Capítulo III
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En esta orilla del mundo
Lo que no es presa es baldío
Creo que he visto una luz
Al otro lado del rio
Nesta margem do mundo
O que não é represa, é baldio
Acredito ter visto uma luz
No outro lado do rio
Yo muy serio voy remando
Muy adentro sonrío
Creo que he visto una luz
Al otro lado del rio
Eu, muito sério, vou remando
E bem lá dentro, sorrio
Acredito ter visto uma luz
No outro lado do rio
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A dúvida plantada por Ágatha no coração de Sorento não deixou o rapaz sossegar. Durante todo o jantar ele ficou calado, alheio a tudo o que acontecia à sua volta. Por três vezes Julian teve que chamar sua atenção, mas logo ele se dispersava novamente. Visivelmente nervoso, Sorento terminou logo de comer e pediu licença para subir. Alegando estar cansado, disse que iria dormir.
Tirando a camisa, o rapaz sentou-se no beiral da janela e ficou observando o céu, pensativo. Seus olhos percorriam cada estrela, em busca de uma resposta. "Por Deus, Ágatha, por que me disse aquilo? Será que você sabe alguma coisa a respeito de Poseidon?".
E ele estava assim, quieto, quando ouviu um barulho vindo da porta. Era Ryan, parado, olhando para Sorento.
-Oi, Ryan... Dormiu bem?
Pela primeira vez, o menino respondeu, mesmo que com um simples aceno. Baixando a cabeça, ele apontou para a caixa da flauta do rapaz, indicando que queria ouvi-lo tocar. Sorrindo, Sorento pegou-a entre as mãos, mas não tocou. Chamando Ryan para perto de si, ele a colocou nas mãos do menino, explicando como ele deveria fazer para tocar.
-Isso, assim... - ele dizia, posicionando os dedos do menino sobre os furos do instrumento - Muito bem, Ryan! Viu, eu disse que não era tão difícil tirar as primeiras notas da flauta.
Ryan levantou os olhos e sorriu. Sorento se encantou com o gesto do menino e falou, enquanto pegava o instrumento de volta, para guardá-lo.
-O seu sorriso é igualzinho ao da sua irmã... Aliás, a única diferença entre vocês dois é a cor dos olhos, os seus são verdes.
-Eu sei...
Surpreso, Sorento parou de falar e quase deixou cair a flauta no chão. Ryan tinha dito alguma coisa, não era uma ilusão.
-O que você disse?
Porém, o menino não voltou a abrir a boca. E logo Julian apareceu, querendo dormir também. Ryan saiu correndo, entrou no quarto de Ágatha e trancou a porta.
-O que estavam fazendo?
-Eu estava ensinando-o a tocar flauta. Ele leva jeito.
-E por que não aproveita e ensina para a Ágatha também?
-O quê? - perguntou Sorento, tirando a colcha de sua cama.
-Você me ouviu... E saiba que até o padre Jean Luc percebeu os seus olhares, o jeito manso que você fala com ela.
-Que jeito? Não viaja não, Julian!
-Viagem? Que foi, tá com vergonha de dizer que é apaixonado pela Ágatha?
-Ah, cala a boca, seu besta! - respondeu o rapaz, atirando um travesseiro na cara do amigo. Julian deu risadas e ficou debochando de Sorento, que estava sem cabeça para esse tipo de brincadeira. Mas, no fundo, ele sabia que o rapaz tinha razão...
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O problema era que a dúvida inicial voltou a tomar conta da mente de Sorento, que não pregou o olho durante toda a noite. Virando-se na cama, ele invejava Julian dormindo a sono alto, chegando até a roncar. "Assim não dá!".
Nervoso, Sorento saiu do quarto descalço mesmo e desceu para a cozinha, disposto a dar um jeito naquela insônia. Silencioso, ele estava tão distraído que não viu a luza de lá acesa, indicando que havia mais alguém acordado. Quando percebeu, ficou parado feito bobo, observando Ágatha. A garota estava com a geladeira aberta, procurando por alguma coisa. Pegando frutas e uma garrafa de leite, ela fechou a porta e só então viu Sorento por ali.
-Oi, Sorento... Aconteceu alguma coisa?
-Não, eu só estou sem sono...
-Somos dois... Senta aí, vamos conversar... Aceita um copo de leite?
-Claro...
Em pouco tempo, metade da garrafa e todas as frutas já tinham ido para o espaço. O rapaz estava gostando de ficar ali, com a garota, mas precisava resolver a dúvida que o atormentara a noite inteira.
-Ágatha, eu sei que deve ser difícil para você falar sobre o que aconteceu com seu pai, a grande enchente e tudo, mas eu... Eu preciso saber de uma coisa.
-O que é? - ela perguntou, deixando seu copo de lado e encarando Sorento.
-Quando você disse que sabia quem era o culpado pelas chuvas, estava falando sério?
-Eu não brincaria com uma coisa dessas, Sorento.
-Então você sabe?
Suspirando, Ágatha baixou a cabeça por alguns instantes. Quando a levantou, seus olhos estavam vermelhos, mas sua voz soava firme e dura.
-Se eu lhe contar, você promete guardar segredo?
-Segredo? Por quê?
-Porque contar o que sei implica em contar uma outra coisa, algo que mantenho em segredo até mesmo do meu irmão. E então?
-Eu juro que não contarei nada a ninguém.
Colocando o copo na pia e servindo-se de uma xícara de café, ela começou a falar. Sorento sequer respirava, prestando atenção em tudo.
-Sorento, você alguma vez já ouviu falar dos cavaleiros de Atena?
-Cavaleiros de Atena? - ele quase gritou, demonstrando nervosismo. Sua sorte foi que a garota não percebeu - Eu... Eu já ouvi falar deles na Grécia, mas isso não é uma lenda?
-Não... E digo isso porque em minha família existe um cavaleiro de Atena. Ele é meu primo por parte de mãe, Miro de Escorpião. Um cavaleiro da mais alta linhagem, a de ouro.
-Não acredito...
-Pois acredite... Nós costumávamos brincar juntos quando crianças, éramos muito amigos um do outro. Quando ele se tornou um cavaleiro, eu fui a primeira a saber. E também a única, já que isso era para ser um segredo. Um segredo mantido por anos, assim como nossa amizade. Ele me manda cartas do Santuário de Atena, contando suas experiências e lutas...
Ágatha parou de falar para tomar um pouco de café. E Sorento aproveitou para digerir as palavras da garota. Mas o pior ainda estava por vir.
-Em uma dessas cartas, a última delas, Miro me contou sobre as lutas contra os cavaleiros de bronze, os guerreiros deuses de Asgard e também sobre a causa das chuvas que castigaram o planeta...
Desta vez, a garota tomou todo o conteúdo da xícara de uma só vez e a colocou sobre a mesa com tamanha força que quase a derrubou. Sorento cruzou os braços e se controlava para não demonstrar sua apreensão.
-Tudo obra de Poseidon, o deus dos mares! Um idiota que queria inundar a Terra, acabar com a humanidade por nos achar indignos de viver sobre ela. Felizmente, os cavaleiros de Atena o derrotaram, assim como seus generais!
Com um brilho de fúria em seus belos olhos, Ágatha deu um soco na mesa, assustando o rapaz. Sorento suava frio,
-Miro disse que dois desses generais sobreviveram à luta, assim como o rapaz em quem Poseidon reencarnou... Eles que não cruzem meu caminho porque eu juro, Sorento, que não ficaria quieta... Mesmo que eu fosse punida por isso, eu daria a eles o castigo que merecem por terem acabado com a vida do meu pai, por deixarem meu irmão daquele jeito!
Ao terminar, a garota encarou o rapaz demoradamente. Sorento tinha a respiração suspensa, assustado. Nunca que ele imaginaria aquela menina de aparência tão frágil ter um acesso de raiva como aquele, nem que ela pudesse realmente saber da verdade. Para ele, as palavras duras de Ágatha tiveram um efeito horrível, como um soco no estômago. O seu sentimento de culpa só fez aumentar.
-Desculpe por ter me exaltado dessa maneira, acho que assustei você.
-Na... Não precisa pedir desculpas, eu entendo... Puxa, que história mais doida... - Sorento tentou disfarçar. Ágatha sorriu.
-Doida, mas verdadeira. Bem... - ela bocejou - Acho que o sono resolveu vir me fazer uma visita. Boa noite, Sorento.
-Boa noite, Ágatha.
Depois de a garota subir, Sorento ainda ficou um tempo na cozinha. Sua cabeça dava voltas e seus pensamentos estavam ainda mais confusos. E eles se misturavam aos seus sentimentos em relação à menina. O que ele faria?
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Pela manhã, Sorento sequer tomou café e saiu logo, queria ficar longe daquela casa. Sem saber o que fazer, acabou indo parar na igreja do vilarejo que mesmo de pernas para o ar mantinha sua programação. Quando o rapaz chegou, a missa já tinha acabado e o padre Jean Luc arrumava suas coisas. Pedindo licença, Sorento foi até ele.
-O que quer, meu rapaz?
-Não sei ao certo, padre.
-Sei... Venha comigo à sacristia, podemos conversar enquanto eu termino de ajeitar minhas coisas.
Acompanhando o padre, o rapaz foi à sacristia, onde se sentou em uma das pontas de uma pesada mesa de madeira maciça. Enquanto o padre arrumava suas coisas, Sorento ficou de cabeça baixa e braços cruzados, sem saber direito o que fazia ou o que falar.
-Pronto, rapaz... Podemos conversar sobre o que quiser.
-Eu não sei bem se quero conversar, padre.
-Então o que quer?
-Também não sei... Eu estou confuso, não sei o que fazer ou como agir.
-Está falando da menina Ágatha?
Sorento concordou com um aceno afirmativo. O padre sorriu para ele, o que fez com que o rapaz prestasse mais atenção no que ele poderia lhe dizer.
-Eu percebi que você parece sentir algo especial por ela, estou certo?
-Acho que sim... Não sei, ela me impressionou desde a primeira vez em que a vi e nesses dois dias de convivência... Ela é tão doce e prestativa, amorosa com o irmão, sempre atenta e sorrindo...
-O pai dela costumava dizer que Ágatha é como um raio de sol após uma madrugada fria... Um verdadeiro alento que o fazia seguir em frente, mesmo muito abalado com a morte da esposa.
-Eu penso que ele tinha razão...
O rapaz parou de falar. Queria desabafar, mas não sabia como, nem que palavras usar.
-Padre, eu... Eu posso perguntar uma coisa?
-É claro, eu estou aqui para responder tudo o que quiser.
-Eu gostaria de saber... - o rapaz hesitou um pouco, antes de soltar tudo de uma vez - O que o senhor faria se... Se tivesse culpa por algo que mudou radicalmente a vida de uma pessoa de quem gosta muito, a ponto de nada poder voltar a ser como antes?
-Olhe, meu rapaz... Se eu tivesse feito algo tão grave assim, eu não hesitaria em contar para a pessoa e expor meu arrependimento.
-E se fazendo isso a pessoa não o perdoasse e sumisse, sem que soubesse para onde ela foi?
-Eu contaria mesmo correndo esse risco. Viver com essa culpa seria muito pior, acabaria por me afastar da pessoa sem que ela pudesse entender os motivos. Ela certamente se sentiria rejeitada...
Sorento ouviu cada palavra com atenção, mas hesitava em aceitá-las. Depois do que ouvira da boca de Ágatha, tinha medo de tomar qualquer atitude.
-Meu rapaz... - o padre continuou, veemente - Eu não sei o que fez, mas me parece que foi algo em relação à menina Ágatha. Se não quiser me contar, eu não o forçarei a isso, porém, se contar-me tudo, eu posso ajudá-lo da melhor maneira possível.
O rapaz encarou o padre Jean Luc por longos segundos. Considerava-o um bom homem e sentiu que podia confiar nele. E contar a alguém a sua história poderia fazer com que ele se sentisse melhor. Ouvindo a cada detalhe com atenção, o padre não esboçou uma reação em toda narrativa. Ao final dela, Sorento estava visivelmente envergonhado, mas aliviado também.
-Os homens são capazes de coisas absurdas pelo que acreditam... - o padre começou a falar, calmamente - Mas, quando se arrependem de coração por seus atos, tornam-se pessoas melhores e merecedoras de uma segunda chance. Se dê essa segunda chance, Sorento. Conte a Ágatha a sua história.
-Mas e se ela não aceitar meu pedido de perdão, se quiser me ver pelas costas depois disso?
-Não se prenda a esses "e se", meu rapaz! Assim, nunca tomará uma atitude decente e se arrependerá pelo resto da vida... Perderia Ágatha de qualquer jeito, no fim das contas: Cedo ou tarde ela iria descobrir sua história e se sentiria ofendida por você não confiar nela e viver em uma mentira. Você gostaria que isso acontecesse?
Sorento fez que não com um aceno. Sabia que o padre tinha razão, mas, mesmo assim, estava com medo. Medo de tomar uma atitude. Medo de perder Ágatha para sempre...
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A canção tema não precisa de muitos comentários, eu acho... "Al outro lado del Rio" é a música do filme "Diários de Motocicleta", ela ganhou o Oscar 2005 (ou foi o de 2004?) de melhor canção e é muito bonita, bem calminha, no ritmo que eu queria para a fic. E fora que o Jorge Dextler, o cara que compôs e canta a música, é maravilhoso, quem tiver a oportunidade de conhecer o trabalho dele, não perca!
