Capítulo 14: O que não se lê nos livros de História...
'Há que tornar a ungir os cavalos guerreiros e levar a luta até ao fim; porque quem nunca descansa, quem com o coração e o sangue pensa em conseguir o impossível, esse triunfa'. I Ching
'O herói é aquele que, tendo de escolher entre o medo e a morte, se liberta do medo lutando'. Autor desconhecido
Eámanë havia deixado Valfenda com tamanha pressa que nenhuma notícia de sua chegada iminente poderia ter sido enviada, e portanto sua mãe teve um choque tremendo quando Eámanë entrou em casa. Gwaloth quase derrubou suas garrafas de tinta na tina onde a lã esperava, úmida, pela decisão final da artista. Mas a Elleth conseguiu evitar o desastre e colocou as garrafinhas em uma mesa próxima, para depois correr para a filha com os braços abertos.
"Ah, mas os Valar não me esqueceram, afinal! Ai, Eáspenna, estávamos tão preocupados contigo!"
Eámanë agarrou-se à mãe, sentindo-se um tanto culpada por ter preocupado aquela mulher que ela amava tanto. E sofreu, sabendo que ela sofreria. "Sinto tanto que não tenha tido notícias minhas, mãezinha. Adhenard me contou que as cartas não chegaram".
"Não importa mais. Tu estás aqui!" Os olhos azuis escuros brilhavam com lágrimas não derramadas, enquanto ela colocava alguma distância entre si e sua filha. Os anos haviam tratado sua pequenina sonhadora com carinho, ela pensou. Os olhos claros de Eámanë estavam mais profundos, sua fëa brilhava mais forte, com uma determinação e foco que estavam ausentes antes. A sua menina crescera tanto! "Assaremos um porco! Seu pai está servindo na Guarda Interna há uma década, mas Maglin foi enviado para a fronteira. Esperamo-lo em dois anos, para suas férias".
"Encontrei-o em meu caminho". Eámanë beijou ambas as faces da mãe, inspirando emocionada aquele aroma de lar, amor e segurança, e desejou com tudo de si que um milagre acontecesse e ela não precisasse cortar em dois o coração daquela criatura doce. "Ele estava bem, e como sempre um tratante irresistível. O que me diz que ele tornou-se ainda mais do que já era. E agora meu desejo mais caro é a canja de galinha do paizinho e uma torta de amoras. Talvez possamos poupar o porco".
"Besteira!" Gwaloth limpou as mãos em seu avental manchado. "Assim seu pai terá algo para ocupá-lo. A maior parte de seus amigos de infância mora perto da Corte agora, Ithildin e Silivren, e aquele rapaz tão atencioso, filho de Telneled..."
Eámanë relaxou e deixou-se absorver pela voz suave de Gwaloth a tagarelar alegremente os últimos acontecimentos da Corte, como ela gostava de chamar a área próxima ao palácio. E embora o medo estivesse presente, quase disfarçado, Gwaloth parecia não compreender completamente as implicações dos fatos que reportava.
Thranduil chamara todos novamente para perto de si, como antes da Paz Vigilante. O que significava que o Rei Élfico já estava ciente do perigo, ou suspeitava bastante. Os jovens que haviam abandonado o serviço armado para perseguir seus próprios interesses tinham sido chamados de volta ao exército. As aranhas, orcs e trolls estavam avançando ousadamente.
A Sombra se alastrava outra vez, forte como outrora.
Eámanë suspirou. Não haveria milagre algum. Apenas a longa e desesperada luta contra a noite infindável.
"Meu mestre veio comigo, para falar com o nosso Rei".
Aquela afirmação fez com que Gwaloth pausasse. Os perceptivos poços de safira se estreitaram. "Para quê?"
Eámanë deu de ombros. "É necessário que fale com Thranduil por muitas razões. Eu não consigo entender todos os motivos dos Nobres e Poderosos, mãe".
Gwaloth não deixaria o assunto morrer tão facilmente. "Porque ele cruzaria todas as léguas desde a Primeira Casa Amiga até o palácio do Rei? Escreveste-me que teu mestre não era um servo qualquer".
Erestor sorriu tristemente. "Ele é o Conselheiro Chefe de Elrond, um dos mais sábios membros da casa do Meio-Elfo, e tem uma preferência por poemas com centenas de milhares de versos".
Gwaloth ergueu uma sobrancelha negra como a noite sem luar.
"Mãezinha, Elrond não poderia enviar o valete para discutir com Thranduil, podia?" Eámanë não mencionou que se Erestor não temesse pela vida dela, ela teria feito a jornada sozinha, e maquinações políticas tinham pouco ou nada a ver com a vinda dele. "É preciso alguém de posição para este tipo de coisa".
A mãe relaxou um pouco. "Isto é bem verdade". Ela olhou de soslaio para a porta, onde uma única mochila simples e manchada de poeira estava encostada contra a porta. "É tudo o que trouxeste contigo?"
"Sim, tive que deixar meus pertences para trás. Apenas me atrapalhariam". Eámanë lembrou-se de acordar e perceber que Hallatir não estava por perto para que o provocasse, ou para retribuir o favor. "Tivemos uma baixa nas Montanhas. Estão infestadas com orcs. Não sei como Erestor voltará para casa".
Gwaloth, sendo mãe, não estava muito preocupada com o Conselheiro Chefe de Elrond. "Ah, querida. Eu tinha esperanças que estarias livre disto, livre para sempre".
Eámanë sorriu e tomou as mãos da mãe nas suas. "Tive um gostinho do que é a vida sem medo ou dúvida, mãezinha, e gostei muito. Mas lembro-me bem do que passamos antes. Não poderia jamais esquecê-lo".
"Falas com orgulho, como é de teu direito, mas ainda desejava que pudeste esquecer."
"Pelas estrelas! Estão os meus olhos enganados? Verdadeiramente, é a minha pequenina!" Galiond entrou no chalé a passos largos depois de ter chutado a porta para que abrisse. Ele era um Ellon alto e gracioso com mãos enormes e um sorriso maior ainda. Ambos os filhos tinham seus cabelos dourados, sedosos e fartos, mas Maglin herdou a estrutura física mais encorpada de Gwaloth e Eámanë, os cachos do cabelo da mãe. Mas a semelhança mais forte era com Galiond, até mesmo em temperamento. Galiond era mais prático e realista, a pedra fundamental da família. A esposa foi sempre otimista e leal, um sopro de verão e sonho em suas vidas tão sofridas.
"Pai", Eámanë retrucou sem muita esperança. "Não tenho sido 'pequenina' por muito tempo".
"Filhos são sempre pequenos", Galiond respondeu sem se perturbar. "Entendo que teremos uma celebração hoje à noite?"
"Preferiria dormir a semana toda", Eámanë disse. "Mas precisarei estar desperta amanhã ao menos. Os Elfos de Imladris falarão com o Rei, e eu lhes farei companhia".
Testamento de sua longa e harmoniosa união, Galiond teve a mesma reação que Gwaloth. "Temos Elfos de Imladris entre nós?"
Eámanë apontou para o próprio peito. "Precisava de escolta".
Galiond concordou. "Escutei rumores de que as estradas estão a ficar mais perigosas". Após muitos anos no serviço armado, Galiond sabia exatamente o significado dos rumores. "O meu capitão me enviará novamente às fronteiras quando chegar a primavera. Diz-se que a Sombra retornou".
"Não fales coisas tão sombrias aqui, Galiond. Tu as trarás sobre nós. Vamos sacrificar o porco e chamar nossos amigos".
"Prefiro poupar o pobrezinho e ter uma noite tranqüila em casa, mãezinha, se não se importa", Eámanë falou depois de uma troca rápida de olhares com o pai. "Então poderei conversar com vocês à vontade e dormir cedo".
"Poderíamos adiar a celebração, suponho..." Gwaloth admitiu baixinho. "Não viajo há tanto tempo que esqueci como é cansativo". Ela deu um beijo na filha e saiu da sala, percebendo os sinais pouco sutis de que Galiond queria falar com a filha a sós. Quando pai e filha estavam sozinhos na sala de estar, Eámanë deixou-se cair na poltrona e retirou as botas.
"Há algo que queira me dizer?"
Os olhos de Eámanë se encheram de lágrimas, mas ela não as verteu. "Muito você já sabe, ou desconfia: sim, a Sombra voltou e sim, a situação é tão séria e grave quanto antes. Os detalhes exatos e tudo o mais Thranduil ouvirá amanhã de manhã, meu antigo mestre ouviu as novas diretamente de Mithrandir e dos Guardiões do Norte, e ele veio comigo".
"É sempre mais difícil de empunhar a espada depois da paz. Ela fica tão pesada..." Galiond suspirou, balançou a cabeça, e tomou as mãos da filha nas suas. Como ela estava sentada, ele teve de ficar de joelhos para manter o contato confortável. "Quando a Guerra do Anel terminou, eu achei que nunca mais teríamos que passar por tais horrores novamente. Entretanto, houve um estreitamento dos laços entre os Elfos nestes últimos séculos. Talvez agora Thranduil peça ajuda".
"Paizinho..." A voz de Eámanë tremeu. Ela tomou fôlego, apertou as mãos dele, mas não teve coragem para encarar aqueles olhos cinza-azulados. "Não creio que haverá ajuda".
Galiond ficou completamente imóvel. "Queres dizer que as outras nações não enviarão ajuda?"
Eámanë passou a língua pelos lábios. "O único lugar que conheço, fora Taur-e-Ndaedelos, é Imladris. São refugiados, os sobreviventes da queda de Eregion, muito poucos para ter soldados de sobra. Da casa de Gildor Inglórion, ou dos Galadhrim, ou dos Elfos dos Portos, não sei. Eu soube que Elrond enviou mensageiros para Lóthlorien, mas se terão meios para ajudar-nos é outra questão".
"Eles tiveram muito menos baixas que nos na Grande Guerra, e nenhum Necromante que os ameaçasse".
Eámanë sentiu-se forçada defender os estrangeiros. "Fomos maltratados e encurralados, mas nunca tivemos nosso país e nosso povo destruído. E os Elfos estão partindo da Terra-Média. Eles se cansam destas praias".
Galiond concordou. "Assim ouço". O que ele não iria, não poderia nunca admitir era que o desejo havia já acordado em si, que a ânsia estava cada vez mais forte nele desde antes da paz Vigilante. Era óbvio que o resto da família não estava pronto para seguí-lo, ainda apaixonados pela Terra-Média,pela Grande Floresta, apesar de tudo. E Galiond jamais magoaria seus sentimentos ou os abandonaria. "Então, dizes que não há Elfos suficientes para fazer frente à Sombra?"
"Digo que até onde sei, as Casadelfos estão muito mais fracas do que eram outrora, e que eu tenho certeza que Elrond não tem homens para mandar. Os outros, não sei. Talvez depois que os mensageiros voltem de Lóthlorien, mas é incerto".
"Tinham homens para enviar para a festa de Arwen!"
"Estávamos em paz na época paizinho, por isso concordou em deixar-me ir".
"Maldição!" Ele gritou, e Gwaloth ralhou com ele para que tomasse cuidado com a linguagem que usava de seu ateliê. "O que faremos agora?"
"O que sempre fizemos", Eámanë respondeu. "Compraremos ferro dos Mortais de Esgaroth, forjaremos armas e armaduras, esculpiremos tantas flechas quantas forem possíveis. Chamaremos à Guarda os jovens. Enfrentaremos a ameaça de cabeça erguida e esperaremos pelo melhor". Ela franziu o rosto pálido enquanto pensava. "Perguntarei a Morin se poderia passar algum tempo com os ferreiros, avaliar a produção e dar alguns conselhos. Talvez ele saiba algo do feitio das armas. Algo a ser pensado".
Quando ela finalmente ergueu os olhos para encarar o pai, Galiond tinha perdido toda a cor do rosto. "Diga-me a verdade, filha minha, porque não ficou na Casa de Elrond?"
As lágrimas caíram então, esquecidas. "Paizinho... não sabe?"
"NÃO! Eáspenna, eu proíbo-te!"
"Não há outro caminho, pai". Eámanë segurou-lhe a mão com forca quando Galiond tentou virar-se de costas. "Não temos mais ninguém. É melhor que eu vá agora, enquanto ainda temos algum tempo de sobra para que treine, do que ser forçada mais tarde a me defender mal-preparada e mal-equipada. Pai! Paizinho, olhe para mim!" Ela firmou os pés no chão, enroscou os braços ao redor da sua cintura para que não escapasse. "Esteve em Dagorlad, e eu aprendi muito mais sobre ela do que jamais me contou. A nossa ruína foi estarmos mal-preparados..."
"A nossa ruína foi a teimosia de Oropher".
"E armaduras finas demais, armas de qualidade inferior, e um exército de soldados com pouca experiência em campanhas de longa duração. Nós emboscamos, e fazemos guerrilha, mas se temos que lutar dia após dia após mês após ano, falhamos".
"Não irás para essa tortura, essa agonia, essa decadência longa e degeneração de vida! Não! Eu enviei Maglin, e basta! Um de meus filhos a salvo, estou pedindo demais?"
"Nunca estive a salvo, paizinho. Nunca fui inocente. Maglin e eu crescemos com a Sombra sempre nos nossos calcanhares, com orcs e trolls invadindo a vila de tempos em tempos!"
"E já basta!"
"Sim, basta. Mas não vai parar porque queremos, não se não lutarmos. Paizinho, não vê que eu não poderia ficar longe quando enfrentam isso, que não poderia ficar imperturbada quando estão necessitados? Maglin disse muito antes da Paz Vigilante que tínhamos apenas o mínimo para manter as fronteiras a salvo".
Gwaloth invadiu a sala, sua face tão pálida quanto a do marido, uma fúria selvagem em seus olhos. "Sabes bem que as mulheres não embarcam em tais ocupações, Eámanë. Não podes ir para a luta. A escuridão de esgueira no fëa, e—"
"Mãezinha, isto não será problema". Eámanë não achava que se apaixonaria novamente algum dia, mas para tal precisaria estar viva. Uma perspectiva da qual ela duvidava. "Eu prefiro estar preparada quando chegar a hora, do que ser surpreendida desarmada e indefesa quando o Inimigo invadir nosso território".
"Não chegará a isso".
Eámanë balançou a cabeça em negativa. "Paizinho, sabemos que chegará, sim. É apenas uma questão de tempo agora".
Gwaloth agarrou-se a Galiond, apresentando uma frente unida à filha teimosa. "Eáspenna, estas sendo apressada. As fronteiras estão bem protegidas. Não há necessidade".
"Não faz nem um ano, e Thranduil já convocou todos os seus vassalos para perto de si. Paizinho irá para as fronteiras, e Maglin está lá ainda – nunca antes os capitães do rei enviaram ambos para longe ao mesmo tempo. Dol Guldur foi repovoada em pouquíssimo tempo, e as Montanhas Sombrias estão apinhadas com orcs e outras criaturas desprezíveis. Paizinho, é um guerreiro experiente, você sabe o que isto significa. Cada guarda deste reino sabe o que significa".
Gwaloth não conseguiu suprimir os soluços, mas Galiond apenas abaixou a cabeça. "Eu sei, Spenna, eu sei bem; mas ainda assim desejava que tivestes ficado longe e a salvo desta loucura. Ainda assim desejava que outra que não a minha filhinha tivesse que fazer isto".
Eámanë, não suportando mais a dor nua dos pais, deu as costas e apanhou a mochila. "Mas o problema, paizinho, é que eu acho que serei a primeira de muitas".
"Temo isso", Galiond respondeu enquanto ela se dirigia para o antigo quarto, ainda abraçado à esposa. "Temo isso muitíssimo".
N.A.:
Gwaloth: Flor em Sindarin.
Spenna: Nuvem em Sindarin.
Ithildin: Prata em Sindarin (há muitas palavras para prata)
Telneled: Árvore de prata em Sindarin.
Primeira Casa Amiga- se você está do lado leste das Montanhas sombrias, a casa de Elrond é a Primeira Casa Amiga, e não a última.
Gildor Inglórion: Frodo encontra-se com ele quando sai com Sam de sua casa em Bolsão. O Senhor Élfico estava a caminho dos Portos, mas tomou conta dos hobbits por uma noite já que o conhecia de vista ('o vi com Bilbo') e os Cavaleiros Negros estavam à solta.
Dagorlad: "E armaduras finas demais, armas de qualidade inferior, e um exército de soldados com pouca experiência em campanhas de longa duração". Verdade. Foi por isso também que os Silvestres tiveram tantos mortos na batalha (Além de o rei Oropher ter avançado sobre o exército inimigo sem esperar o sinal de seus aliados...).
Fëa: a palavra é na verdade outra língua élfica, Quenya, portanto eu pus em itálico. Alma, espírito. (Como todos os elfinhos aqui presentes são Silvestres, estão, obviamente, falando a língua natal deles entre si. Nandorin.)
Agora...
Larwen: Legolas é o único filho de Thranduil mostrado nas obras de Tolkien... O que não significa que as obras de Tolkien explicitem que ele era filho único... A teoria de ele não ser o herdeiro surgiram pelos motivos que eu expus no capitulo anterior.
Gibi: O Erestor tinha descansado o corpo... ;P
Menina, eu não tinha pensado ainda nessa relação entre a Floresta das Trevas e o Brasil. Não é que é mesmo? Super! E concordo com você , os outros teriam se chispado dali faz tempo... Mas Thranduil não, ele segura o tchan, organiza e lidera os exércitos, e ainda faz um 'churrasquinho'. Ah! Eu amo esse Elfo!
Sadie: que bom que você gostou. Não estresse com o lance do filho único/não filho único que isso é interpretação. O professor deixou as anotações meio incompletas, sabe como é que é, a gente tem que 'adivinhar' às vezes.
Bom amiguinhos, ficamos aqui. Semana que vem tem mais!
