Capítulo Nove: Desgraça Pouca É Bobagem
'Embora me custe, embora não possa, embora rebente, embora morra.'
Santa Teresa de Ávila
Eles cavalgaram da alvorada até muito depois do crepúsculo. Um longo e cansativo dia se entrelaçava tão intimamente com o próximo que Eámanë perdeu a noção do tempo, e de fato muitas vezes pensava que se perdera em um sonho, vivendo o mesmo dia várias vezes. O dia em que Erestor a rejeitara.
No quinto dia Hallatir permitiu que se acendesse uma fogueira, apenas o suficiente para assar algumas lebres-do-mato antes de ser apagado.
Foi o bastante. Eámanë não precisou do grito áspero de "De pé! De pé! Algo vêm em nossa direção!" de Morin para sabê-lo – ela estava descansando, e as vibrações de muitos pés pesados marchando no solo fez com que ela se pusesse de pé e ajeitasse o arco. Afinal chegara o momento de comparar técnicas em arco-e-flecha.
Ela estava apenas vagamente consciente dos outros Elfos fechando um círculo ao seu redor como que para protegê-la, enquanto os inimigos apareciam em seu campo de visão. Mas teve pouca oportunidade de sentir-se ultrajada com a superproteção deles, pois o grupo de goblins e orcs aproximava-se rapidamente, alguns no lombo de wargs. A Elleth mordeu os lábios com força ao perceber que as bestas eram maiores do que tinha imaginado, quase do tamanho de aranhas jovens, e rápidas também. Assim que entraram em seu alcance ela começou a atirar. Os wargs eram seu principal alvo. Suas mãos tremiam quando Eámanë mirava, mas as flechas não se perdiam na escuridão. Com um alvo assim tão grande, era difícil de errar.
"Goblins!" ela gritou, apesar de saber que os outros eram guerreiros experientes e não precisavam nem um pouco da opinião dela. "E há reforços chegando!"
Eámanë, inexperiente, usou todas as flechas na aljava antes que a primeira linha de goblins estivesse a cinqüenta passos dela. Os cavalos, ela percebeu, haviam fugido conforme foram treinados –ou alguém os ordenou que partissem? – pois não eram de nenhuma utilidade ali.
Hallatir e Morin estavam mostrando por que Erestor os havia chamado. Sombrio atirava rapidamente enquanto Morin usava duas facas longas nos goblins. O grupo dos goblins era desorganizado e pouco hábil, como tais criaturas freqüentemente são. Ainda assim, tinham a vantagem nos números, e os Elfos precisaram de um bom tempo para estabelecer um delicado equilíbrio.
Erestor ouviu o som inconfundível de uma flecha fincando-se no tronco apodrecido de uma árvore não muito longe de sua cabeça. Os goblins tinham um arqueiro. Sua espada estava presa na bainha. Ele não conseguia tirá-la, às vezes o frio tinha esse efeito. Ele deu um puxão e arrancou a espada em um feito de mais força bruta do que habilidade, e correu a toda velocidade contra o arqueiro.
A besta tinha algum juízo, ao menos, e tentou acertá-lo com sua última flecha antes de erguer uma adaga rudimentar de seu cinto. Erestor moveu a espada com toda a força e a jogou no meio do peito de seu oponente. Em um combate de verdade o guerreiro nunca mira no peito, mas além, para realmente enterrar a espada no adversário. O orc desviou o ataque com um movimento para cima da adaga, mas não conseguiu sucesso total. O impulso fez com que a adaga deslizasse pelo comprimento da espada, alem do punho e braço de Erestor, e atingir a junta do ombro com força. O Elfo grunhiu de dor e cambaleou. Aproveitando a oportunidade, o orc agarrou Erestou pelo pescoço e o puxou acima do solo. Hallatir, vendo Erestor em perigo, esperou por um tiro limpo e focou sua mira na besta que tentava estrangular o conselheiro enquanto Erestor tentava puxar a espada com o braço que anda se mexia. A flecha atingiu o pescoço do orc e ele caiu em espasmos aos pés de Erestor. Ao menos ele teria algum tempo.
Erestor decidiu, num capricho súbito, que havia uma cesta de jóias lá em Valfenda de que ele não precisava.
Ele rolou. A ferida do goblin não era fatal, mas era o suficiente para rendê-lo incapacitado. Erestor terminou sua agonia em um único golpe curto, e ele caiu e morreu.
"Obrigado, Hallatir", Erestor sussurrou, antes que uma outra besta raivosa viesse lutar com ele. O Conselheiro conseguiu dar uma olhadela na única Elfa Loira do grupo, preocupado que ela pudesse sentir-se forçada a atos impensados ou temerários para impressionar os guerreiros. Eámanë estava se comportando muito bem até então, mantendo pouca distância de Hallatir e não cortejando risos desnecessários. Normalmente, orcs não eram páreo para um grupo bem-armado, mas estes tinham estatura e eram muitos. Vários dentre eles usavam armaduras roubadas em espólio – e Erestor tomou cuidado especial para que os que exibiam armaduras de Valfenda tivessem um fim curto e doloroso. Apenas quando ele afundou a ponta da espada no peito do último orc que percebeu como estava cansado.
Havia carcaças por todo o lado no acampamento arruinado. Os Elfos precisavam partir a toda pressa antes que mais orcs aparecessem.
"Estão todos inteiros?" Morin perguntou, sem fôlego. Os outros fizeram que sim com as cabeças. "Temos que partir".
Eles estavam a pé agora, já que as montarias voltaram para casa, para a segurança de Imladris. Os Elfos rapidamente cataram as flechas que ainda prestavam, pegaram as bolsas que não se perderam com os cavalos e começaram a marcha forçada noite adentro. Não haviam andado mais que duas horas quando Hallatir ergueu as mãos ao ar, pedindo silêncio.
E então o grupo percebeu as leves vibrações outra vez. Eámanë nem ao menos se deu ao trabalho de reclamar enquanto jogava as mochilas ao chão e retomava a postura de tiro ao alvo.
Havia mais, muito mais orcs desta vez. Eámanë ouviu Hallatir murmurando algo sobre como os batedores poderiam ter tido oportunidade de alertar a presença élfica nas Montanhas e teve de suprimir um grito. Eles haviam lutado com os batedores?
Ela ficou sem flechas bem mais cedo desta vez, antes de poder fazer um estrago considerável no grupo de orcs, e desembainhou a espada com uma sensação de fascínio horrorizado. Ela não havia mentido para Erestor, sua técnica com a espada era excelente. Aquele embate era apenas uma amostra do que a vida dela seria daquele momento em diante. Ela resistiu a vontade de sair da formação e correr atrás dos orcs.
"Eámanë!" Ela ouviu Erestor instantes antes de um orc enorme atirá-la no chão e pular em cima dela. Seu cabelo desgrenhado e sujo caiu por sobre o rosto dela quando a criatura rosnou, um rosnado que cedo se transformou em um grito de dor quando a Elfa enterrou uma adaga escondida no seu coração negro. A luta continuou enquanto Eámanë esforçava-se para tirar o cadáver de cima de si. Se alguma outra besta a atacasse enquanto estava presa lá embaixo, ela teria dificuldades imensas em defender-se. O pânico ameaçava engoli-la inteira, mas Eámanë finalmente conseguiu desvencilhar-se e voltar para junto dos companheiros.
Gira, finta, enfia, bloqueia, desvia, revida... Repetidas vezes Eámanë teve que corrigir a pegada na empunhadura, pois suas mãos suavam e era difícil segurar com firmeza. Ela agitou a espada e recuou, até que encostou-se em alguém, e girou veloz para cortar-lhe a cabeça fora. Mas era Morin, e ela já tinha passado da fase em que lhe tinha rancor. Então eles lutaram, um guardando as costas do outro, derrubando orc atrás de orc. Como a Vida era irônica, Eámanë pensou.
Onze... doze, treze... quatorze...quinze... De algum modo Eámanë ficava mais calma quando concentrava uma parte de sua atenção em avaliar os resultados de seus esforços. Mas ela sabia que para cada orc que ela matava os guerreiros de Imladris tinham matado ao menos dois outros.
Ela lutou até que seus braços tivessem cãibras, lamentando que os guerreiros tivessem que depender de alguém que estava tão obviamente fora do nível deles. Uma vez Morin teve que tirá-la da mira de uma flecha de orc, e duas vezes ela quase tropeçou nele, quando os goblins atacavam com violência.
A luta continuava, mais violenta e difícil que a primeira, e Tilion estava alto no céu quando os Elfos finalmente conseguiram equilibrar as forças novamente. Eámanë estava começando a achar que eles até poderiam sobreviver à noite quando um vulto enorme veio do nada e a lançou longe dos outros.
Alguém gritou, um Elfo. Ela não conseguia identificar a voz, ou lembrar-se como algo tão grande e pesado a tinha surpreendido. Sua espada havia caído em algum lugar à direita e Eámanë ficou desarmada exceto pela adaga, que ela desembainhou com dificuldade. Mas quando Eámanë tinha a adaga em mãos e conseguiu se por de pé, trêmula e cambaleante, já estava tudo acabado. O último orc morreu com um suspiro engasgado. Eámanë inclinou-se para poder se apoiar na carcaça de um warg.
Ah. Deve ter sido isso a coisa enorme.
"Está ferida?" Erestor perguntou. Ele estava tão estranho, ela pensou.
"Eu..." ela passou a língua nos lábios, tentou sentir os membros cansados. Não havia sensação alguma, nem mesmo dor, apenas o grande vazio e a sonolência. "Não sei", sussurrou.
Erestor girou o corpo dela firmemente, para que pudesse examinar-lhe os olhos à luz das estrelas, e pequenas explosões de luz dançaram atrás de suas pálpebras. Ele examinou sua cabeça e pescoço com dedos leves e ágeis. Os dedos estavam encharcados de sangue quando os retirou de sob a cabeleira dourada. Eámanë franziu a sobrancelha, tentando lembrar se as mãos de Erestor estavam ensangüentadas antes.
"Eu preciso examinar-lhe", ele falou, suas mãos já percorrendo o corpo dela, alerta a qualquer gemido que pudesse sinalizar ferimento. Eámanë mal conseguia sentir o toque dos seus dedos.
"Que seja", ela murmurou, cambaleando de novo. "Cabeça 'tá pesada".
"Você bateu com ela em alguma coisa", ele esbravejou. Oh, bem, agora ela sabia porque tinha tanto sangue. A menos que o sangue fosse dele, ou de um outro Elfo. Talvez até de um orc. Não, não, orcs tem sangue preto. "Sua visão está escurecendo?"
"Nã," ela respondeu, aérea. "Mut'cho sono. Posho durmir?"
Erestor ficou ereto tão rapidamente que ela teve que se encostar inteiramente no warg pra não cair. "O que disse?"
"Dishe..." Ela não chegou a completar a frase, e despencou ao chão com um barulho surdo. Depois, quando conseguiu juntar forças suficientes para abrir os olhos novamente, Morin e Erestor discutindo à distância. Mas não conseguia discernir as palavras.
Morin balançou a cabeça, enfático. "Não há nada que possamos fazer por ele". O curador não olhou na direção do cadáver de Hallatir, mas apanhou as mochilas. "Quer voltemos a Imladris ou continuemos nossa jornada deve ser discutido com a luz do sol. Agora o que precisamos é de um lugar seguro onde os goblins não me atrapalhem. Então poderei atender a dama e dizer-te algo sobre a condição dela".
"Ela precisa de ajuda agora", Erestor argumentou. "Certamente não é prudente deixá-la inconsciente quando ela sofreu um ferimento na cabeça?"
"Se demorarmo-nos, arriscamo-nos a encontrar um terceiro grupo a nos atacar. Agora há apenas dois de nós que podem erguer uma espada, Mestre Erestor".
Erestor concordou, relutante. Ele não gostava da situação, mas Morin estava certo. O Conselheiro distanciou-se para abrir uma cova rasa e estreita para Hallatir, separado dos goblins e wargs. Quando terminou viu que Morin tinha pegado Eámanë em seus braços e estava esperando-o.
"Siga-me", Erestor disse em um sussurro estrangulado, e partiu em carreira desesperada. Galhos os espetavam às vezes e rasgavam suas roupas. O terreno se tornou mais e mais pedregoso e irregular enquanto eles saíam das trilhas fáceis e se aventuravam pelos caminhos mais selvagens dos Ermos do Azevim. Quando suas pernas não mais obedeciam, Erestor ordenou que parassem e se abrigassem embaixo de uma caverna rasa. Sobre eles, os picos das montanhas Sombrias não permitiam a visão das estrelas-guia, e o vento frio que de lá descia era inflexível. Mas as rochas proviam algum abrigo, ao menos. Ele colou os ouvidos no chão, mas não podia sentir nada além das batidas desordenadas de seu próprio coração. Erestor pensou que tivesse ouvido os cascos de cavalos correndo velozmente por sobre a terra, mas logo o sutil som sumiu, e não havia trilhas de pegadas que seus olhos aguçados percebessem.
Ele ergueu-se e encarou o que restava da comitiva. Morin já estava a examinar Eámanë, sem se importar com o feio corte e seu próprio braço. Erestor, alarmado, tirou um pequeno frasco de sua própria mochila. Não seria nada bom se Morin adoecesse com um ferimento envenenado. Ele sentou-se ao lado do curador e olhou o corte de perto.
"Pode movê-lo?" Erestor perguntou, preocupado que Morin estivesse ferido seriamente.
"Sim, mas não muito", ele respondeu. "Dói se mexo demais".
"Provavelmente, terá um belo hematoma".Erestor amaldiçoou-se por não ter visto o ferimento antes, para que pudesse ter carregado Eámanë em seus braços e Morin as mochilas, enquanto corriam pelas montanhas. "Mantenha-o sob as ataduras e sarará". Ele ergueu-se e deu uma tapinha leve no ombro de Morin.
"Você está me atrapalhando", Morin falou, ainda concentrado na Elfa. "Preciso de luz e espaço para trabalhar".
Erestor novamente ralhou consigo mesmo, mentalmente. "Posso lhe dar espaço, mas não ouso prover mais luz".
"Passa-me o concentrado de casca de salgueiro e o bálsamo limpador".
"É sério?"
"Acho que não, mas saberemos com certeza quando ela acordar. Obrigado". Morin pegou os frascos. "Descansa. Eu despertar-te-ei se algo acontecer".
Erestor pensou em fazer ao menos um protesto por forma, mas na verdade estava exausto. Ele havia visto mais ação em uma noite que em todo o século passado, e de qualquer forma Morin ficaria acordado para cuidar de Eámanë. Seria melhor se ao menos um deles estivesse descansado caso houvesse problemas.
Ele afastou-se um pouco e deitou-se na capa de viagem desdobrada. Erestor bebeu do cantil, e só então checou a si mesmo, procurando algum corte ou dor leve que indicasse ferimentos. Ele não tinha nenhuma, exceto alguns hematomas onde orc o havia atingido. Nenhum ferimento físico, ao menos. Mas agora que o sangue esfriava em suas veias Erestor podia permitir-se lamentar por Hallatir, embora não o conhecesse profundamente. Uma morte inútil, um desperdício deplorável. Erestor lutou contra lagrimas vãs, e perguntou-s se ele poderia realmente descansar. Havia um limite para o abuso físico e mental que ele suportava, e em pouco tempo Erestor adormeceu profundamente. Não houve sonho algum, e ele estava feliz por isso. Talvez sua mente estivesse cansada demais para produzir um.
Eámanë acordou sentindo-se tão nauseada que ela queria vomitar, mas não tinha energia para virar-se. Seus braços doíam muito – ela tinha uma cãibra persistente e violenta no braço do arco, um corte que ardia horrivelmente no torso e todos os músculos doloridos. Uma mão gentil limpou-lhe a fronte suada. "Como te sentes?"
"Até aqui, tudo bem", ela sussurrou, corajosa e grata pelas cordas vocais estarem funcionando perfeitamente. "Conseguimos sobreviver".
A voz de Morin tremia bem de leve quando ele falou de novo. "Estou feliz por estares bem". Ele fez com que ela bebesse uma substância vil além de qualquer descrição, e logo ela descansava novamente. Eámanë deixou-se mimar, e até fingiu que adormecia para que o curador pudesse descansar também. Quando Morin finalmente sucumbiu, ela abandonou a farsa, enrolou-se na manta e engatinhou até a entrada da gruta, lutando contra a náusea, para observar o ambiente.
O sol da manhã banhava o sopé coberto de neve das montanhas com um manto dourado.
Erestor acordou com o sol em seu rosto, tendo dormido por toda a noite como uma pedra. Ainda estava frio, mas Arien já aquecia o ar. Ele bebeu um pouco de água e olhou para o acampamento. Tudo em seu devido lugar. Ele virou-se para a entrada da caverna, e bem perto da saída estava uma figura de cabelos dourados montando guarda sozinha, enquanto Morin, exausto, finalmente conseguia seu sono muito merecido.
Já era hora de tirar alguns assuntos a limpo. Notando que a Elfa Silvestre não o havia percebido ainda, Erestor aproximou-se, até que ele estava próximo o bastante para estender as mãos e acariciar as mechas esvoaçantes. A expressão dela era guardada, impassível, embora sem dúvida Eámanë já soubesse de sua presença. Se Morin estava dormindo, ela já estava fora de perigo.
"Eámanë?"
Ela quase pulou quando o ouvir chamar seu nome, pois estava com tanto sono... Com um grande esforço de vontade ela resistiu a puxar a adaga, e virou-se para encará-lo.
E decidiu então que não estava pronta ainda para ficar frente a frente com Erestor. Não quando se sentia tão vulnerável, tão assustada e cansada.
"Hallatir está reconhecendo terreno?"
"Não," Erestor respondeu. Eámanë fechou os olhos, uma única lágrima deslizando sobre sua face. Ele observou aquela gota com uma atenção quase fascinada. "Ele não... ele se foi."
Ela suspirou, baixou a cabeça. Eámanë não queria olhar nos olhos de Erestor, ainda não. Não até que construísse um grosso escudo e pudesse agir com a indiferença e distância que seu orgulho exigia, e manter as emoções longe de seus olhos.
"Não lamente por aqueles cuja hora chegou", ele disse, gaguejando levemente. Maldição, ele achava que tinha adquirido o controle total das palavras. "Ele era um Elfo honorável, e morreu de forma honrosa".
Eámanë soltou uma risada desdenhosa. Ela estava muito pouco impressionada com o discurso.
"Não tive chance de conversar com Morin sobre sua condição... a cabeça ainda dói?"
Eámanë pensou em numeras respostas possíveis àquela questão.Os músculos doíam, lembrando-lhe que ela estava viva ainda. O zumbido em seus ouvidos era apenas um efeito colateral da concussão. Mas o peso enorme em seu peito tinha uma causa toda especial.
"Acho que está mais pesada que dolorida. Tive alguns arranhões sem importância; talvez haja um corte ou dois perdidos por aí. Mas não os sinto, então não podem ser sérios. É um bom sinal, não?"
"Sim, de fato", ele respondeu. "Um bom sinal, sim".
Ela encarou os olhos cinzentos de Erestor por apenas um instante e achou-os tão guardados e cautelosos quanto os seus. Eámanë tornou a virar-se na direção do planalto. Já estava acontecendo, o abismo entre eles crescendo. Não haveria mais conversas e provocações, olhares carregados de intenções silenciosas e brincadeiras comuns.
Talvez fosse melhor assim.Eámanë tendia a esquecer sua posição, e ela sabia disso. Eáspenna, Eá das nuvens, era como seu irmão a chamava. Erestor remexeu-se, procurando uma posição confortável para sentar na rocha dura. Ela ouviu um gemido abafado.
"Está ferido?"
Erestor era um Mestre da Sabedoria, não era? Para onde tinham ido todas as palavras doces da poesia ou as firmes de cartas enérgicas, agora que precisava tanto delas? Ele respondeu à pergunta calmamente, porque não conseguia lidar com a tensão velada entre eles.
"Alguns hematomas, onde aquele grandalhão me bateu. Tive sorte de Hallatir estar olhando por mim, de fato – não tenho talento para a arte da guerra".
Eámanë forçou-se a estudar Erestor dos pés à cabeça, detestando o ar de frescor confortável que ele possuía, que tão fortemente contrastava com o pobre estado dela.
"Eu estava sem flechas quando você caiu. Foi bom termos um outro arqueiro entre nós. E não se preocupe sobre ser um guerreiro, pois provou que sabe sê-lo quando é necessário".
Erestor deu um sorriso tímido. "Farei o possível para manter-me vivo", ele disse. "Nós ainda temos muitos perigos pela frente... a aparição deste grupo de orcs não é um bom sinal. Espera-se que tenham nos atacado por acaso, e que não haja uma fortaleza orc nessas terras..." ele estreitou os olhos para melhor ver o Passo do Chifre vermelho, ao longe. "Estamos perto do Chifre Vermelho. Esta estrada é perigosa".
"De fato", Eámanë concordou, tremendo apesar do ar estar fresco ao invés de gelado. "Ela o é. E também perdemos os cavalos, meu senhor. Qualquer estrada agora será difícil de seguir a pé".
Erestor encarou-a. "Então teremos de marchar bem rápido".
A resposta soou ríspida, mais dura do que ele intencionava, mas de fato Erestor tinha suas dúvidas. Ele, um Mestre de Sabedoria, derrotado por logísticas. Ele se calou, irritado. O seu comportamento não deixava dúvidas, até mesmo Erestor estava cansado e irritável, mesmo que tentasse escondê-lo.
"Como queira, meu senhor", ela respondeu fria, e ergueu-se para ir acordar Morin. Eles já haviam demorado muito, e a jornada tinha que continuar. Eámanë não queria ficar mais nem um minuto naquele lado das Montanhas Sombrias.
Erestor decidiu que Sindarin era uma linguagem por demais limitada para todas as imprecações que lhe eram devidas. Que as divisões do grupo se danassem, ele sentia uma afeição genuína pela Elfa, e ao contrário do ideal Noldor do Guerreiro Inflexível, remoía-se porque sabia que a tinha magoado.
"Não o perturbe ainda", ele ordenou. "Ele está tão cansado quanto nós, e teve menos descanso. Esperaremos até que ele esteja bem o bastante para seguir viagem".
"Achei que você ordenaria que retornássemos".
"Este caminho está fechado para nós. Ademais, Elfos não desistem assim, tão facilmente. Há mais poderes em ação neste mundo que o mal, e eu sinto que é importante que continuemos".
Eámanë piscou, surpresa. "Sendo assim, você talvez queira descansar mais um pouco também. Eu manterei a vigília, desta vez, pois não consigo andar pelo Caminho dos Sonhos esta manhã".
Avisá-la que ela não tinha condições de manter guarda, e que todos os exércitos de Dol Guldur provavelmente estariam a menos de vinte metros antes que ela os percebesse, seria cruel demais. Então Erestor apenas enroscou-se na capa e disse, "E nem eu. O que me diz de tomarmos o café da manhã? Acho que tenho algumas frutas e queijo ainda para acompanhar o pão".
Sem mais palavras Eámanë remexeu em sua própria mochila e passou-lhe um pão, tomando outro para si, enquanto Erestor cortava o queijo em fatias. E sem palavras eles montaram guarda, velando os sonhos conturbados do curador.
N. A. :
1- Wargs - aparentados com os lobos, wargs eram bestas enormes, inteligentes e que podiam falar, associados aos poderes do mal. Em SdA eram chamados os 'lobos de Isengard' (A Torre de Saruman). A Comitiva chega a encontrar alguns deles entre Caradhras e Moria, no livro.
2- Arien e Tilion - Antes de os Homens Mortais acordarem, Yavanna, uma dos Altíssimos, (ou Exaltados, os Oito mais poderosos entre os Valar) e responsável pela vegetação em geral criou duas Árvores, Laurelin a Dourada e Telperin a Prateada. Laurelin florescia por doze horas, iluminando o mundo inteiro com sua copa radiante, e depois se fechava; e então Telperin fazia o mesmo, mas sua luz era mais suave. Quando Melkor roubou as Silmarilli de Fëanor, ele levou consigo a Aranha Ungoliant (As aranhas da Floresta das Trevas são descendentes suas, embora menos poderosas), que sugou a luz e a seiva das árvores até que mirraram. Quando a confusão se acalmou, os Valar pediram a Fëanor as jóias para iluminar o Mundo no lugar das árvores e ele negou-se, não sabendo que elas tinham sido roubadas por Melkor. Niennor, outra dos Altíssimos cuja função principal é lamentar os nossos inúmeros erros e ensinar a piedade e a temperança, chorou por sobre as árvores e de cada uma delas nasceu um Último Fruto, que foi posto em carruagens e elevado ao mais alto dos céus para iluminar o mundo: o Sol é o fruto de Laurelin guiado por Arien; e a Lua, fruto de Telperin guiado por Tilion. Portanto também se diz que Arien era o Sol, e Tilion a Lua. Curioso, não? Tolkien faz do Sol uma entidade feminina e da Lua uma entidade masculina. E as fases da Lua são o pobrezinho do Tilion sempre correndo atrás da Arien no céu... Ai, ai. O amor é lindo.
Ah, logo depois do Sol ser criado os Homens acordaram, não se sabe bem onde, mas acredita-se que em algum lugar no extremo Leste.
3- Concentrado de casca de salgueiro - a boa e velha aspirina. É sério, caramba, não estou zoando não. Chá de casca de salgueiro era um remédio antigo para a dor e febre das infecções.
É, amiguinhos, fic também é cultura!
O bálsamo limpador era algum derivado de álcool. Lembra-se, há alguns anos atrás teve um cara que passou mal no avião, e um passageiro que era médico fez traqueotomia nele com um canivete, uma caneta, e um monte de garrafinha de conhaque? Quanto mais alto o teor alcoólico, melhor... Talvez uma versão do Miruvor, ou mesmo o próprio... :P
4- Eáspenna - literalmente, Eá-das-nuvens, ou Eá-nas-nuvens. O fofo do maninho a chama de cabeça-de-vento. Irmãos... :P. Nandorin. Embora, por alguma razão provavelmente relacionada ao Rpg, o nome Eámanë é quase-Quenya. Eu vou apelar pra uma 'adaptação' silvestre, digamos assim, da sonoridade. Significa 'de bom caráter, íntegro'. O nome do Erestor deve ser alguma adaptação ou então não significa P.N., porque até hoje eu estou catando e não acho... Mais tarde eu faço uma lista de personagens e o significados dos nomes, só de zoação, e posto em um N.A.
5- Caminho dos Sonhos – Sono. Há também o jeito élfico de descansar enquanto ainda está meio acordado. Legolas comenta no primeiro livro que ele não precisa dormir; os Elfos podiam descansar a mente enquanto o corpo ainda está alerta e funcionando. No caso, correndo atrás dos uruk hai, ou qualquer outra coisa. Eles ficam meio que 'entre os mundos', meio acordados. Algum descanso deve ser necessário, porém, senão Tolkien não teria sentido necessidade de dizer que Elfos dormem de olhos abertos. Além do mais, é difícil fazer uma boa cena de heroísmo e sacrifício se o herói não cansa nunca. Se você cansa, você precisa descansar. Se precisa descansar...
No meu entender, o Sonhar Acordado é um paliativo – ajuda, mas não resolve. É útil quando você precisa correr um monte de quilômetros, sem dúvida, mas chegará a hora em que você precisa parar e dormir. Mas isso é uma opinião pessoal, e eu posso estar errada.
