Capítulo Três: A Diplomacia dos Elfos
"Tudo vale a pena quando a alma não é pequena". Fernando Pessoa
O desconforto estava crescendo dentro dele o dia inteiro. Como o instante antes de a tempestade desabar, quando o ar fica carregado, pesado, cheio de ameaças veladas. Erestor voltou para seus aposentos logo após o duelo e refugiou-se em seus amados livros por muitas horas, esquecendo momentaneamente que a tempestade estava para chegar.
Apenas quando o sino soou anunciando o jantar ele voltou à realidade. Percebendo que não apenas ele havia esquecido seus deveres como regente, Erestor ainda estava atrasado para as festividades, ele guardou as crônicas de Eregion e começou a procurar uma roupa adequada. Sem tempo para mudar de túnica, ele pôs por cima um robe de azul profundo, as mangas bordadas em um padrão de folhas douradas. Mas quando penteava os cabelos, Erestor achou um pedaço de folha preso nas mechas na partida contra Eámanë.
Eámanë.
Erestor não sabia o que a dama pensava dele. Eles lutaram como ele jamais havia lutado antes. Tamanha intensidade, tamanho gozo... Era quase uma dança violenta. Ele sorriu, acariciando o hematoma em sua perna, onde ela o havia chutado. Elfo algum em Valfenda teria lutado assim.
Mas ela tinha o evitado depois. O sorriso morreu em seus lábios. Talvez ele tivesse cometido uma ofensa imperdoável. Ele havia ido além da conduta polida, e ela reagiu do mesmo modo. Com um calafrio gelado a percorrer-lhe a espinha, Erestor perguntou-se se ele tinha comprado uma briga com todo o Comitê Silvestre hospedado em Valfenda.
Estúpido, estúpido Erestor.
Com um profundo suspiro, ele sacudiu a cabeça enquanto o som de muitos pés apressados a passar e vozes sussurrando as notícias do dia anunciavam a hora do jantar. Ele teria que encarar Eámanë mais cedo ou mais tarde. Talvez, se ele pedisse desculpas, ela perdoaria seu insulto. Ou talvez não.
Suspirando novamente, ele deixou seu apartamento e dirigiu-se à sala de refeições onde descobriu, para sua mortificação, que os convidados já estavam sentados. Em mais de mil anos em Valfenda, esta era a primeira vez que estava atrasado. Que tipo de impressão ele estava dando para os hóspedes?
Pior, vários pratos de dar água na boca tinham sido postos na mesa, aromas ricos enchendo o ar; ele descobriu o quanto estava faminto.
Erestor sentou-se entre Eámanë e Mithrandir e educadamente bebericou algum vinho, esperando que Elrond chegasse.
Ele notou que ninguém tinha começado a comer ainda, e toda aquela comida deliciosa estava esfriando. Com um meio-sorriso, Erestor imaginou Elrond imerso em algum livro ou em seus estudos, mantendo os hóspedes esperando toda a noite. Ou então o Senhor Élfico estava roubando alguns momentos preciosos com sua família antes do início das festividades e tinha perdido a noção do tempo. De qualquer modo, logo alguém teria de dar a ordem para que começassem a comer, e a menos que Glorfindel decidisse tomar para si a tarefa, esse alguém seria ele.
Erestor usou a oportunidade para ver quem estava presente. Havia alguns rostos novos, pessoas que tinham chegado durante o dia. Erestor sentiu seu coração mais leve, mesmo que os problemas do mundo se acumulassem cada vez mais e a memória dos homens mortais enfraquecesse, Valfenda não era uma ilha solitária.
A razão da demora ficou óbvia quando Elrond apareceu à porta. Seus filhos tinham chegado durante o dia, e eles devem ter passado algumas horas discutindo as novas do Grande Mundo. Celebrían gentilmente guiou o marido até a grande mesa. Se na noite anterior Elrond tinha damas demais, esta noite as damas tinham um acompanhante a mais. Não que elas estivessem reclamando. A sala encheu-se com risadas alegres quando Elrond contemplou, em voz alta, a possibilidade de ter mais uma filha. Para equilibrar a balança, ele disse, e Arwen encostou a cabeça em seu ombro para se recuperar do ataque de riso.
Elrond beijou a testa da filha e a posicionou em frente à mesa, para que todos tivessem a oportunidade de contemplar a Estrela Vespertina. "Gentis seres", ele falou, com uma voz clara e imponente. "Amigos de tantos anos. Meu coração se alegra em dobro ao ter vossa companhia enquanto celebramos e agradecemos aos Valar por esta grande bênção recebida. O aniversário de minha filha é muito mais, para mim, do que uma excelente desculpa para reunir tão agradável companhia".
"Deviam chamá-lo Língua Macia, ada", Arwen falou gentilmente. Apertando a mão do pai, ela pousou o olhar em seus irmãos e depois nos convidados. "Sejais bem-vindos e muitas graças por compartilhar esta alegria conosco. E agora, façamos bom uso de todas estas iguarias que Tulquar nos fez".
"Sua filha excede-te em sabedoria, Elrond", Glorfindel gritou.
"Ela entende-te melhor, disso não há dúvidas". Elrond replicou. "Comamos!"
Erestor virou-se para a esquerda para encarar a dama Silvestre. A Elfa loira estava irada, e muito provavelmente com ele.
Dêem-me um manuscrito obscuro em qualquer linguagem deste mundo, ele pensou, pois seria mais fácil de decifrar que o coração de algumas pessoas.
"Minha Senhora", ele disse, depois mudou de idéia e desistiu da formalidade. "Eámanë. Eu... Gostaria de pedir-lhe desculpas pelo insulto que proferi mais cedo. Não havia motivos para tanto, e eu não deveria ter-me permitido ficar zangado". Ele pausou. "Espero poder convencê-la a aceitar as minhas humildes desculpas".
Interessante, de fato, Eámanë pensou, e sentiu a maior parte da raiva esvaecer-se... ainda que não toda. Então os Nobres e Poderosos podiam admitir um erro, ainda que este nunca devesse ter acontecido em primeiro lugar. Eámanë não conhecia bem os hábitos dos Elfos do vale, mas na Floresta das Trevas nenhum Elfo que se respeitasse admitiria ser chamado de orc!
"Vamos findar o assunto aqui. Faz de conta que ele nunca aconteceu", Eámanë respondeu na voz mais calma e suave que pode fazer. Não era seu lugar provocar uma rixa entre seu povo e um dos Elfos mais influentes de Valfenda. A Floresta das Trevas já era isolada o bastante por si só, então Eámanë decidiu engolir o orgulho em nome das relações internacionais.
Erestor teve de usar de muita força de vontade para não revirar os olhos quando Mithrandir olhou na direção deles. O velhaco tinha reputação de intrometer-se em todo tipo de assunto.
Mais para ter alguma privacidade que por desejo de estar mais perto da pestinha, Erestor reclinou sua cabeça na direção da dama. "Tenho medo dos seus campeões, senhora. Glorfindel deixou claro que minha vida está a perigo caso eu não consiga recuperar suas boas graças, e o Peregrino Cinzento já olhou em nossa direção três vezes".
Eámanë sentiu os cantos da boca ensaiando um sorriso e resistiu bravamente. "Medo de meus campeões ? Não tem medo de mim, também?"
"Oras, é claro", ele respondeu, completamente sério. "Acaso tenho cara de tolo?"
Então a Elfa perdeu a batalha e caiu na gargalhada. "Gentis palavras, meu senhor, são só o começo da estrada. Se ações seguirem-se às palavras, eu darei as minhas boas graças com prazer."
"A dama é generosa". Erestor reclinou-se na cadeira, satisfeito. Então não haveria um incidente diplomático, afinal. E igualmente importante, Glorfindel não o degolaria.
Ainda que, a bem da verdade, ele estava genuinamente aliviado em ter feito as pazes com esta Elfa.
"Isto significa que me mostraria aquela manobra que usou para abrir a partida?"
"Não," ela disse, enchendo o seu prato com veado grelhado.
Erestor serviu a ambos vinho. "Ainda que eu implore?"
Ela parou o garfo a meio caminho da boca para dar-lhe um olhar firme. "Nem assim."
"Pena."
Eámanë concentrou-se em comer por um tempo, e Erestor perguntou-se se ela havia dito que havia paz entre eles apenas por cortesia.
"Você luta muito bem para alguém que deixou a espada pelos livros."
"Algumas coisas não podem ser esquecidas. Você é muito boa, também. Tenho os hematomas para provar."
"Não devia ter usado aquele truque. Peço que me perdoe."
Erestor ergueu as sobrancelhas antes de lembrar-se de manter um semblante neutro.
"Não achou que eu reconheceria meus próprios erros, meu Senhor?"
"Eu não achei que sentiria necessidade de desculpar-se por fazer o que lhe disseram."
"Você ficou furioso. Pensei, depois, que talvez se sentisse enganado."
Erestor colocou a taça na mesa com muito cuidado. "De fato, assim foi, e também por isso devo-lhe desculpas. Um amigo muito sábio lembrou-me de que se deve usar quaisquer vantagens à mão em casos de extrema necessidade."
"Glorfindel foi muito duro com você, meu senhor. Ele é um tanto quanto superprotetor, então eu dir-lhe-ei que não se puna pelo sermão". Ela passou a língua nos lábios, molhando-os. "Além do que, eu aprendi muito com nosso jogo".
"Não foi Glorfindel que me chamou a atenção". Ele encarou os olhos dela por um momento e considerou dizer exatamente quem tinha feito o sermão em questão. Mas a Elfa Silvestre falou antes que ele pudesse decidir-se.
"Jamais esqueceremos este incidente se falamos dele a todo o momento. Se bem que..." Ela olhou ao redor, até o ponto em que um outro Elfo Silvestre estava sentado. "Acho que vou me aproveitar de você, meu Senhor Erestor, e não terei escrúpulos algum em fazê-lo."
Erestor ficou tenso, mas respondeu educadamente. "Se há algo em meu alcance que posso fazer por você, tem apenas que me dizer."
Ela aproximou-se dele, e o que sussurrou ao seu ouvido surpreendeu Erestor profundamente.
"Diz-se que você é um dos grandes mestres em sabedoria ainda nestas praias." Ela recuou o corpo apenas o necessário para encará-lo nos olhos. "Ensinar-me-ia por um tempo, Mestre Erestor?"
Erestor deixou que seu fôlego escapasse em um suspiro aliviado, e sorriu. "O que quer aprender?"
Eámanë mordeu o lábio inferior e olhou para o teto, perdida em seus pensamentos. "Tudo."
"Tudo levará um tempo bastante longo."
Ela fez um barulho de impaciente irritação. "Eu sei. Mas você me perguntou o que eu quero aprender, não o que vai me ensinar."
"É verdade. O que vou ensinar-lhe?"
"Porque não descobrimos fazendo?"
"Eu preferiria ter uma idéia do que lhe é mais importante, para que possamos focar as lições nestes assuntos antes de seu retorno aos Salões de Thranduil."
"Eu não tenho pressa em voltar para casa." Ela suspirou. "Esta é a primeira vez que tenho uma chance de ver o mundo além das fronteiras como se podia antes de a Sombra chegar. Eu pretendo aproveitar a oportunidade antes de voltar à casa de meus pais."
"A noite foi bastante longa". Erestor pensou no longo desespero da Guerra do Anel. "Você deve aproveitar a luz."
"Aproveitarei," ela afirmou baixinho, olhos brilhando. O belo rosto estava tenso e quase duro. "Acredite-me, eu aproveitarei."
N.A.:
1- Os Elfos da Floresta eram geralmente desconfiados e isolados. Não se encontra muitos registros de interações entre eles e as outras nações élficas. Nesta fic, foi preciso uma claustrofobia braba para empurrá-los para Imladris depois de mil anos acuados em seu território, lutando contra Dol Guldur (vide ensaio no capítulo um, ponto três). Portanto, o medo de Erestor e Eámanë de ter danificado ainda mais esta aliança tão frágil é bastante compreensível.
