Capítulo Seis: Fogo e Fúria.
'Quem será tão medroso que não tenha a audácia para acender o fogo na época do frio?'
William Shakespeare - Venus and Adonis, verso 40.
"Não podes estar falando sério," Glorfindel gritou. O cheiro de couro era forte ainda nele, pois havia retornado a pouco das fronteiras com os Dunedain. "Ninguém te levará até a Floresta das Trevas agora que a Guerra recomeçou. Não podes esperar?"
Eámanë enfiou o último par de calças na bolsa e a fechou. "Da última vez que o Necromante veio a Dol Guldur ele ficou lá por mais de mil anos".
"E pensas em ir para lá!" Glorfindel se posicionou entre ela e a porta. Eámanë ergueu os olhos para os céus; o quarto tinha um terraço mais do que espaçoso o suficiente para ela sair por ali se ele ficasse de guarda na porta. Seria complicado, se Glorfindel provasse ser teimoso, mas na verdade ela sabia que ele deixaria essa tolice de lado em breve.
"Não, eu planejo voltar ao palácio do meu Rei. Não sou tão presunçosa que me ache mais entendida em assuntos bélicos que seus capitães".
"Enfim, algum bom-senso."
"Por isso eu irei entrar no Corpo de Guarda e seguir suas ordens."
"Bem, eu não confio tanto assim nesses capitães," Glorfindel forçou as palavras entre seus dentes e agarrou Eámanë pelos ombros. "Pois me lembro bem de seus serviços. Dois terços tombaram na Última Aliança, não foi?"
"Você precisa tomar bastante cuidado com o que fala de agora em diante, Glorfindel," Eámanë respondeu com o mesmo veneno.
"É suicídio."
"Que seja!" Ela gritou, empurrando-o para trás. Glorfindel nem se mexeu.
"Porque vais de encontro ao perigo, Elwen? Esse caminho leva à ruína!"
"Porque estamos sozinhos, Glorfindel," ela respondeu. Suas unhas enterravam-se nos braços dele tirando filetes de sangue, mas ainda assim suas mãos não relaxavam nem mudavam de posição. "Dois terços perdidos em Dagorlad, você disse. Os sobreviventes tiveram que defender Rhovannion contra o poder que se espalha de Dol Guldur, sem ajuda, por mil anos. E o Necromante atraiu aranhas e trolls, e orcs, e olog hai... Se não haverá reforços, meu Senhor Élfico precisará de todo o seu povo. Eu posso lutar, eu estou entrando para o exército. E isso é tudo o que você precisa saber."
"Tu não vais!" Ele a jogou através do quarto e em cima da cama. "Não te treinei para que fosses para a linha de fogo. Eu apenas te queria a salvo."
Ela jogou o cabelo para trás, mas não se levantou da cama. "E que autoridade você tem sobre mim, além da de um amigo? Será que tem mais poder sobre mim que minha família e meu rei?" Ela rolou e deitou-se de barriga para cima. "Vai me amarrar à cama enquanto a guerra durar?"
"Esta é a melhor idéia que tiveste hoje," ele murmurou, e sentou-se na cadeira ao lado da cama. Glorfindel suspirou. "Por quê, Elwen?"
Eámanë ficou completamente parada. "Está me dando um novo nome, Glorfindel?"
Ele tirou os olhos do chão e sustentou o olhar dela. "Falei mais do que devia."
"Em mais de uma forma," ela concordou, e levantou-se. "Eu não sou ela, Glorfindel."
Ele desviou os olhos. "Não, mas me lembras dela."
Eámanë pegou a bolsa do chão no caminho para a porta. "Eu tenho que ir," ela falou de lá. "Quando isto estiver acabado, se ainda estivermos ambos ainda deste lado do Mar... Gostaria de vê-lo de novo."
"O que te diz teu coração?"
"Por favor," ela falou com desdém. "Não aquele discurso de novo."
Ele soltou uma gargalhada vazia, um som triste e oco. "Vá, minha amiga. Eu te digo, nos veremos ainda deste lado do Mar."
Eámanë virou-se e partiu para os estábulos.
Não havia quem a ajudasse a colocar uma sela leve no cavalo em que se pudesse atar a bagagem. A égua a seguiu a passos lentos enquanto Eámanë pensava furiosamente em um caminho menos perigoso que pudesse tomar entre as Montanhas.
"Que loucura é essa?"
Eámanë pendeu a cabeça para o lado. "Você vai tentar me amarrar à cama também?"
Erestor continuou a olhar para ela, de boca aberta. "Amarrar você? Para quê?"
Ela esfregou a ponte do nariz. "Deixe pra lá. Poderia, por favor, fingir que nós já tivemos essa discussão toda e dar um passo pro lado? O tempo está passando e eu preciso cobrir muito chão antes de descansar minha montaria."
"Onde estão seus acompanhantes?"
"Eu viajo sozinha," Eámanë explicou. "Agora, se dá licença?"
Ele explodiu. Não havia outra forma de descrever o evento. A reação de Glorfindel foi de alguma forma previsível, mas o estudioso conselheiro foi realmente surpreendente. Erestor a alcançou em três passadas rápidas e a jogou por cima dos ombros antes que Eámanë tivesse uma chance de perceber o que estava acontecendo, e já estava a meio caminho corredor adentro quando ela recuperou-se do choque o suficiente para protestar.
"Ponha-me no chão!" Ela tentou alguns murros nas costas dele para dar ênfase. "O que pensa que está fazendo?"
"Será que você ao menos avisou a Elrond que estava de partida? Após todos estes anos em que ele aceitou você em sua casa de braços abertos, você planejava deixá-lo como um ladrão no meio da noite!"
"Pois fique sabendo que me despedi de Elrond!"
Ele só a colocou no chão quando chegaram aos aposentos dele, para grande divertimento dos Elfos que passavam. Erestor chutou a porta, fechando-a na cara deles.
"Bem, pois não se despediu de mim!"
"Eu deixei uma carta," ela disse. "É muito inconveniente, as circunstâncias da minha partida, mas realmente não há tempo a perder."
"Uma carta? Uma carta!" Ele arrancou a capa de supetão, rasgando-a, e a atirou ao chão. Eámanë engoliu em seco, seus olhos esbugalhados. "Sou assim tão pouco para você, que não mereça nem ao menos a cortesia de uma despedida em pessoa? Achei que fôssemos amigos."
"E somos." Ela respirou fundo e aproximou-se dele, mas ele estava tão furioso que ela não ousava tocá-lo. Ao longo dos anos de convivência Eámanë tinha feito com que ele se acostumasse, se não a tocar, ao menos a ter uma maior aceitação a ser tocado. Mas Erestor estava com muita raiva, e ela não tinha coragem. "Sempre houve honestidade entre nós, Erestor. Você sabe muito bem que as outras Casas não virão em nosso auxílio."
"Você não pode saber disso!"
"E a situação é grave o suficiente que Thranduil não pode desprezar uma espada."
"Não pode saber disso, também."
"Eles dizem que o Necromante conquistou ainda mais terras que antes." Ela cutucava o peito dele com o dedo a cada palavra. "Eu vivi com a Sombra à minha porta toda a minha vida. Vi meus amigos todos serem chamados ao Corpo de Guarda Real. Eu tinha que abandonar uma casa que tinha acabado de construir mais de uma vez porque a Guarda não podia mais defender aquele território.Não ouse me dizer que não sei como as coisas são em minha própria terra."
Ele agarrou os braços dela. Ela teria marcas roxas nelas pela manhã. "Eu entendo. Há alguma maneira de dissuadi-la desta tolice?"
Ela balançou a cabeça. "Sabe, uma pessoa fica cansada de ser chamada de idiota. Realmente, não é uma coisa boa de se dizer."
"Não, mas é a que melhor descreve a situação," ele falou. "Eu nunca vi alguém tão teimoso, e olha que encontrei muitos Elfos difíceis..."
"Eu prefiro chamar de lealdade," ela respondeu, gélida. "E não me importo em nomear o que são Elfos que têm os meios para ajudar, mas se recusam."
Ele se recompôs imediatamente. "Então é isso o que pensa de nós?"
"Você o disse, não eu." Ela tentou arrodear Erestor e abrir a porta. "Estava pensando no que seria dito de mim."
Ele se apoiou contra a porta, fechando-a novamente. "É isso que lhe preocupa? O que será dito de você?"
"Não, preocupo-me com o que pode acontecer à minha terra e ao meu povo se não usamos tudo o que está ao nosso alcance."
"Você não serve para guarda," ele protestou suavemente.
"Ah, mas eu discordo," ela disse. "Eu era uma espada bastante boa quando aqui cheguei, antes de Glorfindel decidir ensinar-me seus truques. Acho que estou tão preparada quanto qualquer um pode estar."
"Se você está determinada a seguir por este caminho, não há nada que eu possa fazer para detê-la," ele disse e abriu a porta. "Mas eu pedirei que me dê tempo para arrumar alguns acompanhantes. Com certeza pode esperar algumas horas?"
Eámanë encostou a cabeça na parede. "Estaria em casa amanhã se pudesse, mas acompanhantes não são uma oferta que eu possa recusar. Sim, esperarei um pouco."
"Eu a encontrarei no pátio principal à terceira hora."
Ele atravessou a porta, mas a voz dela, quase um murmúrio de tão baixa, impediu que fosse muito longe. "Obrigada Erestor."
"De nada," ele falou, meio sem jeito. E saiu dali o mais rápido que suas longas pernas élficas o podiam carregar.
N.A. :
1 – Elwen: estrela-donzela (donzela das estrelas) ou elfa-donzela. 'El'é um afixo que significa estrela, mas às vezes o afixo 'eld-', elfo, se confundia com 'el', especialmente entre os Mortais. Em élfico, se faziam frases inteiras juntando afixos em uma palavra, sujeito-verbo, nome-adjetivo, etc. também nomes de pessoas, lugares, e por aí vai. Também, um dos nomes para Elfos é Povo das Estrelas, porque quando acordaram ainda não havia sido criados o Sol ou a Lua, e eles se enamoraram perdidamente das estrelas.
E eu não conto quem ela é nem tão cedo... :P
2- Nomes e nomeações: um Elfo podia ter muitos nomes... Assim que ele nasce, o pai dá-lhe o nome em uma cerimônia pública. Esse é o nome do oficial do elfo enquanto ele cresce. Também a mãe pode dar-lhe um nome, geralmente com implicações proféticas sobre sua personalidade ou destino, enquanto é criança ou jovem. Quando o elfo tem uma certa idade, ele pode escolher para si um nome pelo qual será conhecido dali em diante. Os apelidos ou nomes familiares eram nomes particulares, reservados para família e amigos íntimos. Usar um nome familiar sem ser parente ou amigo chegado do Elfo era uma enorme quebra de etiqueta, pior do que meter o cotovelo no prato de sopa ou cantar a esposa do dono da casa... Também o Elfo pode receber um nome de seus amigos, súditos ou amante (alto lá, amante no sentido 'aquele que ama, namorado'). Ereinion Gil-galad, por exemplo. O nome dele era Ereinion. Gil-galad foi um título que alguém, provavelmente um súdito ou conselheiro chegado, deu-lhe referindo-se à sua lança que era muito bonita, sua ponta afiada brilhando no alto, mortífera. Atenção zoadoras de plantão: Pode tirar bem muita onda que a Lança de Gil-galad é famosa...
Galadriel. O pai dela colocou-lhe o nome Artanis, nobre donzela (ô falta de imaginação... só porque a bichinha era princesa? Aliás, Arwen traduz na mesma merda. Deve ser de família. Putz). Mas a mãe dela a chamou Nerwen, mulher-macho em bom Português. Aposto que agora você entendeu o lance do nome profético... Celeborn, o marido dela, era uma alma romântica e deu-lhe o nome Altáriel, donzela coroada em radiante grinalda... Transpondo pro Sindarin, Galadriel. E por falar em Celeborn, o nome dele é uma versão Sindarin do Telerin, Telporno. Fica pior em Quenya: Teleporno. Ih, tio, ainda bem que você escolheu adaptar no Sindarin. Imagina a zoação que os guardas de Lothlórien iam tirar...
3- Rhovannion: nome de toda a região abaixo das Montanhas Cinzentas e a Leste das Montanhas Sombrias, onde fica a Floresta das Trevas.
4- Aranhas das Florestas das Trevas: as descendentes de Ungoliant (vide N.A. capítulo dez, ponto dois, Arien e Tilion). Estas criaturas malignas tem mais ou menos o tamanho de um fusca (sem contar as patas), são extremamente inteligentes, dotadas de fala, e andam geralmente em grupos.
5- Olog hai: Os Silvestres se ferraram quando o Necromante se mudou pra lá, amiguinhos.Tudo que não presta foi parar na Floresta das Trevas - As aranhas, os goblins, os orcs, trolls e também os olog hai. Assim como os orcs são uma deturpação dos Elfos, e os Uruk-hai uma versão 'revista e atualizada' dos orcs; os Trolls são uma versão deturpada dos Ents, aquelas árvores inteligentes mega-fortonas de Fangorn, e os olog-hai são uma versão 'revista e atualizada' dos trolls. Os Olog Hai são melhores que os trolls comuns em tudo: mais fortes, mais inteligentes, mais destros, e até suportavam a luz do Sol, o que não acontecia com os outros (No comecinho do filme, Bilbo conta pras criancinhas hobbit uma parte da história de O Hobbit, onde os trolls que queriam comer a ele e seus treze companheiros anões morrem tranformados em pedra quando o sol nasce)!
Na última batalha do Anel, em frente aos Portões de Mordor, Aragorn encontra alguns trolls identificados como 'trolls das montanhas'; mas aquela batalha se deu em plena luz do dia, portanto estes deviam ser Olog hai porque não viraram pedra!
5- Mulher no serviço armado: vide N.A. do capítulo dois, ponto dois, em Mulheres élficas e o combate armado.
Eámanë está dizendo que, se a Floresta das Trevas não receber reforços, a coisa estará tão feia que Thranduil não vai argumentar contra o ingresso das mulheres no exército. A situação na Floresta das Trevas já terá chegado ao nível 'estado de calamidade pública'.
