Capítulo Sete: Nos Ermos
'A vida é uma pedra de amolar: desgasta-nos ou afia-nos, conforme o metal de que somos feitos.' George Bernard Shaw
O Conselheiro Chefe realmente voltou à terceira hora, seguido por dois elfos carrancudos que se esquivaram da cortesia de uma introdução. Eámanë sentiu-se mal em perguntar seus nomes diante de sua indiferença notória, e perguntou-se como eles tinham sido recrutados para escolta. Eles não pareciam nada felizes com seu trabalho.
Eámanë virou-se para soltar sua égua, amaldiçoando o Necromante e as estrelas da sorte dela por ter sido emparelhada com Sombrio e Rabugento. Eles eram tão simpáticos que ela estava a considerar mandá-los de volta assim que atingisse a Velha Estrada da Floresta. Ela era uma Silvestre, e tinha vivido nas fronteiras selvagens do Reino da Floresta por tempo bastante para arriscar-se a se esgueirar até em casa sozinha. Todos os atalhos, todos os sinais de perigo lhe eram tão familiares como o Élfico Verde...
... E por isso mesmo ela sabia que dispensar escolta na floresta deturpada quando havia guerreiros élficos disponíveis era o cúmulo da loucura. Eámanë suspirou.
E ficou de queixo caído ao ver Erestor levando seu cavalo até uma árvore bem na entrada do pátio. Um animal tranqüilo e amistoso, ele começou a mordiscar a grama imediatamente, como um pitéu raro antes de uma viagem longa. Ele parecia saudável e tinha uma pelagem brilhante, e suas rédeas eram simples, sem o espalhafato que a população de Imladris geralmente preferia.
De fato, quem não o conhecesse teria tomado Erestor por um simples Elfo Silvestre naquela tarde. Ao invés de túnicas e capas ricamente adornadas de costume, ele usava roupas simples de lã escura. Uma longa capa cinza escondia o brilho metálico na sua cintura e os anéis da malha embaixo da jaqueta de couro. Para um olho destreinado, ele era apenas um viajante que ia ao Sul com pouca bagagem, que agora checava para ver se não havia esquecido alguma coisa. Acima de tudo o mais, sua roupa deveria tê-la avisado que Erestor estava se juntando à comitiva. Eámanë soltou um suspiro de alívio.
"A roupa lhe cai bem, meu Senhor, se me permite a franqueza," ela debochou, os olhos brilhantes de riso contido. Era maravilhoso ter ao menos um acompanhante amigável nesta viagem; os outros eram nada mais que estranhos para ela, e não dos mais simpáticos.
"Oras, obrigado", ele respondeu, com um sorriso tímido. "Estou convencendo como Elfo Silvestre?"
Eámanë estudou-o de alto a baixo.
"Ainda há espaço para melhorias", ela disse com uma voz perfeitamente séria, "mas está bom o bastante. E duvido que alguém que não seja um Elfo possa ver a diferença. Eles tendem a nos colocar em um único grupo. O que pode me dizer de nossos companheiros de viagem? Eu não troquei palavras com eles, além de uma saudação casual".
"Eu provavelmente não sou a melhor pessoa a perguntar. Meus deveres freqüentemente me mantêm ocupado demais para socializar. Mas do que ouvi falar deles, são corajosos e de bom coração. Tenho certeza que serão bons companheiros de viagem".
Eámanë recebeu um olhar perturbador de Sombrio e engoliu sua opinião pessoal em seco.
"Alguém trouxe bálsamos de cura? O que tenho comigo não é suficiente para um grupo".
Erestor balançou a cabeça e fez um gesto indicando Rabugento ao seu lado. "Morin aqui foi aluno de Elrond, ele será nosso curador caso haja necessidade. Agora venha. Estamos desperdiçando a luz do sol".
"Parece-me que teremos algum tempo mais para passar em companhia um do outro, embora as circunstâncias sejam tristes. Fico feliz em tê-lo ao meu lado, Mestre Erestor. Lembro-me que é muito bom com a espada". Eámanë disse com um sorriso.
Eámanë deu um sinal de cabeça em direção a Rabugento ao lado de Erestor e subiu em seu cavalo. Sombrio já estava cruzando os portões de Valfenda. Ele estava dando o passo para o grupo, e o passo seria rápido. A estrada para Imladris era escondida, mas ainda assim recebia visitantes bastantes durante o ano, e as primeiras léguas da estrada eram visíveis o suficiente para olhos élficos que Eámanë não precisava prestar atenção nela. Ela guiou o cavalo ao longo do Bruinen, e eles tomaram a direção de Eregion.
A noite veio e passou e ainda os Elfos cavalgavam, silenciosos como sombras.
"Parem!" Eámanë gritou, e Erestor percebeu que ela se cansava. Era óbvio no modo como seus ombros estavam levemente caídos, sua pele um pouco menos luminosa. E eram círculos escuros embaixo de seus olhos? Ela tentou ajeitar-se na sela, relaxando os músculos das costas. "Vocês sabem de algum bom lugar para acampar? Logo será noite e os cavalos estão cansando. Não poderíamos procurar abrigo?"
Morin franziu o cenho. "Nossos guardiões mantêm as fronteiras relativamente pacatas, mas ainda assim eu não gosto da idéia de descansar aqui. Acho que devemos continuar."
Sombrio obviamente concordava, mas não se deu ao trabalho de vocalizar sua resposta.
"Partamos então, antes que as montarias percam a força que lhes resta", Eámanë disse, e pôs sua égua a andar novamente. A montaria forçou-se a obedecer, mas apenas conseguiu um trote arrastado.
Erestor levou seu cavalo para perto dela, para que pudessem conversar sem gritar. "Eis o que mais me preocupa", ele disse. "Embora toda a comitiva tenha a resistência do próprio Oromë, os cavalos estão se desgastando. Devemos parar ao pôr-do-sol e deixá-los descansar."
Com isso, ele levou a cansada criatura adiante e ficou à frente do grupo. Erestor estudou o céu, lambeu o dedo e o colocou ao vento. Ele não havia sido completamente franco, pois sentia que o delicado equilíbrio na moral da comitiva, em particular entre Eámanë e Hallatir. Ainda assim, o vento estava ficando mais forte, e enquanto o sol se punha sob as longínquas águas do Oceano Oeste a temperatura caía. As Montanhas Sombrias estavam cobertas por nuvens e seus flancos, por uma grossa camada de neve fofa. Não haveria necessidade de bandos de orcs e goblins ensandecidos para fazer da jornada difícil e perigosa.
O vento passou de frio a gelado quando as luzes esmaeceram. O crepúsculo nas montanhas era glorioso, neve branca se transformando em ouro e depois bronze, antes de adquirir a cor de sangue fresco. Quando ela se tornou rubra Eámanë estava inquieta, pois a passagem era perigosa, e um grupo pequeno assim teria dificuldades em se defender.
Erestor decidiu que já era hora para descansar quando ele viu que o cavalo da dama, Tempestade, estava parando apesar da amazona ordenar que marchasse. A égua fora criada para longas caminhadas, era dócil e bem-treinada, mas uma longa marcha forçada até os Salões de Thranduil estavam além de suas forças. Os Elfos desmontaram em uma clareira no sopé das Montanhas e Eámanë imediatamente tirou as bagagens de seu animal garantindo-lhe um repouso muito merecido.
Ela estudou o grupo que aproveitava o acampamento gélido como podiam, rezando para que não parecesse como um veado assustadiço. "Acho que vou catar uns gravetos para acender uma fogueira, Senhor Erestor."
"Não acendam fogo algum", Hallatir ordenou. "Estamos perto demais dos goblins para isso".
Eámanë tentou não tremer, e levou seus olhos desolados para Erestor. Aquela questão toda de lealdade e vassalagem começava a ficar muito complicada e ameaçadora, e ela ardentemente desejava ser menos teimosa e esconder-se em Valfenda até que a guerra acabasse.
Erestor olhou por cima das sacolas que descarregava de sua sela. "Quantas vezes devo dizer", ele falou gentilmente, "Não sou seu Senhor. Só Erestor basta."
Eámanë concordou, o queixo tremendo. "Minhas desculpas, Erestor. Eu só... parecia apropriado, que coisa estranha. Espero que me perdoe o deslize."
Ele olhou ao redor para o acampamento, bem desfalcado já que não havia fogo. Os outros membros da comitiva tentavam bravamente não transparecer o frio que sentiam, mas seguravam as capas bem rentes aos corpos. Erestor não gostou nem um pouco da situação.
Ele se aproximou de Eámanë. "Preciso de uma palavra com você", ele disse, apontando para um arbusto mirrado longe do acampamento.
"Eámanë e eu vamos reconhecer a área em redor do acampamento para ter certeza de que estamos a salvo em passar a noite aqui", ele falou para os outros. "Acomodem-se como puderem. Refeições com três pratos principais a caminho!"
Ela caminhou lentamente na direção do arbusto que ele havia indicado, e observou a área em redor. Eámanë tinha um mau pressentimento. O melhor que Rabugento pôde encontrar, o local era longe de ser defensável. Muito aberto, muito vulnerável, arriscado demais.
Mas era o abrigo que tinham.
"Eles deveriam aconchegar-se uns aos outros",ela disse para quebrar o silêncio. "Para proteger-se do frio. Temi sugerir isso porque homens são tão orgulhosos e detestam contato físico mesmo sacrificando seu bem-estar".
Erestor balançou a cabeça e estudou o horizonte. Eámanë puxou a capa mais perto de seu corpo.
Ele parou perto de um arbusto de azevinho. "Não gosto nada disso", ele disse. "Estamos tão expostos, aqui no planalto, e perto demais das montanhas..." Ele tinha certeza de que Eámanë sabia dos orcs e goblins que ainda vivia nas cavernas profundas, herança da Ruína de Durin.
"Não somos fortes o bastante para rechaçar um ataque", ela concluiu.
"Podemos mover-nos em algumas horas. O exercício nos manterá aquecidos".
Eámanë mordeu os lábios para não soltar um gemido à menção de retomar a jornada tão em breve. "Sendo assim, deveríamos aproveitar este breve descanso. Não vejo perigo algum por agora. Venha, vamos descansar um pouco". Ela parou por um momento, e sorriu para ele. "Eu lhes diria para abraçarem-se, mas é melhor que o faça, meu amigo. Acho que tem uma melhor chance de sobreviver à fúria deles. Você e eu podemos compartilhar calor um com o outro antes de retomar a estrada em algumas horas".
Ele ficou ruborizado. Eámanë casualmente tomou seu braço, nem tanto para aquecer-se, mas para estar mais próxima. "Você é um bom amigo, e muito mais sensato que qualquer de nós aqui". Ela olhou de relance para onde Morin tocava uma melodia suave, sentado a uma certa distância de Hallatir, ambos esquentando as mãos com baforadas de ar quente. "Embora não haja lá muita competição..." ela completou com desdém.
Erestor olhou para o alto, pedindo paciência. "Comporte-se", ele ordenou, e deu tapinhas embaraçadas na mão dela em seu braço. "Com ou sem fogo, acho que seria prudente manter vigias aos pares esta noite. Sejamos os primeiros? Morin e Hallatir são guardiões experientes, mas eu preferiria tê-los vigiando na calada da noite, e eu enquanto minha mente cansada ainda consegue se concentrar".
"Devo confessar que também estou cansada, mas deixe que eles descansem primeiro. Ficarei feliz em ter sua companhia na vigília; não tenho certeza se poderei achar repouso tão perto da montanha".
Ela tremeu de frio, e olhou para baixo a fim de ver se a capa se tinha aberto. Uma brisa gelada penetrava em sua roupa. Erestor estava inquieto.
"E também", ele continuou, todo inocência, "precisaremos manter-nos aquecidos..."
Eámanë ergue tanto as sobrancelhas que chegou a quase doer, e teve que se controlar para não cair na gargalhada. Até que enfim! Ela estava começando a pensar que o Elfo teria de ser ameaçado à ponta de faca para poder até mesmo piscar para uma dama...
Ele era muito atraente, o danado. E engraçado. E sábio. E leal. E paciente… um movimento no acampamento alertou-a que ela tinha se posto perto demais do Conselheiro; Hallatir sentou-se mais empertigado e tentava achar uma posição em que pudesse observar o casal sem ser muito óbvio.
Ela encarou Erestor nos olhos. Ele era muito querido e nunca exigiu dela mais do que ela poderia ou queria dar. Eámanë não desejava que em anos futuros ele olhasse para trás e pensasse que ela estava brincando com ele, porque ela não estava. Há anos que ela se sentia atraída. Eámanë teria que ser completamente cega para não se sentir assim. Ainda assim, será que era real este sentimento? O que era o verdadeiro desejo de seu coração? Era prudente que ela procedesse adiante, quando estava indo para a Floresta das Trevas e unir-se à luta contra o Necromante por Valar sabem quantos longos anos?
Ela lutou contra seus sentimentos confusos por alguns segundos, mas depois respondeu bastante séria, "Vamos voltar ao acampamento. Você é um Elfo em uma missão perigosa. Mas não se preocupe, eu o protegerei se eles se revoltarem contra você".
"Fico feliz em sabê-lo", Erestor disse. "O que pode um pobre estudioso de história fazer contra tão violenta fúria?"
Eles caminharam ao redor dos arbustos, e não vendo nada estranho, voltaram para o acampamento.
"Eu me lembro que o pobre estudioso de história conseguiu me dar uma bela surra, meu amigo. Estava dolorida por um dia após o nosso pequeno encontro no campo de treinamento", Eámanë zombou, feliz porque a atmosfera estava leve novamente e não mais se sentia sombria e ansiosa.
"Está tão calmo agora" Erestor falou. Ainda que o silêncio oprimisse um pouco, ele considerou que seria mais fácil escutar algo que porventura ocorresse enquanto estivessem vigiando.
"É um local deserto", Eámanë respondeu, esfregando os braços para espantar o frio da noite, "ouviremos qualquer problema que se aproxime melhor assim".
"Se eu não temesse tanto ser ouvido por seres maliciosos," ele disse, "eu sugeriria uma cantoria para alegrar nossos corações... acha que podemos? Se cantarmos baixinho?"
"Se for baixinho... eu cantarei e você lhes dirá para aconchegarem-se. Temo ter ficado com a parte mais fácil, Erestor."
Ela esfregou os ombros dele, meio tímida, furiosa consigo mesma quando sentiu o calor espalhando-se em suas bochechas. Adiantando-se à frente de Erestor antes que ele pudesse questioná-la. Eámanë sentou-se e colocou o arco perto de seus pés, dedicando-se por algum tempo a esfregar os membros adormecidos e tentar devolver-lhes algum calor.
N. A. :
1- Élfico Verde: Nandorin (vide N.A. capítulo cinco, ponto oito, Nota sobre a linguagem dos Elfos)
4- Orome: O Caçador dentre os Valar, irmão de Nessa, de extrema força e poder, guerreiro temível. Foi ele que encontrou os Elfos pela primeira vez, e tambem ele quem, de acordo com a lenda, trouxe os cavalos mearas para os ancestrais dos rohirrim (que o reeverenciam sob o nome Béma).
3- Goblins: Há quem diga que é outro nome para orc, embora haja indicações de que os goblins são uma subespécie um pouco menores.
4- Ruína de Durin: O balrog de Moria. Em 1981 T.E., Náin I é assassinado no reino dos anões Sob-a-Montanha. Seu pai Dúrin VI tinha sido assassinado no ano anterior, provavelmente pelo Balrog que os anões despertaram quando cavavam cada vez mais fundo atrás de mithril, que se tornava cada vez mais difícil de conseguir. Também se diz que os anões libertaram o Balrog, mas que ele teria sido desperto pelo crescente poder de Sauron.
Em 2680, portanto 20 anos adiante do tempo da história neste capítulo, os orcs começarão a construir suas 'fortalezas secretas nas Montanhas Sombrias, com o intuito de barrar todas as passagens para Eriador. Sauron começa a povoar Moria com suas criaturas'. Conto dos Anos, em O Retorno do Rei, J. R. R. Tolkien.
Oras, Moria estava abandonada (sem contar com o Balrog, hê hê) por um longo tempo. Os anões se escafederam dali, e com razão. É bem razoável achar que mesmo antes de começarem a construção das fortalezas os orcs já começavam a se reunir nas Montanhas, e a aterrorizar as criaturas incautas.
