Capítulo Doze: Noites insones, dias difíceis

'O pessimista queixa-se do vento, o otimista espera que ele mude e o realista ajusta as velas'. Willian George Ward

Era para ser um período restaurativo.

Apesar de eles terem se deitado juntos nos Ermos, Erestor nunca teve tanta consciência dela como naquela noite. Ele colocou uma distância respeitosa entre os corpos, e chegou mesmo a colocar os travesseiros entre eles na cama. E ainda assim ele passou a noite em claro, ciente do gentil calor do corpo de Eámanë, do som suave e rítmico da respiração dela. O ar noturno estava quente contra a sua pele, e o suor corria pelas suas temperas.

Mas ele suportou o suplício em silêncio, sabendo que Eámanë estava menos acostumada que ele ao rigor da estrada. Muito tempo havia se passado desde que Erestor vira um Elfo à beira da exaustão completa, desde a fuga de Eregion. Até mesmo Morin estava cansado quando receberam a hospitalidade rústica de Amir.

Erestor virou-se na cama e examinou o problema em sua mente, tentando distrair-se do fato de que havia uma Elleth a menos um metro de distância dele. Uma que ele segurou contra si e beijou. E teria feito mais se não pelo delicado equilíbrio da situação.

Elrond o teria esbofeteado, com toda a razão.

Banindo de sua mente febril a idéia de um Elrond esbravejante, Erestor calculou quanto tempo a viagem duraria. Mais uma semana, se o grupo se apressasse e não houvesse problemas no caminho, ele decidiu. A Floresta das Trevas era conhecida por ser especialmente perigosa, e por isso mesmo ele tinha decidido vir com os guardas. Glorfindel havia dado aquele frustrante dar-de-ombros dele, o que significava um mundo e não dizia nada, e desejou-lhe boa sorte no caminho.

Erestor tinha achado, na hora, que o loiro estava se referindo a perigos mortais. Erestor não havia avaliado ainda o possível perigo de algo que lhe pudesse roubar a paz de espírito.

Com um gemido frustrado, ele jogou longe os finos lençóis de lã e levantou-se da cama. Seus pensamentos voltavam sempre ao mesmo tópico. Ele não era de nenhuma serventia a Eámanë ou Morin se não conseguisse se dominar e concentrar-se.

"Volta p'ra cama".

Erestor quase pulou no ar, seu coração batia descompassado. A voz de Eámanë estava ainda impregnada de sono, rouca e arrastada...

"Volta pra cama. A aurora virá logo, você terá muito tempo para andar de um lado pro outro".

Oh. Erestor passou os dedos nos cabelos, apenas um pouco incomodado por encontrá-los cheio de nós, e foi até a porta. "Eu a deixarei descansar". Vou embora. Para longe, algum lugar em que possa pensar em paz.

Eámanë sentou-se na cama e esfregou os olhos. O gesto era estranhamente infantil nela, e o estômago de Erestor deu voltas. Ela era tão inocente ainda, tão jovem. E eu me aproveitei dela.

"Vai me manter acordada se ficar andando de um lado para o outro", Eámanë resmungou. Ela levantou o queixo, os lábios fazendo um beicinho. "Eu estava tendo um sonho bom".

Jovem demais, jovem demais. Ela era minha aluna.

"Eu peço desculpas por acordá-la, então". Ele se encheu de coragem e abriu a porta. "Não farei barulho, prometo".

Foi mais do que ele podia agüentar quando ela se virou e abraçou os travesseiros, uma perna por cima deles em uma paródia de abraço íntimo. A porta fechou-se com um barulho surdo.

Mantendo sua palavra, Erestor sentou-se na cadeira e ficou imóvel. Uma semana até o palácio de Thranduil, se os Valar quiserem, e depois algumas danças políticas eram de praxe. Ele era o Conselheiro Chefe de Elrond, Thranduil tentaria se aproveitar disso. Se a raposa velha suspeitasse do rumo caótico dos pensamentos de Erestor, tentaria tomar vantagem deles para negociar e barganhar. Não que Erestor verdadeiramente ressentisse isso, Thranduil era rei de um país em perigo e usaria qualquer método para salvar seu povo.

Eámanë na Guarda. Ela mal conseguia lembrar-se de manter os pergaminhos arrumados, guardar os utensílios de escrita. Ela iria para a guarda armada, lutar contra o Necromante em ascensão. Contra aquele que teceu uma noite de mil anos. Ellith e Ellyn lutando lado a lado nas trevas... Os Silvestres largados à própria sorte. O poder de Valfenda não era do tipo que se podia emprestar, nem o de Lothlórien. Erestor sentiu a garganta apertar. De certa forma ele podia admirar Thranduil por manter a Sombra à distância com tão poucos soldados, sem Anel de Poder algum. Mas ele recordaria para sempre Eámanë esfregando os olhos, sonolenta, ou elevando as sobrancelhas em desafio ou travessura. E então ele amaldiçoaria o filho de Oropher, o Necromante e a sua própria impotência.

Erestor foi tirado de seus pensamentos sinistros por uma batida suave na porta. Com toda a furtividade possível, Erestor abriu a porta. Apenas quando Morin franziu o cenho ele percebeu que tinha uma faca nas mãos.

"Não és uma alma crédula, vejo bem", Morin afirmou calmamente, e fechou a porta atrás de si. "Eu não teria creditado-te um tal nível de paranóia, meu senhor, mas é de boa valia. Vejo que velaste a dama".

Morin obviamente achava que tinha sido idéia de Erestor ficar junto de Eámanë, suas suspeitas a manter uma arma à mão. Erestor não sabia como negar sem fazer Eámanë parecer uma pessoa assustadiça. "Não os conheço", ele respondeu.

Morin concordou com a cabeça. "Alegra-me que o tenhas feito. Se a serviçal não me tivesse avisado sobre o novel casal eu precisaria encontrar um jeito de entrar no quarto de Eámanë sem ninguém ver. Ela poderia ter se assustado, e Ilúvatar sabe o que aconteceria, a dama tem uma lâmina ágil".

Erestor fez uma careta. A idéia de Morin esgueirando-se até o quarto de Eámanë foi suficiente para deixá-lo de mau humor novamente. E também a menção de Eámanë em combate armado. "Fico feliz que não tenha sido necessário".

O outro Elfo não parecia ciente do seu estado de espírito. "Mas como estavas de guarda, não precisei dormir na porta do quarto dela. Eu apenas te perturbei para perguntar se partiremos hoje ou aceitaremos a hospitalidade de Amir por mais alguns dias".

Erestor olhou na direção do quarto, imaginou a Elleth abraçando os travesseiros, e uma interminável série de dias onde ele precisaria agir como marido extremoso de dia e deitar-se ao lado dela, insone, à noite.

"Partiremos com a alvorada".

Morin gargalhou baixinho. "Ai de mim, eu esperava ter chance de lavar minhas roupas. Mas o que tiver que ser, será; e é melhor que o enfrentemos de frente. Eu vou arrumar minhas coisas."

Erestor tornou a fazer caretas na direção da porta quando Morin saiu, pois se sentiu roubado de uma boa oportunidade para brigar. Naquele momento uma boa troca de socos parecia uma excelente idéia. Ele penteou os cabelos com os dedos novamente, e murmurou alguns insultos selecionados.

"Nem de longe uma pessoa matutina, além de ser muito desconfiado. Ora, ora, quando as surpresas terminarão?"

Erestor mordeu a língua para impedir que um novo jorro de profanidades saísse de sua boca enquanto Eámanë saía do quarto, já vestida com sua roupa de viagem.

"Eu tinha o pressentimento de que você não descansaria tão bem quanto eu".

"Estava preocupado, e minha mente não parava de funcionar o suficiente para que os sonhos viessem. Mas o corpo está a postos".

Ela desviou os olhos para o chão. "Bom. Melhor assim. Entendo que estamos agradecendo ao bom Amir e depois tomando a estrada antes que o sol esteja alto?"

"A menos que não se sinta bem?" Ele entoou a frase como um questionamento, mas Eámanë balançou a cabeça negando, ainda sem olhar para cima. "Então acho que deveríamos continuar viagem o mais rápido possível".

"Devemos tomar desjejum com eles. Não fazê-lo seria uma ofensa enorme".

"Não prevejo grandes dificuldades quanto a isso".Ele franziu o cenho. Eles tinham brincado e conversado livremente ontem à noite, e agora a moça estava tímida e sem graça diante dele. Eis um lado de Eámanë que ele nunca tinha visto antes, mas Erestor considerou também o fato de que eles nunca tinham estado em uma situação tão absurda antes.

"Verei se as serventes precisam de ajuda".

"Certamente estão dormindo ainda?" Eámanë respondeu fazendo que não com a cabeça. "Então, está bem".

Ela foi. Erestor, incapaz de se conter, chutou a perna da mesa.

Algumas horas depois eles tinham compartilhado o desjejum, dado graças aos homens da Floresta, e retornado à sua peregrinação.Eles tomaram a direção Norte a um passo moderado, permanecendo às margens da Floresta. Eámanë avisou que isto os ajudaria a ficar fora das vistas dos goblins nas Montanhas, e da vistas das criaturas malignas da Floresta que geralmente preferiam os lugares onde a escuridão era mais profunda. E novamente não pararam durante a noite ou durante o dia até que a Estrada Velha da Floresta estivesse diante deles novamente.

"Onde está esta estrada de que tanto falas?" Morin quis saber no quarto crepúsculo. "Não vejo nada, apenas um espaço um pouco mais aberto por entre as árvores".

Eámanë quase caiu de tanto rir. "Isto, meu caro, é a Estrada".Ela ajustou a mochila nas costas e respirou fundo. "Devemos cruzar a Floresta até que cheguemos ao Rio Corrente, como chaman os Mortais. Ao longo do rio teremos um caminho relativamente seguro até Esgaroth, e de lá um barco para Taur-e-Ndaedelos".

"Parece até que a Floresta se ressente da nossa presença", Erestor resmungou. "O ar é tão abafado aqui... tão pesado... quase não há luz alguma que atravesse a copa das árvores".

Eámanë respondeu com uma voz entrecortada e baixa, mas orgulhosa. Naquele momento ela não parecia jovem, mas velha como o Tempo, sábia como as Dores do Mundo. "Os anciãos dizem que não foi sempre assim. Mas a malícia que se espalha do Sul corrompeu muito do que já foi. Tivemos muito pouco tempo para sarar a Floresta adoecida, e a Sombra já retornou. Não sei se haverá o que se defender daqui a cem anos".

"Sempre há esperança", Morin respondeu. "Fizestes um trabalho admirável, e estou certo de que o fareis novamente".

Eámanë abriu a boca para responder, mas sua face contorceu-se numa careta esquisita. Ela ficou completamente imóvel de repente, seus olhos desfocados e distantes. Erestor achou aquilo muito inquietante, mas seguiu o exemplo dela e ficou imóvel.

"Para as árvores. Depressa".

Antes que ele tivesse uma chance para perguntar o que ela tinha em mente, a moça pulou para o galho mais próximo do chão e dele para os outros galhos mais altos, subindo um salgueiro antiqüíssimo com impressionante graça e agilidade, sem ser detida pela mochila enorme. Erestor e Morin estavam acostumados a planaltos e construções rasteiras, e subiram com muito menos habilidade. Eámanë estava soltando fumaça pelos ouvidos quando eles finalmente alcançaram o topo da copa.

"O que pensa que está—"

"Fique calado!" Ela ordenou, com tanta autoridade e veemência que Erestor obedeceu de puro susto. Quando o efeito passou, o conselheiro estava pronto para exigir uma satisfação, ele ouviu os primeiros sons fracos de folhas secas sendo esmagadas por pés muito pesados, ao longe. Como ela tinha escutado de tão longe?

Eámanë não era uma guarda ainda, mas conhecia bem a sua floresta. Distraidamente Erestor fez uma nota mental para checar se todos os Silvestres tinham uma audição tão apurada, se assim fosse, ele teria de avisar a Elrond, para que o Meio-Elfo tomasse mais cuidado quando falasse em meio a eles.

Os Elfos observaram, muito quietos, três bestas enormes passaram. Suas peles eram cinza-esverdeadas com enormes membros desproporcionais. Elas pareciam obesas, mas Erestor sabia que as protuberâncias eram na verdade músculo e entranhas. Grandes pedaços de troncos de árvores quebrados serviam como maças, peles de animais enrolados de qualquer jeito funcionavam como calções.

Fazia muito tempo que Erestor não via um troll de perto.

Assim que a Silvestre decidiu que os trolls tinham se distanciado o bastante, ela virou-se para os Ellyn. "Eles geralmente andam em grupos pequenos. Se estes são o grupo todo, estamos bem, mas se eles tiverem amigos por perto, é melhor que tenhamos cuidado. Vamos colocar alguma distância entre nós e eles. Podem correr por entre os galhos?"

Erestor conhecia seu bestiário muito bem, mesmo tendo ficado na proteção gentil de Valfenda por tantos milênios. Mas a última parte do discurso dela o pegou desprevenido. Correr entre o quê?

"Não costumamos correr por entre galhos, minha senhora", Morin respondeu. "Podemos camuflarmo-nos entre eles, mas não viajamos assim. De modo geral".

Eámanë reagiu como se lhe tivessem dito que os Elfos de Valfenda não tinham orelhas pontudas. "O que estiveram fazendo todos estes milênios no vale, pelas estrelas? Valfenda tem bosques, e... ah, deixa pra lá. Estaremos mais vulneráveis no chão".Ela desprezou os protestos com um gesto irritado, e mordeu os lábios. Erestor descobriu-se fascinado com aquele gesto simples. "Precisaremos correr, o mais rapidamente que puderem, mas sem fazer barulho. Não me sentirei segura até estarmos a pelo menos sete léguas daqui".

"Mas isso não atrairá as aranhas?"

Eámanë balançou a cabeça. "Geralmente sim, as esta área esta livre de aranhas – elas ficam em ambos os lados da estrada, mas evitam a Estrada em si, por alguma razão". Ela suspirou. "E sou muito grata por isso. Trolls, entretanto, nao tem tanta consideração. Mantenhas as orelhas alerta para grupos andarilhos de orcs, também, eles ficam bem danadinhos quando o sol se põe".

"É aqui que você vive?" Erestor estava incrédulo. Aquela criatura alegre, descuidada e atrevida tinha crescido ali, entre aquelas bestas imundas?

Ela deu-lhe um sorriso tristonho. "Não, é aqui que eu vivi, há muito tempo atrás quando eu era uma elfinha e a Sombra estava apenas começando a espalhar-se. Nós fomos para o norte, e depois novamente mais ao norte, e outra vez... houve um tempo em que esta Estrada era limpa e segura, e tínhamos uma vila adorável a menos de dois dias de viagem daqui. O lugar é agora um ninho de aranhas, e coisas piores. Mas devemos nos apressar, Mestre Erestor, e partir a toda velocidade".

E sem mais delongas ela pulou para o chão, caindo de pé sem barulho algum, e partiu numa carreira desabalada na direção Leste. Com um gemido por seu pouso bem menos silencioso, Morin a seguiu.

"Ah, eu estou mesmo enrascado", Erestor murmurou, e caiu no chão também.


N.A.:

Das particularidades geográficas da Floresta das Trevas, e da relação da Floresta com os Elfos Silvestres.

Em O Hobbit encontramos um mapa detalhado de Rhovannion, onde Tolkien mostra em detalhes as vilas de homens da floresta, a casa de Beorn, alguns ninhos de aranhas, a fortaleza de Dol Guldur, os rios e o palácio do Rei Élfico. Os ninhos de aranhas ficam a alguma (pouca, mas significativa) distância da estrada.

Ainda em O Hobbit, Gandalf adverte aos anões e à Bilbo claramente quando os deixa, um pouco depois de ficarem na casa de Beorn (provavelmente ou a caminho de Lórien para o Conselho Branco, ou a caminho de Dol Guldur para destruí-lo): 'Não saiam da estrada'.

No mesmo livro, Tolkien descreve a Floresta das Trevas como um lugar de árvores muito altas, muito próximas entre si, com um ar sinistro (talvez devido ao fato de os anões e Bilbo estarem perdidos... talvez devido ao fato de ela estar infestada de aranhas...), abafado e difícil de respirar, onde está sempre escuro porque o sol não consegue atravessar a copa das árvores.

Também vemos ali que os Elfos da Floresta tinham uma relação muito próxima com o lugar em que viviam, embora isso seja até certo ponto interpretação pessoal. Os anões ouvem uma cantoria ao longe e vêem luzes e, estando famintos, vão nesta direção para pedir comida. Sempre que chegam perto das luzes a ponto de vislumbrar os Elfos, as luzes subitamente se apagam e os Elfos – além da comida, mesas, cadeiras e instrumentos de música – desaparecem. Isso acontece duas ou três vezes, antes de os Elfos perderem a paciência e lançarem um feitiço sobre os anões para fazer com que durmam e aprisioná-los. Legolas dá a entender que pode escutar e entender o que as árvores dizem em SdA, quando chega a Fangorn com Aragorn e Gimli. 'As árvores são muito antigas... cheias de raiva e vingança...'

Também fica claro que o comércio entre os Homens de Esgaroth e os Elfos da Floresta se dava principalmente através de balsas, geralmente guiadas pelos Elfos. Certamente, O Rio da Floresta que ia do palácio até o Lago Comprido e o Rio Corrente que ia do Lago até o Mar de Rhûn deveriam ser de fácil navegação, já que não há nada que simbolize acidentes geográficos em seus leitos...