. Sentiu vontade de chorar, mas o barulho na porta evitou qualquer demonstração de sentimentos. O encapuzado aproximou-se dos dois sem dizer uma única palavra, abriu a algema que estava no pulso do aquariano, juntou as mãos do escorpiano na frente do corpo e fechou-a no pulso livre.
– Este é o primeiro e último aviso: Gemini 1 exige que essas conversas terminem. Caso contrário, Máscara da Morte virá garantir que Kam... digo, Aquarius fique mudo.
O francês já havia sido vítima do famoso Máscara da Morte, um assassino cruel nascido e criado na Itália, mais especificamente na ilha de Sicília. Pertencia a uma longa linhagem de perigosos mafiosos e aprendera a ter prazer em praticar crimes de tortura, principalmente se este levasse ao falecimento da vítima.
Kamus engoliu em seco ao imaginar o como poderia ser calado: teria a língua cortada ou, quem sabe a garganta? De qualquer forma, sangraria até a morte e não poderia deixar, pois sentia necessidade de viver. Paul já perdera demais e não merecia essa nova dor.
– Entendido, Capricórnio. – Kamus respondeu encarando os olhos do refém como se pedisse ajuda.
– Posso saber o motivo dessa palhaçada? – Perguntava Miro.
– Você é o refém e Aquarius deve vigiá-lo. Além do mais, acordaram a casa toda!
– Ah, qual é? Eu não tenho nada pra fazer e não consigo ficar parado.
– Você não está numa colônia de férias, então cala essa boca! Ao menor ruído eu volto e tenho certeza de que será algo inesquecível... pros dois!
Miro e Kamus ficaram cabisbaixos após a ameaça. Capricórnio sorriu ao francês com desprezo, o analisou dos pés à cabeça e ordenou:
– Vá comer! Eu fico com o refém.
Kamus respondeu com um aceno de cabeça positivo, levantou-se e saiu. Miro recostou-se na parede, intimidado pela grosseria do seu atual algoz. Capricórnio andou até a porta, trancou-a por dentro, deixou a chave e discretamente mudou o ângulo da câmera, evitando que sua conversa fosse filmada.
O refém encolheu-se ainda mais, o medo tomando conta de seu corpo, o coração acelerado e o suor frio denunciavam seu nervosismo. Não tinha como fugir, não poderia se defender e muito menos pedir ajuda. Foi com a visão turva pelas lágrimas que viu a aproximação do outro.
Capricórnio tirou algo de um bolso interno da jaqueta e mostrou ao grego, que não resistiu ao impacto e perdeu a consciência. O bandido suspirou resignado. O rapaz era muito fraco! Não poderia fazer nada contra o refém e ainda teria de arrumar a câmera para que ninguém desconfiasse. Guardou o misterioso objeto em seu devido lugar, reposicionou a câmera e abriu a porta, aguardando a volta do aquariano.
Cinco longos dias haviam se passado e ainda não haviam firmado um acordo com a família de Miro. Kamus estava cada vez mais frio graças às ameaças e à lavagem cerebral do geminiano e havia sido afastado da guarda da vítima desde o momento em que Capricórnio o mandou tomar café. Estava perdendo a fome, a razão, a vontade de viver! Gemini 2 se aproximou no intuito de conversar e tentar conhecer um pouco melhor aquele rapaz. Talvez pudesse até convencê-lo a ser tão cruel quanto a maioria deles.
– Você está definhando...
– Quero voltar pra casa, salvar o meu irmão! Já consegui pegar o rapaz... Não precisam mais de nós.
Kamus tinha certa razão, mas não sabiam que a quadrilha precisaria de um bode espiatório se algo desse errado. O francês seria acusado pelo crime, livrando a ficha de muitos dos que ali estavam. Talvez nem todos se salvassem, mas a maior parte da culpa recairia sobre os ombros daquele rapaz, que nunca contaria mais que o necessário por causa do medo de perder seu irmão. De qualquer forma, não podia facilitar, tinha que convencê-lo a ficar, mesmo que fosse preciso continuar com as chantagens.
– Vai chorar agora, vai? Se quiser, colocamos o seu irmão em seu lugar.
– Não senhor. Não será preciso...
Gemini 2 sorriu internamente. O jovem seria facilmente manipulável se soubesse falar. Tinha que trazê-lo para seu lado, era imprescindível ser convincente para transformá-lo num demônio sem alma como o restante de sua equipe. Um rapaz bonito, levemente andrógino e tão bem educado poderia se tornar um trunfo e ajudar no crescimento da quadrilha. Seriam ricos, teriam tudo o que a sociedade lhes negou. Não tinha pena, mas também não chegava a ser impassível. Seu olhar maníaco revelava o monstro que havia dentro de si. Sorriu.
– Ótimo! – Era-lhe delicioso ver o pavor transbordar dos olhos do outro. Com um ritmo lento, digno de uma cobra venenosa, aproximou-se de seus ouvidos como se fosse uma amante cheia de desejos e despejou as seguintes palavras. – Não sei como você consegue se importar tanto com alguém que nem pertence à sua família. Pela sua história, você devia sentir raiva da sociedade, culpar Deus e o mundo por ter tirados seus pais de você, por ter arruinado a vida do seu irmão. Por que se importa com o Miro?
Kamus era católico e respeitava as leis da Igreja, por isso sentiu-se ofendido por tal pergunta. Afinal, um dos mandamentos ordena não matar e há outro onde prega que deve-se respeitar ao próximo como a si mesmo. Sua mente já o alertara para o fato de que aquele crime fazia com que desrespeitassem o grego, mas a desculpa de que fazia isso pelo bem se seu irmão parecia ser convincente. Assim como Paul sacrificou-se por ele, faria o mesmo pelo irmão. Não! Não era pena ou gratidão. Era amor.
Seus pensamentos estavam confusos. Se era capaz de ir até o inferno para garantir que Paul tivesse paz e felicidade por que se importava tanto com aquele rapaz? Sua consciência parecia ser mais forte que a sua razão. Era verdade que o destino havia sido muito cruel com ele, mas não poderia punir inocentes por causa disso. Miro tinha uma família, pais que possivelmente o amava e viriam a sofrer com a sua morte.
– Penso na família dele...
A resposta não poderia ser melhor. De todos os motivos que o francês poderia apresentar, usou o que lhe causava mais dor: a tristeza pela falta da família. Gemini 2 sabia que se quisesse chegar ao francês, incitá-lo a mudar de opinião, bastava tocar neste assunto. Agora tinha Kamus em suas mãos! Era só cutucar no vespeiro e logo conseguiria concluir o seu objetivo. Deu alguns passos para trás como se fosse tratar de algum assunto sem muita importância, sentia-se um investigador fazendo entrevistas para descobrir um criminoso.
– E alguém já pensou na sua? Quantas pessoas estenderam a mão quando a desgraça bateu na sua porta?
Kamus emudeceu ao ouvir tal pergunta. Ficou cabisbaixo e controlou-se para não chorar. Ninguém nunca havia lhe estendido mão. Não lembrava de uma viva alma que tivesse se oferecido para ajudar a família. Havia tido uma confusão logo após a tragédia, mas em alguns meses a casa estava vazia e eram só ele e Paul.
– Nenhuma.
– E ainda quer ter compaixão por essa sociedade vil e egoísta? – Perguntou olhando-o nos olhos. Havia dado o bote e seria questão de tempo até que o seu veneno fizesse efeito.
Kamus suspirou fundo e baixou a cabeça em sinal de derrota. Sentiu que precisava refletir, pensar naquelas palavras. Nunca tinha pensado dessa forma, mas sabia que o outro tinha razão. O destino havia sido traiçoeiro e lhe tirou tudo, sem lhe dar o direito de escolha ou uma pessoa para ajudar no período mais difícil de sua vida. Ninguém teve a boa vontade de guiar os caminhos de Paul por isso ele teve de desistir de seus sonhos.
– Isso! Reflita sobre tudo o que acabamos de conversar. – Gemini 2 disse serenamente, como um conselho. Não poderia obrigá-lo a nada e tinha que induzi-lo a encontrar sozinho toda a ira que o seu coração guardava. Precisava de um aliado e não de um criminoso sem coração como Máscara da Morte, que certamente seria capaz de matar a própria família a sangue frio sem arrepender-se depois. Por isso tinha que ter muito cuidado ao regar aquela semente nefasta que crescia dentro do francês.
Alheio aos planos do outro, Kamus tentava afastar os pensamentos negativos que invadia-lhe a alma. Precisava de algum sinal, algum dado concreto que direcionasse a direção que deveria seguir. Não agüentava aquela pressão e se perguntava se teria um fim. Resolveu expor a sua dúvida num tom respeitoso.
– Há uma previsão para o fim do seqüestro?
"Não haverá um fim e nem mesmo uma negociação..", pensou o bandido. Não poderia revelar as verdadeiras intenções de Gemini 1. Afinal, Saga era seu irmão gêmeo e estava fazendo aquilo por ele. No entanto, se dissesse seus planos, o rapaz poderia fugir e entregar-lhes à polícia, mesmo sabendo que isso iria custar a sua vida. Afinal, se eles faziam isso com Miro por que não fariam com Paul? Kanon tinha que continuar interpretando se quisesse ter aquele rapaz ao seu lado.
– Não. Entramos num impasse, mas o meu irmão já iniciou a segunda fase. Na pior das hipóteses, invadiremos a casa dos pais de Miro em 7 dias e levaremos o corpo dele junto.
Kamus estremeceu ao ouvir a última frase. Então eles iriam matar aquele jovem? Sentiu um frio percorrer a espinha, o ar faltar-lhe aos pulmões e as lágrimas encherem seus olhos. Não agüentou o aperto no peito e, em tom de desespero, perguntou:
– E meu irmão? Como fica?
Se Kamus soubesse que Paul já estava na França, longe do alcance da quadrilha e provavelmente protegido por uma equipe de investigação do serviço de Inteligência Francesa, não faria essa pergunta. Como já estava a um passo de conquistar o ódio daquele rapaz, agora precisava tê-lo em suas mãos. Tinha que posar de bom moço, mas ao mesmo tempo não deixaria de amedrontá-lo e ameaçar a pessoa que ele mais amava.
– Prometo que ele será liberado neste mesmo dia, mas o estado de saúde dele vai depender do comportamento que você tiver nesses próximos dias. Convenci Gemini 1 e Capricórnio a lhe dar uma nova chance. Entenda: Miro já está morto, mas você ainda tem uma chance de deixar o seu irmão ileso. Deixe esses pensamentos hipócritas de lado e agarre-se a esta oportunidade, que obviamente é a última.
O geminiano tinha razão. Essa era uma chance de ouro e não poderia perder por causa de um desconhecido. Salvaria a si mesmo, o seu irmão e viveria em paz. No entanto, algo martelava em sua cabeça alertando para que não acreditasse no bandido. Como não conseguiria vencer, preferiu se juntar a ele. Se conquistasse a confiança daquele homem, estaria a um passo de sua liberdade.
– O que devo fazer?
– Ajude-nos a enganar a polícia e trate Miro como um objeto de alto valor. Não pode perdê-lo agora, mas se algo acontecer, não se culpe! Se for preciso, pegamos outro.
Kamus encarou o chão, voltou-se aos olhos azuis do geminiano e pela primeira vez percebeu algo estranho. Seu sexto sentido o alertava que o bandido tentava enganar-lhe e que muita desgraça poderia acontecer através daquelas mãos. Sabia que o seu destino já havia sido traçado e que se a quadrilha quisesse, estragaria a sua vida e por isso tinha que fingir, mostrar que estava no mesmo lado e pertencia ao mesmo time.
– Se você prometer que irá manter o meu irmão em segurança serei capaz de tudo. – Fez uma pausa estratégica. – Bom, não vou mentir que será um pouco difícil matar a sangue frio e que essa possibilidade ainda me assusta um pouco, mas tenho 7 dias para me acostumar à idéia...
– Não será difícil! Assim que matar o primeiro, matará o segundo e depois matará tantos outros que nem se dará conta. Pense que se transformou numa espécie de vampiro que vive às custas do sangue alheio. A sua vantagem é não possuir os pontos fracos deles.
– É estranho ouvi-lo falar assim, pois sempre fui viciado em história de vampiros.
– Isso é um sim?
– Sim senhor. Estarei à sua disposição.
– Seja bem-vindo ao time! – Fala estendendo a mão.
Kamus aperta com um esboço de sorriso no rosto e pede:
– Só tenho uma condição.
– Condição?
– Eu não quero mais dormir algemado ao Miro. Ou escolhem outro ou deixam a chave comigo.
– Decidimos fazer revezamento. Não posso garantir-lhe nada. – Deu dois passos e corrigiu-se. – Quer dizer, posso garantir que não ficará preso ao refém. Sempre achei essa idéia sem nexo.
– Obrigado. – Agradeceu com frieza na voz e antes que o geminiano tocasse na maçaneta da porta, perguntou cabisbaixo. – Devo estar preparado para continuar apanhando, não é mesmo?
Na mesma hora, Kanon virou-se, fingindo compaixão e novamente aproximou-se do francês. Assim como os outros, já havia batido e usado de violência psicológica com ele, mas agora tinha de demonstrar arrependimento e cortesia. Não se prontificou a tocar no rapaz, mas usou seu rom mais carinhoso para falar:
– Quanto a isso, não se preocupe. Controlarei o meu irmão e os demais.
– Obrigado! – Agradeceu novamente, desta vez num tom gentil. – Seja o que Deus quiser então.
Kamus fez um gesto respeitoso como se pedisse autorização para sair. Ao vê-la concedida, decide andar pela casa, à procura de algo para fazer ou alguma ordem. Precisava pensar sobre tudo o que estava acontecendo e o que havia visto ou escutado.
Kamus adentrou o pequeno banheiro e viu o grego encolhido no colchonete. Os cabelos estavam emaranhados e feios. Suas roupas e o seu corpo estavam sujos. Suava frio devido a uma pequena febre que havia adquirido. Estava pálido, a barba havia crescido e o corpo definhado. Não era nem sombra do homem que havia entrado ali há 5 dias atrás. Comparou-o com um mendigo qualquer e aproximou-se sem o menor sentimento de culpa ou pena. Havia se transformado!
– Saudades de mim, Miro?
– Kam... Digo, Aquarius? – Perguntou alegremente e virou-se na direção de seu algoz. Prosseguiu no mesmo tom – Pensei que nunca mais fosse vê-lo novamente...
– Acho melhor colocar os pingos nos i's. Eu sou o bandido que vai te matar e você tem que me tratar como seu feitor, seu algoz e não como um amigo.
– M-mas...
– Esqueça a primeira impressão que teve de mim. – Exigiu em voz alta, mas completou baixinho, no ouvido do grego. – Eu decidi ajudá-lo. Eles já mataram o meu irmão ou estão a um passo disso, mas você ainda tem uma chance e temos apenas 6 dias para elaborar algum plano.
O grego assustou-se com o comentário.
– Isso! Tenha muito medo de mim... – Falava de forma sarcástica, como se divertisse com as emoções do outro. A conversa com Gemini 2 o fizera perder as esperanças de rever Paul, mas havia fortalecido a idéia de que deveria proteger aquele rapaz. Daria a vida para que nem ele e nem a sua família viessem a sofrer.
Miro entendeu a situação e o recado. Agora teria que usar todo o seu talento artístico para entrar no jogo e lutar pela vida. Não foi difícil juntar lágrimas em seus olhos e chorar pela fatalidade que se aproximava, o medo pelo demônio que havia entrado e invadido o corpo do antigo amigo. Permaneceu cabisbaixo, esperando pela próxima reação do aquariano.
– Engoliu a língua ou será que desaprendeu a falar? – Kamus perguntava com a voz alterada. – Se não entende o meu grego posso falar em outro idioma. Quem sabe o francês? – De forma teatral e um pouco irônica, bateu na própria testa, como se estivesse se esquecido de um detalhe muito importante. – Esqueci que você não entende a minha língua... Diga-me! O que tenho que fazer para que você me entenda?
Ao olhar nos olhos do francês Miro entendeu aonde o outro queria chegar. Não poderiam conversar normalmente em grego ou francês, por isso ele teria que escolher uma outra forma de comunicação. Lembrou-se de Capricórnio e do que o outro o havia lhe mostrado, mas decidiu não comentar a respeito. Com um evidente cansaço na voz, falou:
– Por que não fala em espanhol? – Perguntou dando uma pequena pausa ao olhar a sobrancelha erguida do outro e completou. – Capricórnio vai adorar ouvir as suas torturas...
– Está louco? – Kamus perguntou num soam tão inaudível que por um momento pensou ter de repetir.
– Confie em mim! – Miro respondeu num muxoxo, como se estivesse reclamando de algo.
Kamus não perguntou o motivo e nem perguntaria. Sabia que o espanhol havia ficado muito tempo ao lado de Miro e que o refém certamente sabia de alguma coisa, senão iria recusar-se a utilizar aquela língua. Sorriu de forma desafiadora, pôs-se de pé, ficou de costas a ele e andou alguns passos, como se estivesse refletindo sobre o assunto. Voltou-se ao grego e falou em espanhol, em voz alta:
– Se é assim que quer, assim será!
Miro suspirou e respondeu na mesma língua.
– Ótimo! Eu falo espanhol... um pouco.
– Agora diga... A respeito da sua casa: como é o sistema de segurança? Há alarmes, cães de guarda, alguma coisa que dificulte o acesso à mansão?
– Ahn... Repete a pergunta? Mais... lento.
Kamus fingiu indignação e o encarou como um ignorante qualquer. Odiava ter de repetir qualquer coisa, mas sabia que neste momento isso era um ponto a seu favor. Se ele convencesse aos demais que havia mudado, poderia destruir a quadrilha com maior facilidade. O francês repetiu a pergunta de forma mais lenta, evitando palavras complexas ou que estivesse fora do vocabulário espanhol popular para que o grego lhe entendesse. Sentia medo ao ouvir as respostas do refém, pois sabia que Capricórnio entenderia a conversa se resolvesse tentar uma leitura labial através das imagens.
Miro sentia-se muito à vontade de falar naquela língua, mesmo não sabendo muito. Sabia que Kamus tinha razão e que Capricórnio poderia descobrir o plano, por isso começou a contar tudo com a maior riqueza de detalhes possível, misturando propositadamente o espanhol ao grego e ao francês. Assim resolveriam dois problemas: a dificuldade de vocabulário que o escorpiano tinha quanto ao espanhol e as imagens que a câmera transmitiam aos bandidos. Se eles não soubessem em que língua estavam falando, não poderia designar ninguém para interpretar. Seria tarde demais quando descobrissem!
– Eu não entendo... – Kamus comentava em espanhol.
– O que? – Miro perguntou em grego.
– Por que você mistura as línguas...
Miro sorriu e explicou seu plano e o seu raciocínio ao outro, que adorou a idéia e resolveu fazer o mesmo. Quanto menos os bandidos lhes entendessem, maiores seriam as suas chances de fuga. A esperança crescia cada vez mais e germinava na alma e no coração dos dois, que já acreditavam num futuro digno fora dali.
Uma coisa feria Kamus quase fatalmente: saber que estaria completamente só. Paul era o único parente vivo que conhecia, a pessoa que mais amava e agora estava morto. Graças a um erro seu não teria quem abraçar, estender-lhe a mão e apoiar. Estava condenado a uma vida triste e solitária e o pior: era o culpado por tal situação. Rezava para que o irmão fosse em paz e pudesse ter uma pós-vida repleta de felicidade, já que vivera de forma tão amarga.
Conforme o tempo passava, o teatro ganhava vida, Kamus adquiria respeito e Miro um pouco mais de conforto e consolo. O francês sentia-se cada vez mais envolvido, mais próximo do refém e não imaginava uma separação. Sempre teve uma queda por homens e talvez estivesse apaixonado. Afinal, o grego era um homem bonito, tinha um sorriso esplendorosamente fascinante mesmo nas horas mais difíceis e ainda era dotado de um senso de humor único. Em vários momentos, o escorpiano o havia conseguido esquecer um pouco da dor pela morte do irmão, uma ferida que não poderia ser exposta aos demais e que doía muito.
Miro já estava ciente da fatalidade e prometia que apoiaria o francês. Não o abandonaria e sempre lhe seria eternamente grato pela sua vida. Tinha certeza de que escaparia dessa e torcia para que o francês conseguisse não só escapar dos bandidos como da polícia. Havia prometido a si mesmo que, se necessário, serviria como testemunha de que o aquariano era tão vítima como ele.
– Está na hora! Vamos... – Exigia Gemini 2, entrando no banheiro onde Miro havia sido preso.
– Senhor Gemini 2... – Kamus chamava a atenção para si.
– Sim?
– Desculpe a minha ousadia, mas acho que seria melhor se levássemos o refém vivo e acorrentado. Entramos na casa, pela porta da frente usando o garoto como escudo e ninguém terá coragem de atirar... Exigiremos que os oficiais saiam, fazemos uma revista pela casa para garantir de que não haja nenhuma armadilha e então matamos o garoto na frente dos pais, que já estarão devidamente amarrados e amordaçados... Obviamente usaremos daquelas armas com silenciador. Aquelas de filme de suspense e ação... O que acha?
Miro virou para Kamus como se estivesse diante de um demônio, engoliu o seco e encolheu-se o máximo que pôde. O plano de ação havia sido planejado pelos dois, mas o refém tinha de demonstrar que havia sido pego de surpresa. Devido ao fato de já estar devidamente vendado e com um capuz preto na cabeça, ninguém podia ver as suas expressões faciais. Mesmo assim tentava prosseguir com a farsa.
– Muito bom! – Gemini 1 respondeu com um sorriso sarcástico e completou, dirigindo-se ao irmão. – Bem que você disse que o garoto tinha talento e que só faltava um pouco de incentivo...
– Só tem um porém. – Exigiu Gemini 2 com um sorriso maléfico. – Aquarius mata o refém...
A escolha não poderia ser melhor. Ainda não havia pensado como faria, mas tinha certeza de que conseguiria salvar a vida de Miro e de sua família. Nem que isso implicasse em sua morte.
– Concordo. – Respondeu o aquariano.
– Senhor Gemini 1... – Um outro integrante chegava na porta do banheiro.
– Fale, Capricórnio.
– Eu ouvi o plano e não quero discordar do seu julgamento, mas não confio em Aquarius.
Ao ouvir tal afirmação, Kamus sentiu as pernas bambear. Será que o capricorniano iria colocar seu plano a perder? Xingou-o mentalmente, enquanto sentia seu pulso acelerando à medida que o nervosismo crescia. Olhava para os irmãos gêmeos quando ouviu Gemini 1 perguntar:
– Quer tomar o lugar dele?
– Não exatamente. Eu sugiro que o senhor me dê permissão para vigiar o refém na parte traseira da Van, que estará lacrada e livre de olhares externos. Se assim desejar, coloque o francês como motorista.
– Mas eu não conheço nada na Grécia... – Kamus reclamou, temendo que o outro machucasse o refém.
– Quanto a isso, não se preocupe. Eu, Gemini 1 e Máscara da Morte iremos num carro à frente. Basta nos seguir. Pisces irá mais tarde, quando já estivermos finalizado toda a ação e, como o prometido, levará Paul.
Kamus engoliu o seco. Então Paul estava mesmo vivo? Se ele interferisse em seus próprios planos, veria seu irmão morrer. Pensou em simular um acidente no meio do caminho, mas desistiu da loucura. Capricórnio seria capaz de matar os demais ocupantes da Van e ainda arrumaria um jeito de culpar Paul pelo homicídio. Fechou os olhos e os coçou com a desculpa que havia entrado um cisco, quando na verdade evitava que os bandidos percebessem que estava chorando.
Miro também começou a ficar agitado. Se tudo desse errado, a sua família, Paul e Kamus estariam perdidos. Não queria que o francês sofresse, pois já nutria um grande e profundo sentimento pelo rapaz. Talvez fosse o único amigo que tivera desde a mais tenra infância, talvez sentisse algo muito maior. Suspirou resignado e deixou ser conduzido pelo espanhol, enquanto rezava mentalmente e pedia proteção.
Conforme haviam feito o acordo anteriormente, a polícia permitiu a entrada dos criminosos na mansão. O carro dirigido por Máscara da Morte, que vinha como chofer dos irmãos gêmeos era blindado. Se a polícia atirasse, seus ocupantes não ficariam em perigo. Capricórnio soltou os pés do refém, mas o manteve algemado, abriu a porta de trás da Van escura e usou Miro como escudo, evitando o ataque dos policiais. Foi até a porta do motorista e a abriu, permitindo que o francês tomasse o seu lugar.
Máscara da Morte saiu armado, pronto para dar cobertura aos gêmeos, mas não foi necessário. Nenhum tiro foi disparado até o momento em que adentraram a casa. Apreensivos, os pais de Miro já esperavam os bandidos, com a mala de dinheiro em suas mãos.
– Miro? – Chamou o senhor.
– Pai...
– Por favor... Deixe-nos ver o rosto do nosso menino! – Implorava a senhora.
Gemini 2 executou um gesto de cabeça e Kamus retirou o capuz e a venda que impedia a visão do refém.
A mãe de Miro caiu sentada no sofá, num baque mudo e chorou copiosamente. Haviam transformado seu anjinho num bicho sarnento. Parecia tão magro, tão frágil! O cabelo estava arruinado, as roupas imundas e haviam feridas pelo corpo todo.
– Mamãe? – Miro chamou desesperado, tentando se soltar.
A vontade do francês era soltar o refém, mas se fizesse isso, colocaria o plano a perder. Como era difícil presenciar aquela cena! Não sabia como o irmão estava e conseguia entender o desespero tanto do casal quanto do próprio Miro. Sentiu o coração falhar uma batida e quase soltou o grego quando sentiu uma leve pontada em seu peito, mas foi forte. Precisava ser!
– Fica quieto aqui! – Ordenava Kamus, com o coração na mão.
Miro engoliu o seco. Tremia de medo e ansiava por ajudar a mãe, mas ao ouvir a voz do francês lembrou-se do sofrimento do amigo. Respirou fundo e ficou imóvel. Sentiu-se aliviado ao ver o pai consolando a esposa. Choramingou no ouvido do francês:
– Ela é diabética...
– Eu mandei você calar a boca e ficar quieto! – Gritava o francês, que continuou em tom de ameaça. – Quer que eu estoure os seus miolos?
Dito isso, destravou a arma, enquanto a outra mão apalpava o grego, num gesto combinado que dizia para ele se acalmar, pois daria certo. Seu coração estava disparado e sentia que mentia para si mesmo. Será que conseguiria salvar a vida de Miro e de sua família?
Como o esperado, a casa estava cheia de atiradores, em posição estratégica. Máscara da Morte e Gemini 1 foram tomados de um mal pressentimento. Gemini 2 não se impressionou com o que via e começou a gritar:
– Saiam todos ou o refém morre!
Nenhum movimento foi iniciado.
O coração dos bandidos começou a acelerar, Kamus tremia e olhava em volta, procurando apoio em alguém. Miro sentiu o nervosismo do francês, mas não podia fazer nada. Estava com as mãos algemadas e se movesse as pernas, causaria a desconfiança dos demais bandidos. Capricórnio decidiu assumir o controle da siatuação.
– Não ouviram o que Gemini 1 disse? Saiam agora!
– Aquarius, conte até 5 e atire! – Ordenava Gemini 2.
O francês havia aprendido a atirar, mas não poderia obedecer à ordem. Preferia cometer suicídio a matar o grego. Respirou fundo e destravou a arma, encostando o cano frio pouco acima da orelha direita do rapaz.
Os pais de Miro se desesperaram. A certeza de ver o filho morrer ali, diante deles crescia a cada momento. Desesperado o pai do refém, pedia:
– Façam o que eles mandam!
Pouco a pouco os policiais soltavam as armas e saíam da casa. Gemini 1 achava tudo muito estranho: estava dando certo demais! Olhou ao seu redor e novamente sentiu-se sendo vigiado. Não iria ignorar seus pressentimentos agora. Acreditava poder haver algum atirador escondido, mas não poderia arriscar-se.
– Senhor Gemini 1, vou fazer uma geral e conferir se não há tiras escondidos. – Capricórnio ofereceu-se
– Ótima idéia, Capricórnio.
Ao receber a autorização, o capricorniano começou a verificar meticulosamente cada ponto estratégico do ambiente. Gemini 1 sentiu-se mais aliviado e aproximou-se do senhor que tanto estragara sua vida no passado. Iria vingar-se, mas, para isso, precisava mostrar a própria cara.
– Pensou que destruiria a minha vida e sairia impune? – Perguntou o bandido.
– Quem é você? – Perguntou o assustado pai de Miro. – O que eu lhe fiz?
O bandido retirou o capuz e sorriu de forma maléfica. Primeiro amedrontaria o senhor, depois mandaria Kamus matar Miro, daria um tiro no peito da mulher e outro na barriga daquele homem, para que ele morresse lentamente. Só assim pagaria por todo o mal que havia feito no passado.
– S-saga? Mas você...
– Eu não sou e nunca fui amigo da sua família. Adquiri a confiança de vocês para me vingar.
– Vingar-se do quê?
– De uma injustiça cometida há 13 anos.
– Ainda não entendi...
– Vai dizer que já esqueceu que foi a única testemunha do possível crime cometido pelo meu irmão gêmeo, que na época era um rapaz de 15 anos. Kanon só estava no lugar errado e na hora errada...
– Seu irmão matou o meu melhor amigo e você ainda diz que ele é inocente?
– Ele estava brincando... Usava uma arma de brinquedo e só tocou na arma do crime na hora errada.
– Eu vi tudo! Ele matou a sangue frio.
– Mentira! Meu irmão é inocente e provou isso. – Bradou.
– Não, Saga. Eu forjei tudo... – Gemini 2 respondeu
– Kanon, não se meta! Estou nessa por sua causa por...
– Não me culpe pelas suas escolhas. Eu menti pra você, menti pra polícia e aproveitei a sua inconformidade para adquirir vantagens. Se eu tivesse uma pessoa de confiança fora da prisão, poderia manter os meus negócios. Foi fácil envenená-lo...
– Então você... mentiu pra mim? Você me usou?
– Como é inocente, Saga! Eu sempre fui culpado e não só o usei para manter os meus negócios, como também para sair daquele lugar imundo. Combinei tudo com a polícia...
– O que você está dizendo?
– Esse plano é uma armadilha!
– Não pode ser...
– Pode sim.
– Capricórnio?
– Não. Sou Shura, investigador da Interpol e aquele é o meu parceiro, Máscara da Morte.
– Esperem um pouco... Se isto é uma armação, onde está o Paul? – Perguntou Kamus.
– Até alguns dias atrás estava em Paris, no seu apartamento e agora deve estar na embaixada da França. Ele já sabia de tudo, mas tivemos medo de lhe contar e você acabar estragando o plano. – Respondeu Shura.
Ainda em choque, Kamus solta Miro. Sentia-se confuso. Se a polícia estava ali o tempo todo, por que não agiu antes? Por que deixaram que ele sofresse daquela forma? O que seria de seu futuro?
Miro aproveitou a confusão e foi até os pais. Sentia saudades e estava preocupado com a saúde física e psicológica deles. Lembrou-se de quando desmaiou por descobrir que Shura era um policial, mas teve que manter silêncio sobre o fato para que Kamus continuasse acreditando que estivessem perdidos. Sua vontade era dar um abraço em seus entes, mas as mãos presas atrás das costas o impediam.
– Saga, você está preso por formação de quadrilha, seqüestro, tráfico de drogas e armas... – Máscara da Morte listava todos os crimes cometidos pelo geminiano.
– Isso não vai ficar assim! – Gritou raivosamente. Tomado de fúria pela traição, Saga sentiu vontade de matar a todos. Ficou na direção da família de Miro e começou a atirar em cada um dos que ali estavam, começando pelos policiais, que estavam acuados pela posição do bandido. Não poderiam arriscar a atingir os inocentes.
Os olhos de Kamus se encontraram com os de Miro. Mesmo distante, o francês podia perceber a dor da derrota nos olhos do outro. Sentiu como se aquilo fosse uma despedida, mas não poderia deixar que o grego de cachos azuis sofresse por sua culpa. Apontou a arma na direção de Saga, sentiu o coração em disparada, sua mente o condenando pelo crime, mas não tinha escolha! Pensou em sua própria vida, que já estava estragada. Seria condenado pelo seqüestro da única pessoa que amou fora de sua família e não teria mais futuro. Já havia prejudicado em demasia a vida de Miro. Fechou os olhos e atirou na direção do bandido enfurecido. Abriu-os.
Miro havia servido como escudo para o geminiano e agora caía lentamente no chão. Em sua mente, as lembranças de suas poucas conversas no cativeiro, a amizade que formara com o outro e o sentimento nobre que havia nutrido. Queria Kamus só para si! Agora, à beira da morte, tinha certeza de seus sentimentos. Apesar de tudo o que viveram, amava o francês e, se tivesse uma chance, assumiria este sentimento. Lembraria-se do outro até após a morte e nunca o culparia pelo tiro. Olhava e sorria ao amado. Queria guardar suas feições por toda a sua eternidade.
A cena deixou todos os outros em choque. O jovem e alegre Miro partia enquanto o bandido continuava impune. Como o mundo era injusto! Por que o destino obrigava que pais assistissem à morte de um filho de uma maneira tão cruel? Por que os inocentes sempre pagam pelos crimes de pessoas irracionais, mesquinhas e egoístas?
Não era justo!
Kamus não agüentou ver a cena, saber que fora o culpado pela morte da pessoa que mais amou, da sua verdadeira alma gêmea. Caiu de joelhos no chão, com as mãos na têmpora, demonstrando seu desespero. Era um pesadelo!
Saga ria de forma frenética. Havia conseguido sua vingança! Os pais de Miro puderam presenciar a morte de seu único filho, o bondoso Kamus seria acusado pelo homicídio do jovem, os policiais iriam martirizar-se por não ter agido anteriormente e agora só faltava vingar-se do irmão. Todos o haviam enganado e pagariam caro por isso. Amava Kanon mais do que a própria vida e não podia nutrir raiva por ele. Tinha que atirar e feri-lo para que o outro visse o quanto ainda dependia de seu amor. Virou-se de costas e atirou na direção do gêmeo.
Atordoado pelo seu erro, o francês ouviu a gargalhada do impune bandido. Viu quando Saga virou de costas e foi tomado pela raiva. Não poderia perdoar aquele covarde, que havia usado um inocente como escudo. Lembrou-se de tudo o que Shura havia lhe ensinado nas aulas de tiro e, de olhos abertos, descarregou a arma sobre o outro.
Saga era um excelente atirador e, por mais que Kanon tentasse desviar, havia sido atingido no ombro esquerdo e na perna direita, indo direto ao chão. Ouviu a seqüência de disparos do francês e sentia cada tiro que acertava em seu corpo. Mesmo assim, virou-se e, antes de tombar, disparou 3 tiros certeiros em seu oponente. Olhou uma última vez aos pais de Miro e sorriu, comemorando:
– Eu me vinguei, Kanon. Sua ficha está limpa!
Em segundos, Saga atingiu o solo num baque forte. O sangue jorrou de seu corpo e espalhou-se rapidamente pelo tapete claro. Seus olhos ainda estavam abertos, mas sua vida havia se esvaído. O coração parara de bater e seria questão de tempo para que sua pele ficasse gelada e perdesse a cor.
Mesmo ferido, Kanon rastejou até o irmão. Era triste ver aquela cena, perceber que todos os seus planos fizeram com que seu irmão enlouquecesse e se transformasse naquele demônio. Se pudesse voltar atrás, certamente não teria o enganado daquela forma. Chorou copiosamente em seu peito, como se isso pudesse trazer o outro de volta.
Shura correu até o local onde estava Miro e Máscara da Morte correu em socorro a Kamus. Ninguém poderia prever tamanha desgraça. Se tivessem avisado ao francês, talvez tudo pudesse ser diferente, menos trágico, mas não fizeram! Não evitaram a chacina.
– Eu... Eu não me conformo! – Choramingava o homem de olhos azuis perante a lápide. Apoiava-se num par de muletas. Ironicamente, o mesmo que havia marcado o início de toda aquela tragédia.
– A culpa foi minha. Não deveria ter envolvido inocentes... – Shura comentava, cabisbaixo.
– Não é justo! Ele era tão novo... Tinha tanta vida e um futuro tão brilhante pela frente... – Desesperava-se outro homem, caindo de joelhos enquanto chorava compulsivamente. A vida era tão injusta, tão frágil!
– Ele me amou! Nunca pudemos ter um momento íntimo, nunca pudemos nos declarar, mas eu sei que ele me amou e só agora eu percebo o quanto eu o amei. – Declarava o homem apoiado nas muletas. Tombou a cabeça em sinal de derrota. A tristeza dominando o seu coração, a sua alma. Sentia que estava sendo rasgado por dentro numa tortura cruel e sem fim. Assustou-se ao ver o senhor abraçando-lhe, mas não conseguiu proferir uma única palavra.
Atendendo a um pedido, Shura depositou um bonito arranjo de cravos cuja cor mesclava o vermelho ao branco e depositou perante a lápide. Olhou o homem caído de joelhos, voltou-se ao túmulo e desejou:
– Descanse em paz, Kamus Poissy.
Miro estava abatido pelo desespero e tristeza, sentia seu coração partido. Entretanto não resistiu ao desespero do francês e soltou-se de seu pai, que ainda o abraçava. Com muita dificuldade pela falta de costume sobre o uso de muletas e pelas dores que ainda sentia por causa do tiro que Kamus havia acertado em sua virilha esquerda, foi até Paul e colocou a mão sobre seu ombro. Não falou nada e nem falaria!
– Kamus... Meu irmão... – Paul chamava em desespero.
– Ele foi muito corajoso... – Miro comentou.
O francês levantou-se lentamente e abraçou o grego. Daria tudo para ter o caçula novamente! Já havia perdido toda a sua família e agora não tinha motivos para viver. Deixou que as lágrimas caíssem sobre os ombros do garoto e, ao se acalmar, comentou:
– Eu sempre pensei que iria primeiro... Desde os 8 anos sabia que era portador de uma rara doença no coração. Uma doença hereditária e sem cura... Tomo remédio há cerca de 10 anos, quando ela começou a desenvolver-se e nunca tive coragem de contar a ele. Agora...
– Deve ser muito difícil, mas não acho sensato desistir da vida agora. O que o seu irmão diria? – Miro perguntou.
– O que importa? Além do mais, não teria muito tempo mesmo... O transplante não adiantaria e os medicamentos já não surtem o mesmo efeito de antes.
– Espere aí! Você...
– Por mais que eu me esforçasse com o tratamento, não teria mais do que 7 meses de vida... Não se preocupe, não irei cometer nenhuma loucura. Antes de voltar à Paris farei um testamento e transformarei as empresas da minha família em instituições de caridade. Se eu não resistir à viagem, peço para que você cuide de tudo.
– Não entendo muito disso, mas qualquer coisa, falo com o meu pai e com o advogado dele.
– Obrigado. Entregarei o projeto e toda a documentação o mais rápido possível e depois eu voltarei para casa.
– Confie em mim!
– Ah! Antes que eu me esqueça...
– Fale!
– Quando eu morrer, desejo ser enterrado junto ao meu irmão. Da mesma forma...
– Vai doar seus órgãos também?
– Se for possível... Mas já ouvi falar que não se pode doar os órgãos depois que o coração pára. Converse com os médicos e veja o que pode ser feito.
Miro responde com um aceno positivo de cabeça.
– Preciso ir... Tenho que tomar os meus remédios... – Paul falou de forma mansa, recebendo um aceno de despedida e um abraço do rapaz. O francês separou-se. O perfume daquele homem lembrava tanto seu irmão que sentiu-se incomodado e não suportou a aproximação. Despediu-se uma última vez do túmulo e afastou-se o mais rápido que pôde, sem olhar para trás.
Vinte dias depois, Paul cumpriu o prometido e entregou os documentos ao pai de Miro. Agradeceu internamente pelo fato do rapaz não estar em casa e partiu ao aeroporto. Sentiu uma pontada no coração e olhou o relógio. Ainda não estava na hora do medicamento. Pelos seus cálculos, tomaria a pílula alguns minutos depois do avião decolar. Regulou o despertador de seu relógio. Precisava relaxar!
Ouviu quando a voz chamou para dirigir-se ao seu devido portão. Correu até a lanchonete mais próxima e pediu um suco de maracujá, que foi preparado instantaneamente. Tomou no caminho. Sentou-se em sua poltrona e ligou o rádio numa estação de músicas clássicas. Apertou o cinto e fechou os olhos.
Adormeceu, mas acordou tão logo o avião se estabilizou no ar. Uma aeromoça havia tocado gentilmente em seu ombro. Esfregou os olhos e virou-se em sua direção. Sentia-se cansado, mas esforçou-se para ouvi-la.
– Senhor, já atrasou seu relógio em 1 hora?
Havia esquecido! Com tanta coisa na cabeça... Agradeceu-lhe com um sorriso e foi ao banheiro. Ao sentar-se novamente, colocou os fones de ouvido e novamente escolheu a rádio de músicas instrumentais. Eram tão relaxantes! Na primeira chance, avisou uma das aeromoças:
– Se eu pegar no sono, não me acorde! Acabo de perder o meu irmão e gostaria de relaxar um pouco. Tudo bem?
– Fique à vontade, senhor!
Paul olhou novamente o relógio. Faltavam menos de 15 minutos para seu remédio. Talvez devesse alertar a aeromoça, mas lembrou-se de que havia regulado o relógio e desistiu da idéia tão logo ela deu o seu primeiro passo. Novamente apertou o cinto de segurança, fechou os olhos e dormiu.
Havia esquecido de que atrasara o relógio, mas não mexera no despertador! Sentiu uma nova pontada no peito, mas não ligou. Era a dor pela perda de Kamus! Seu corpo foi encontrado logo após o pouso, sem traços de dor.
FIM
