Capítulo Oito: Um beijo para sonhar

"Há o amor... que nasce não sei onde, vem não sei como e dói não sei porque..." Carlos Drummond de Andrade.

Eámanë se deu ao luxo de cantar uma balada, baixinho, notando que Sombrio e Rabugento se tornavam menos distantes e amedrontadores conforme ela cantava. Quando a última nota morreu no ar noturno, eles até pareciam amigáveis.

Erestor deve ter percebido, também, porque ele tinha um ar de quem pede desculpas quando a chamou. "Temos que patrulhar de novo", ele a lembrou, gentilmente.

"De novo?" Eámanë perguntou, olhando para trás para os guardiões. Ela balançou a cabeça em uma tentativa de dissipar os pensamentos que a distraíam, e disse, "Você tem razão. Vejamos se eles ficam mais à vontade em... aquecer-se um ao outro, se não estamos por perto". Ela sorriu (cuidando de o fazer fora do raio de visão dos guerreiros). Em alguns aspectos, todos os homens eram iguais, independente da raça.

"Ao menos nós temos a luz das estrelas", Erestor falou quando Eámanë e ele já estavam andando ao redor do acampamento. "Embora o vento que vem das montanhas esteja gelando meus ossos, as luzes de Varda são nossas aliadas. Se houver algo nestas terras, nós os veremos, espero, antes de sermos vistos".

Eámanë olhou ao redor e suspirou. Sim, as Montanhas estavam cheias de criaturas odiosas, mas a paisagem enluarada era magnífica. "De fato. A ausência de fogo nos dará alguma vantagem, se os Ellyn estão realmente... aquecendo-se. Diga-me, Erestor, algum deles lhe deu problemas quando você fez a sugestão?" Eámanë falou matreira, sem a menor vergonha.

"Eles pareciam estar com frio demais para oferecer qualquer resistência, como você diz, à idéia", Erestor respondeu. "De fato, Elfos têm usado este método para aquecer-se por séculos!" Ele próprio deu uma olhadela para trás, embora o campo já estivesse escondido de sua vista por uma árvore enorme. "Não entendo o motivo de tanta confusão..."

Eámanë apenas ergueu uma sobrancelha dourado-pálida, olhando-o nos olhos. "Eu lembro-me bem de um Elfo de Imladris que ficou vermelhinho feito pimentão com o menor toque de dedos, Erestor. Não devia condenar os outros guardiões tão rapidamente".

"Aquela cozinha tem uma ventilação horrorosa",ele disse, impávido. "Eu continuo a dizer que estava fazendo calor".

Eles continuaram a reconhecer o território, circulando na mesma rota de sua primeira ronda. A lua provia iluminação suficiente para os Elfos, e o único barulho era o das cigarras e um morcego solitário caçando o jantar.

"Seus deveres na Floresta das Trevas são parecidos com isto?" Erestor perguntou. "Confesso que sou um Elfo de papel e pena, mais do que espadas ou atos heróicos!"

Eámanë sorriu e considerou defendê-lo de si mesmo, mas deixou passar. Erestor era assim, tão absurdamente modesto que todos se sentiam à vontade com ele. "Na verdade, não. A vida nas fronteiras nunca é calma, mas não buscamos o perigo, e os guardas do rei mantêm a área o mais segura possível. Produzimos a maior parte dos produtos que a Corte consome no Palácio Real. Cuidamos da floresta, vigiamos o corte não-autorizado de lenha... muitos Homens Mortais arriscam-se a cortar as árvores da Floresta achando que o rei não saberá". Ela soltou uma gargalhada baixinha. "Mas as novas se espalham depressa, entre aqueles que sabem como passá-la adiante. Com a Sombra se espalhando, precisávamos freqüentemente empunhar armas, então Ada e Maglin me ensinaram o manejo da espada e do arco". Ela tornou a olhar para o Elfo, lutando contra o rubor que se espalhava por seu rosto sem razão. "Não segure no lado afiado".Ela imitou alguém que Erestor não conhecia, provavelmente um dos parentes. "Mas eu já disse, você até que não é nada mau, para um Elfo de papel e pena, meu - ... Erestor."

"Oras, muito obrigado," ele disse. "E agora que o susto passou, devo dizer que eu creio que você não terá muitos problemas nos anos que estão por vir – você será uma guardiã valorosa." Ele sorriu, o mais leve movimento dos cantos de seus lábios, lembrando-se do primeiro combate de ambos, há tantos anos passados, quase duzentos anos já, nos campos de treino de Imladris. "A maioria das donzelas élficas contentam-se em perseguir o estudo da sabedoria, a forja ou as artes de cura, ou casar e tornarem-se mães. Você é... surpreendente, para nós de Valfenda, mas certamente não é alguém a se subestimar."

Ele tornou para encarar Eámanë, que mantinha os olhos fixos no chão. "Espero não tê-la ofendido?" perguntou.

"Não se surpreenda comigo, Erestor. Eu tive pouca oportunidade de tomar um outro caminho. Nunca tive aptidão para dama-de-companhia, por exemplo; há curadores mais que suficientes em Taur-e-Ndaedelos e eu nunca achei um Elfo que me aceitasse como sou. A perspectiva de negar a minha essência para entrar no matrimônio como uma sombra submissa sempre me foi inaceitável."

"Entendo-lhe muito bem," Erestor falou. "Lembro-me de quando era uma criança, e vivia não muito longe daqui, acharam-me bastante estranho. Eu não era artesão, nem nunca desejei aprender a arte."

Ele pausou para observar um arbusto, mantendo a farsa da vigília. "Suponho que você e eu ambos escolhemos o nosso destino."

"Talvez." Ela suspirou, melancólica. "Mas acho que o correto é dizer que você e eu ambos escolhemos partir em busca do nosso destino. Você já o encontrou, Erestor? O seu Destino?"

"Como saberia se tivesse?" Ele perguntou. Seus dedos tocaram de leve nos dela, uma pressão suavíssima, como se tivesse acidentalmente tocado nela ao balançar os braços.

Eámanë imediatamente olhou para baixo, no ponto onde os corpos tinham se encontrado, tentando forçar sua mente cansada a analisar os fatos. Não era possível. Ela estava flertando com o mais tímido de todos os Elfos Noldor. E ele estava flertando de volta. E mais, ele parecia querer saber se o coração dela estava aberto ao seu.

"Como qualquer um saberia? Me disseram que o Destino simplesmente chega, sem avisar," ela respondeu, lutando consigo mesma. "Que só há um modo de descobrir..."

"E qual é este modo?"

Eámanë perdeu-se naqueles olhos cinzentos, escuros na penumbra da noite, selando a sua escolha em um segundo e condenando tudo o mais ao Vazio. Um momento de loucura, por que não? As Lendas estavam cheias de momentos de loucura... Ele parecia bastante interessado. Valar sabiam que ela estava também. "Tentando", ela respondeu simplesmente, aproximando-se com movimentos lentos que dariam a ele chance de recuar se quisesse. Ela sabia que as batidas de seu coração podiam ser ouvidas nas cavernas de goblins mais profundas.

E antes que Erestor percebesse, muito menos tivesse mesmo considerado seus atos, suas mãos tinham-se enroscado nas mechas douradas de Eámanë enquanto ele a beijava, puxando ela para perto de si enquanto eles caíam contra uma árvore. Se todos os orcs das Montanhas Sombrias tivessem atacado naquele momento, ele nem teria notado.

Ele não beijava como um Elfo tímido.

Eámanë esperava por um beijo suave, uma exploração delicada de corpos e mentes, uma continuação do joguinho em que ambos indulgiam até então. Erestor aparentemente não pensava nisso. Quando os lábios se separaram, ele sorriu ao notar a expressão surpresa dela.

"O que acha que eu lia quando jovem, enquanto devia estar aprendendo a forjar metais..." ele sussurrou em seu ouvido, antes de devorá-la com um outro beijo. A trajetória das estrelas, o som da planície à noite... tudo desapareceu, e havia apenas ela, e ele, às bordas do Fim Do Mundo... alguém deveria tê-la avisado, alguém deveria ter decretado ilegal que um Elfo sussurrasse ao pé do ouvido de uma donzela élfica se não fosse seu esposo. A Elfa ficava com idéias estranhas...

"Duvido que sua leitura fosse aprovada por seus tutores, Erestor," Eámanë sussurrou também, sem fôlego, sentindo-se tola e feliz ao mesmo tempo. "O que é que você lia, em nome de tudo que é verde na Terra-Média?"

"Poesia," ele respondeu, na maior cara-de-pau. "Todos os épicos sobreviventes de Valinor, a Lenda de Beren e Lúthien... eu era um leitor bastante voraz."

Eámanë ergueu a sobrancelha de novo, mas o poder do gesto havia perdido completamente seu poder. Erestor apenas olhava para ela como um filhotinho que pede atenção, firme em sua convicção de não haver feito nada de errado. "Eu posso acreditar nisso. Que você não aceite meias medidas quando toma uma decisão".

Erestor baixou a cabeça novamente, passando os lábios sobre os dela ah tão suavemente, depois virou o rosto e contemplou a escuridão ao redor deles. "Não deveríamos", ele falou. "Eu tenho deveres – você marcha para a guerra. Não deveríamos..."

Mas ele não se afastou dela.

Se alguém a perguntasse, depois, o que ela pensou naquele momento, Eámanë não poderia responder. "Decerto", ela respondeu friamente, desenlaçando-se do seu companheiro, e não sentiu necessidade de adicionar mais palavra alguma. Pois tudo o que deixasse seus lábios seria veneno.

Era quase absurdo, o modo como a mágica se esvaiu, como eles estavam novamente perdidos na imensidão gelada, longe de casa. Ele se perguntou se havia sonhado tudo.

"Eámanë..."

Mas ele não podia achar as palavras certas para falar. Então ficaram ambos parados ao luar, duas estatuas pálidas, incapazes de ir, hesitando em permanecer, pesando as palavras não ditas no silêncio interminável. "Diga, Erestor..." as palavras dela eram roucas, trêmulas, enquanto ela tentava segurar o choro. "Se você arrependeu-se, podemos fingir que nada aconteceu".

"Eu..." Não. Seria a negação de tudo em que ele acreditava. Como ele poderia ser um líder bom e justo se se envolvia com um membro de sua equipe? Havia tensão suficiente como estavam, seria perigoso... Ela tinha sido sua aluna até a semana passada. "Sim". Sua voz era tão morta, tão vazia, que ele próprio duvidava do som. "Talvez devêssemos".

Ela virou-se de costas para ele, talvez por não querer que ele a visse transtornada. Ele adiantou-se e colocou a mão em no ombro dela. "Sinto tanto, Eámanë".

Eámanë não pode evitar, não com a condescendência irritante na voz dele, a piedade mal-disfarçada nas palavras, ela deu um tapa violento na mão dele, e o encarou, furiosa demais para lembrar-se das lágrimas caindo livremente. "Precisamos terminar a ronda", ela falou, e seu tom era perfeitamente igual ao dele. Vazio e morto. "E não checamos o quadrante sul ainda".

"A ronda... sim, eu me esqueci", ele falou, como quem sai de um sonho confuso. Em um dos arbustos adiante, uma coruja deu um vôo rasante e apanhou uma pequenina criatura em suas garras. Erestor e Eámanë caminharam rígidos, mantendo espaço entre si, ambos olhando apenas para o terreno ao redor. Ele não ousava olhar mais nos olhos dela, temia encontrar o ódio em seu rosto.

Mas a visão da dama em lágrimas o deixava furioso –consigo, com ela, com toda a situação. "Eu não quis que as coisas acontecessem assim", ele falou afinal. "Entenda, uma divisão entre nós, e estaremos ainda mais vulneráveis. Não podemos... ainda que eu lamente". E ainda assim as palavras estavam todas erradas. Frias, impiedosas, condescendentes... Que tipo de pessoa ele era? A resposta não mais importava, pois enquanto ele estivesse em baixa na estima dela, pouco o mais importava.

"Você deve ser imparcial, eu admito", ela constatou, neutra. "E... Bem, nós dois sabemos que seria uma complicação enorme. Eu não deveria ter-me imposto… e não há futuro nenhum… " Ela tentou achar as palavras certas. "Não se sabe onde o vento irá soprar, mesmo", Eámanë falou por fim, mas sua mente ainda repassava a cena repetidamente, como um anão bêbado em uma taverna. O acampamento estava novamente visível, e a última coisa que Eámanë queria eram dois Ellyn curiosos perguntando o que houve. "Esqueçamos tudo". Embora ela duvidasse, e já via a continuação da bela amizade como um sonho perdido. Talvez fosse melhor assim; ela estava tendo idéias acima de sua posição e meios novamente. Já era hora de pôr os pés no chão.

Erestor olhou em redor do círculo grosseiro, e quase sorriu pensando na sincronia dos eventos. Alguns minutos atrás, estavam brincando sobre se os guardiões estariam se aquecendo ou não... E agora, toda a alegria era uma memória, trancada por trás de uma barreira de silêncio e frieza.

"Estamos ambos cansados", ele falou. "Morin, se puder tomar esta vigília agora, eu apreciaria".

Eámanë passou pelos Elfos e jogou-se ao chão, usando a capa como cobertor e fechando os olhos imediatamente. Por Elbereth, ela estava tão cansada! E confusa. E magoada. Com um suspiro fundo, ela se deixou adormecer. Os Valar sabiam que ela precisava. Todos aqueles dias levando-se ao limite estavam começando a aparecer. Então, apesar da solidão e tristeza, Eámanë adormeceu rapidamente, um sono sem sonhos.


A.N.: Alô! Mini-ensaio! (Os avisos usuais ainda se aplicam…)

Pois é, danou-se tudo!

Segundo Leis e Costumes dos Eldar (Uma parte muito famosa de Morgoth's Ring, um dos doze livros de Historia of Middle-earth, que trata exatamente de sexo, casamento, família e filhos entre os Elfos. Não me olha assim não, eu nunca li o HoME, mas me passaram o LCE pela internet. Eu sou nerd mas não estou em fase terminal ainda, viu? Bem... pelo menos eu acho que não...), Os Elfos evitam casar-se e ter filhos em épocas de guerra e incerteza. Vejam bem, evitam, não se abstêm. Eámanë está indo para uma guerra que promete ser muito longa (lembrando: Última guerra Silvestres X Necromante durou mais ou menos mil anos, e isso porque ele fugiu de Gandalf, indo se refugiar no Leste...). É provável que ela venha a morrer (ir para os Salões de Espera, seja). Erestor sabe que é muito pouco prudente se envolver com uma pessoa com estas perspectivas...

Eámanë já deixou claro que ela vai ficar ao lado de seu povo, os Elfos da Floresta, na longa guerra contra Dol Guldur que vai (re) começar. Erestor é o Chefe dos Conselheiros de Elrond. O lugar dele também está claro: ao lado do seu Senhor Élfico, em Valfenda. Se Eámanë não pode ficar lá então Erestor, por motivos de dever e lealdade, não pode ficar com ela porque ele mesmo não pode sair de Imladris.

Além do mais um relacionamento Aluno/Professor ainda que, como a Nim lembrou muito bem, seja uma puta fantasia nossa (Ah, qual é, todo mundo lembra de pelo menos UM professor gato que ficava secando no colégio...), pega mal até na sociedade élfica.

Quase todos os Elfos sobre os quais eu li eram orgulhosos, de um jeito ou de outro. E isso vale tanto pros Noldor metidos quanto pros Silvestres esquentadinhos ('mais perigosos e menos sábios'... ). Ou seja: Danou-se. Em Verde e Amarelo. (Ou seria em Verde e Ouro?)