Capítulo 4: À procura do Extraordinário
'Sabemos o que somos, mas não o que podemos ser'. Shakespeare.
"... A Primeira Era terminou com a Grande Batalha, na qual o Exército de Valinor destruiu Thangorodrin e derrotou Morgoth".(1) Erestor olhou por cima de seu livro para achar Eámanë com o olhar perdido no horizonte. Ainda que completa falta de interesse fosse comum em pessoas que estudavam História Antiga, ela havia pedido para ser ensinada. Fazendo um esforço para ser paciente, ele fechou o livro e cruzou as mãos por cima do mesmo. "Gostaria de sair e despedir-se de seus amigos? Os Elfos do Reino da Floresta partem na alvorada."
"Não, muito grata". Ela suspirou, endireitou-se na cadeira e olhou fixamente para Erestor por um longo tempo. As suas bochechas estavam coradas, mas Erestor não sentia caridade alguma no momento, não o bastante para diminuir o desconforto dela. Poucos estudantes inatentos achavam sua complacência. Mas ela o surpreendeu ao perguntar, "Fale-me de sua terra, Erestor. Como era Ost-in-Edhil?"
"Perdão ?"
Ela corou ainda mais e desviou o olhar, dedos ocupados a enrolar uma mecha dourada. O movimento estava deixando-o positivamente enervado. O Conselheiro estava a ponto de segurar-lhe as mãos inquietas.
"Perdoe-me se sou muito ousada, mas você me disse que perguntasse sobre qualquer coisa que me deixasse curiosa. Eu estava a conversar com Elrond e o assunto surgiu, mas ele me disse que perguntasse a você. Que você tinha nascido lá, e que conhecia a cidade melhor. Eu gostaria de saber como era a cidade... digo, eu sei o que cantam a respeito dela, mas gostaria de saber como ela era de alguém que andou em suas ruas e viveu lá. Como era a cidade, realmente?".
Os olhos dele perderam o foco enquanto Erestor revivia sua vida na cidade do Gwaith-i-Mírdain, ou mais especificamente o fim dela.
"Ost-in-Edhil era um lugar belíssimo", ele falou. "Os Mírdain – povo de Celebrimbor – construíram uma grande cúpula de vidro e metal sobre o Grande Salão no centro da cidade. Quando o sol brilhava, incidia sobre os cristais que foram comprados dos Anões e pendurados na cúpula. A chamávamos Casa dos Arco-íris". Erestor sorriu. "Provavelmente não sou a melhor pessoa para se perguntar. Era pouco mais que um rapaz quando a cidade veio abaixo. Ainda assim"- ele inclinou a face um pouco para o lado, escondendo-se – "eu me lembro bem."
"E eu, eu sou o pior tipo de Elfo que há. Não devia ter perguntado. Olhe só, você está com aquele semblante outra vez." Ela falou com pesar, e mais uma vez abaixou os olhos.
"Semblante? Que semblante?" Erestor perguntou, preocupado. "Há algo estranho no meu semblante?"
"Nem tente discutir comigo nesse assunto, Mestre. Sim, um semblante esquisito. Posso apostar que você é capaz de safar-se de muitas reuniões difíceis com esse ar enigmático, mas sou uma pessoa dura e não o deixarei escapar assim tão facilmente."
"Todos têm memórias que não gostam de lembrar, embora seja talvez benéfico arejá-las de vez em quando".Ele estudou a Elfa diante de si. "Uma pessoa dura? Certamente não. Endurecida com pesares e tribulações, como tantos outros. Mas você não é dura."
Eámanë virou-se e sustentou-lhe o olhar. Na suave luz da manhã ela era adorável, Erestor surpreendeu-se a reparar, toda rósea e dourada. Os olhos azuis eram ao mesmo tempo diretos e misteriosos. Naquele instante Erestor compreendeu que, embora estivessem juntos todos os dias, e a pupila fosse de uma franqueza quase desastrosa, ela era uma pessoa completamente desconhecida.
"Você nunca viu a nossa cidade, não é mesmo? Taur-e-Ndaedelos. Ah, pois as pessoas chamam a floresta de Floresta das Trevas hoje em dia, mas dentro das fronteiras ela é linda, Erestor. Fomos para o Norte, para longe de Dol Guldur. O Necromante nos atacou com tamanha violência que não havia defesa possível no sul. Amon Lanc é muito aberto, com exceção da Fortaleza Negra. Então nosso senhor construiu seu palácio dentro das montanhas, perto do rio. Uma ponte simples leva até o palácio, e somente as ervas e flores a decoram. Lá há um grande portão de ferro que abre ou fecha segundo a vontade de Thranduil. Mas lá dentro, ah, Erestor, lá dentro! Túneis e corredores sempre iluminados e brilhantes e tudo vibra de vida e energia."
Ela sorriu para ele, vendo se seu artifício tinha sido bem-sucedido. "Eu falo demais, não é mesmo? Seguirei seu conselho, um pouco de ar fresco me fará bem."
"Não!" Erestor quase pulou de sua cadeira, ao ver o pitéu ser-lhe tirado assim de repente. "Não, você não fala demais. De modo algum. Foi fascinante. Não que eu queira mantê-la longe de seus amigos; mas se tiver vontade, eu estaria muito interessado em conhecer mais sobre sua pátria. Os Elfos Silvestres sempre foram um mistério, até mesmo entre os Elfos."
"Um golpe duro para meu orgulho, mas a verdade é a verdade." Ela ergueu-se. "Espero que este fato mude em breve, agora que há paz novamente. Talvez eu mostre-lhe a beleza da minha terra natal algum dia, se você ainda estiver interessado."
"Eu gostaria disso," ele respondeu, levantando-se também. "Na verdade, se a senhora estiver de bom grado..."
Ela gargalhou. "Eu achei que estávamos além das formalidades, Erestor. Enganei-me?"
"Não, de fato não. Se puder me fazer uma cortesia, eu gostaria que me contasse mais sobre o Reino da Floresta."
"Uma espécie de intercâmbio?" Ela reclinou por sobre a grande mesa de mogno entre eles e apertou-lhe a mão. "Eu ficarei feliz em prestar-lhe este serviço. Mas agora creio que abusei da sua boa-vontade e o deixarei em paz por algum tempo."
Eámanë deixou a biblioteca e encaminhou-se para o pátio. Quase um mês tinha-se passado desde o aniversário da Senhora Arwen e a maioria das comitivas estava partindo de volta a seus lares.
Eámanë tinha aproveitado todo momento disponível para travar novas amizades. Haldor dos Portos Cinzentos era um dos seus favoritos, por sua mente e língua afiada. Ele não se importou em travar discussões intermináveis com ela, nem deixou com que Eámanë se sentisse tola ao fazê-lo. Quando ele partiu para os Mithlond, presenteou-a com uma miniatura de navio esculpida em madeira-de-lei.
Não tendo sido precavida o bastante para trazer consigo presentes a mais para distribuir entre novos amigos que encontrasse no caminho, Eámanë deu-lhe a sua bainha com detalhes em prata. Embora esta tenha sido um presente de aniversário de seu pai, Galiond, ela não se arrependeu, pois se despediu certa de haver feito um amigo e aprendido várias histórias de tempos há muito perdidos.Uma troca mais que justa.
Muitos dos Elfos que passeavam pelos corredores e trocavam gracejos com ela nos Salões de Fogo faziam parte destas histórias. Orophin, por exemplo, estava sempre pronto para aprontar todas, e freqüentemente Eámanë era o alvo bem-humorado das suas tramas. Ela ficou chocada quando Lindir casualmente comentou na fama do guardião.
Sem falar em Glorfindel. A princípio ela ficara lisonjeada com suas atenções e liberalidade. E então ela ficou seriamente preocupada com a possibilidade de o matador de Balrog ter uma queda por ela; como poderia qualquer mulher dizer não a um Elfo como ele? Glorfindel era belo além da sua habilidade em descrever com palavras, e corajoso, e alegre e sábio e... Mas por algum motivo não havia nenhuma centelha de atração. Por sorte, enquanto os dias passavam ficou claro que ele a via apenas como uma amiga querida. Ainda que fosse extremamente superprotetor.
Eámanë percebeu que por pouco não entrara no mundo dos sonhos quando se viu face a face com um Nessimo muito sério, sem saber como seus pés o tinham achado. Ele era um grande amigo de seus pais e também dela, mas o bom Nessimo discordou veementemente em deixá-la na Última Casa Amiga. Se dependesse dele, ela voltaria para casa com o rabo entre as pernas e nunca mais poria os pés fora do país. Mas o pai e a mãe de Eámanë tinham lhe dado licença e suas bênçãos para que seguisse os desejos de seu coração. E mesmo que não o tivessem feito, Eámanë era honesta o suficiente para admitir que teria seguido a estrada de qualquer forma.
"Não mudará de idéia, amiguinha? Ainda não é tarde demais."
Ela abraçou-o, fortemente. "Nunca é tarde demais para voltar para casa, mas talvez chegue o dia em que é tarde demais para sair. Não me tenha raiva por isto, Nessimo."
"Não gosto da idéia de deixá-la para trás". Ele deu um passo para trás, libertando-se, e examinou a face dela. "Mesmo tua aparência já é outra."
Ela puxou uma mecha do cabelo, enrolou-a. "De fato? De que maneira?"
"Não tenho certeza ainda." Ele cerrou o cenho. "Terás cuidado?"
"Nessimo, eu estou na Casa de Elrond."
"Não me contrarie." Nessimo virou-se e gritou algumas instruções de última hora para um outro Elfo da comitiva deles, depois a encarou novamente. "Eu voltarei assim que possível--"
"Nessimo."
"--Para escoltar-te até em casa--"
"Nessimo, eu não voltarei por algum tempo ainda..."
"Com certeza, até lá teu desejo de ver outras terras terá diminuído..."
"Nessimo." Eámanë colocou suas mãos nos ombros dele, apertou-os. "Não é um capricho meu."
"Mas eu quero acreditar que a teremos conosco em breve."
Eámanë olhou para o Elfo que estava colocando a bagagem nos cavalos. Geralmente Elfos não usavam selas, mas elas se tornavam necessárias quando havia sacolas a serem levadas. Ela estendeu a mão para Nessimo e o dirigiu por entre os caminhos do jardim.
"Você sempre terá a mim, Nessimo. Mas eu preciso seguir meu próprio caminho a partir de agora."
"Não foi sempre assim?" Nessimo parou a ambos perto da estátua de Ereinion Gil-Galad. Ele abriu a boca para soltar uma tirada, mas o som suave de passos élficos se aproximando o silenciou. "Manda notícias."
"Mandarei."
Nessimo beijou-a na fronte e voltou para junto dos outros Elfos Silvestres no pátio. Eámanë permaneceu onde estava, olhando a frenética atividade e se perguntando se algum dia ela entenderia os estranhos caminhos do mundo.
"Teu amante está perturbado com a vossa separação. Não deves culpá-lo por isso."
"E chamam-me de intrometida." Ela deu um risinho malicioso. "Já lhe explicaram o conceito de privacidade?"
Glorfindel parou de andar, estando ainda a alguns metros dela. "Não me pareces mui agravada, nem pensei que deveria medir minhas palavras contigo. É raro poder falar o que se pensa para alguém, sem ter de calcular as conseqüências. Agrada-me que eu possa fazê-lo contigo."
"Não, não estou com raiva, Glorfindel." Ela sorriu e apontou um banquinho de madeira, a beira do caminho de pedras do jardim. Eles sentaram-se em silêncio.
"Então me deixa ser intrometido ainda uma vez mais, minha amiga, e dizer-te que não há tesouro na Terra que valha uma rixa com teu amado."
"Não há tesouro na Terra que valha a negação da sua própria identidade, ou pelo menos é o que meu pai me diz sempre. Eu procuro lembrar-lhe essas palavras quando me reprime por ser muito barulhenta, ou muito espaçosa."
Glorfindel puxou uma mecha de cabelo para trás dos ombros dela. "Sim, isto é verdade também. Mas, eu te pergunto, não há um meio-termo que possam ambos alcançar?"
A moça roçou o rosto contra aquela mão. "Às vezes eu me pergunto se quero saber o que é isso que se esconde no fundo dos seus olhos quando você me vê... e depois eu me digo que provavelmente não quero saber. Não se a nossa amizade deve sobreviver. Ela é tão frágil ainda, não é?"
Glorfindel retirou a mão, como se queimasse. "Eámanë, temo que me tenhas compreendido mal."
"Não, não creio. Nem acho que você esteja apaixonado por mim, então fique descansado. É apenas que às vezes eu não sei quem você vê... mas este é um problema para outra hora. Se eu lhe disser que não sou a amada de Nessimo, nunca fui, e da parte dele se dá o mesmo... Ficaria em paz?"
"Ele tem ciúmes de ti," ele respondeu, e colocou alguma distância entre os dois. Eámanë suspirou quando percebeu a manobra.
"Sim, e você também, mas isso não significa nada além de amizade. De fato, estou fadada a encontrar sempre amigos zelosos demais!"
"Minhas atenções te incomodaram, então, senhora?" Glorfindel estava tão frio, tão formal e nobre e distante, que Eámanë buscou a mão dele de novo ainda que soubesse que ele não retribuiria o gesto de modo algum.
"Você é um amigo maravilhoso, e eu me considero muito abençoada em chamá-lo assim. Eu cheguei aqui sem nada que me recomendasse além de um favor que meu pai cobrou de Nessimo e o desejo de explorar o mundo, e você me recebeu de braços abertos."
"O que mais poderia eu fazer? Chegaste, encontramo-nos, ficamos amigos. O que há de tão extraordinário nisso?"
Eámanë ficou em silêncio por um momento. "Deixe para lá," ela sussurrou, e logo colocou no rosto uma expressão alegre demais. "De qualquer forma, Nessimo é apenas um bom amigo da família que tem medo deixar o bebê longe de suas vistas, ainda que já tenha passado da hora. Não precisa preocupar-se que venhamos a ficar de mal."
O Senhor Élfico relaxou um pouco. "Eu ver-te-ei amanhã então, quando nos despedirmos dos teus amigos".
"Não, eu já disse adeus".
"Se é assim..." Ele levantou-se do banco. "Talvez queira espantar meu ennui aparecendo nos campos de treino amanhã? Temo ficar fraco e lento, se não praticar constantemente".
"Eis a primeira vez que vejo um Elfo mentir descaradamente", ela respondeu matreira. "Você não teme perder a sua habilidade. Nem um pouquinho".
Glorfindel balançou os ombros. "Vem de qualquer forma. Brincaremos um pouco".
Ela caiu na gargalhada. "Como o meu Senhor ordena, assim será feito".
A.N.:
1 - Citando o Conto dos Anos, Apêndices de O Retorno do Rei.
2- Taur-e-Ndaedelos : EoA diz que significa 'the Forest of the Great Fear', A Floresta do Grande Medo, em Sindarin.
3-Amon Lanc: Nome de uma colina em Rhovannion antes de Sauron invadí-la. Depois passou a chamar-se Dol Guldur, assim como também a Fortaleza que foi construída ali.
4- Salões de Fogo: Salão na Casa de Elrond onde o fogo era mantido sempre aceso. Embora quase não fosse utilizado de dia, à noite os Elfos se reuniam lá para contar histórias e cantar.
5- Haldor dos Portos Cinzentos: ele aparece no Conselho de Elrond como enviado de Círdan. Provavelmente um nobre de algum peso, já que estava representando Círdan.
6- Orophin: Guardião das fronteiras de Lothlórien junto com seus irmãos Rúmil e Haldir. Está com eles quando a Companhia do Anel chega à Floresta Dourada e os acompanha até Caras Galadhon.
PS- Elfo tinha que falar complicado, né? Putz. Elrond, Glorfy e Nessi são Elfinhos mais velhos e experientes. Concordância 'élfica' para eles. Além do mais, Sendo Nessimo líder da comitiva, ele deve ter um 'título de nobreza élfica', ser de uma família importante (embora Elfos só dêem títulos à família real). Eámanë é mais novinha e levada da breca, e não pertence à nenhuma família importante, então a gramática dela é mais relaxada, mais informal. (Putz.)
