CAPÍTULO 3

"Bernie?" chamou Clark ao chegar à portaria do prédio onde aparentemente morava.

O porteiro saiu de uma salinha e surgiu com um pequeno sorriso no canto dos lábios ao ver Clark.

"Sr. Kent!" exclamou ele. "Esqueceu alguma coisa?"

"Bem, eu... hum"

De fato, Clark não havia pensado no que dizer até chegar àquele ponto.

"A Sra. Kent já saiu?" perguntou ele, finalmente.

"Ah, sim... acabou de sair!" exclamou o porteiro. "Não faz nem dez minutos"

Clark se virou para a porta. Se ao menos tivesse chegado antes. Por outro lado, pensou que era melhor assim. Não teria que passar pela constrangedora situação de não reconhecê-la seja lá quem fosse ela, e poderia vasculhar mais o apartamento em busca de respostas.

Tinha que pensar rápido. Lembrava que morava na cobertura, mas não tinha como entrar.

"Bernie, saí sem minhas chaves -" disse ele então.

O porteiro sorriu. Entrou novamente na salinha, e voltou com um molho de chaves, provavelmente de todos os apartamentos. Trancou a porta da salinha e atravessou o hall de entrada, acompanhado por Clark.

"Espero que não seja incomodo -" comentou Clark, constrangido com a situação.

"Ah, não se preocupe, Sr. Kent. Afinal, essa não é a primeira vez!" disse ele, sorrindo. Clark o encarou com surpresa, e o porteiro continuou: "Às vezes eu nem o vejo passar pela portaria -"

Foi então que Clark ficou ainda mais confuso, enquanto Bernard olhava para uma outra funcionária do prédio, que limpava o piso do hall de entrada.

"Fiona, toma conta da portaria até eu voltar"

Clark se virou para vê-la, enquanto a porta do elevador se abria, e ela apenas assentia com a cabeça.

"Pronto!" disse Bernard, após abrir a porta do apartamento de Clark, que espiou apreensivo pela fresta. "Precisando, estou às ordens, Sr. Kent!" exclamou, deixando-o.

Clark abriu a porta e olhou para o interior do apartamento onde havia estado há menos de meia hora. Ao notar que o porteiro o observava de longe enquanto esperava o elevador, Clark lhe acenou com um sorriso, e entrou no apartamento, fechando a porta logo em seguida.

Como não teve muito tempo de examinar o lugar antes, Clark passou por todos os cômodos à procura de evidências que lhe revelassem onde de fato estava e o que afinal poderia ter acontecido. Passou pela sala, e exceto pelas fotografias sobre a lareira, nada mais encontrou. Ao entrar na cozinha, abriu portas de armários, como se as respostas pudessem estar entre latas e vidros de conserva. O que mais encontrou foram latas de café solúvel. Como não tomava café, deduziu que sua esposa era viciada em cafeína.

Ao aproximar-se da geladeira, viu um bilhete preso a um imã, que dizia: 'Clark, não esqueça de passar na lavaderia!'

"Lavaderia?"

Seja lá quem era esposa, deduziu que não parecia muito preocupada em escrever errado.

Clark voltou à sala, deu uma nova e rápida examinada, inclusive com sua visão de raio-x e, nada mais encontrando, foi para o quarto.

Aproximou-se lentamente da cama, ainda desarrumada. Pelo visto, Sra. Kent não é muito caprichosa, pensou ele.

Clark foi ao banheiro, onde viu vários frascos de cosméticos, e uma escova de cabelos. Notou que o banheiro estava úmido. Mas nada havia que pudesse denunciar o que estava acontecendo ou quem era a mulher com quem havia se casado. Voltou para o quarto, e deu uma boa olhada na aliança que usava. Para estar casado com ela, devia ser alguém muito especial. Sorriu, imaginando quem afinal podia ser. Mais ainda estava apavorado com a idéia. Aproximou-se então do closet, e quando abriu a porta, notou que o armário de roupas não era mais organizado do que o resto da casa, porém, era dividido em dois lados. O da direita, aparentemente seu, e o da esquerda, de sua esposa. Entre suas roupas, vários ternos, e camisas, viu algo que lhe chamou mais a atenção. Era uma malha azul e vermelha em lycra. Clark a tirou do cabide e olhou aquilo confuso e atordoado. Abaixo, na prateleira de calçados, um par de botas vermelhas, provavelmente parte da roupa.

"Mas o quê é isso?" perguntou ele, vendo o 'S' maiúsculo do centro da roupa. Colocou-o à sua frente, e viu que era do seu tamanho, portanto, era mesmo sua.

Perplexo, Clark a colocou de volta no cabide e se virou para o lado do armário onde ficavam as roupas da Sra. Kent. De repente, sentiu um perfume agradável. Algo bastante familiar. Pegou uma das camisas de seda preta de sua esposa e a cheirou. Entre o cheio de roupa limpa e de desodorizador de armários, havia um perfume que não lhe era estranho. Mas não conseguia descobrir onde o havia sentido antes. Foi quando viu um gaveteiro abaixo dos cabides. Clark então se abaixou e começou a vasculhar as gavetas. Logo na primeira, lingeries e camisolas. Constrangido, abriu a próxima, e encontrou o que parecia ser um álbum. Ao pegá-lo, seu coração disparou. Finalmente, a estória de seus últimos dez anos podia estar registrada ali. E ele iria descobrir afinal quem era a mulher da sua vida e, claro, a dona daquelas lingeries, pensou, olhando para a gaveta de cima semi-aberta.

Sentou-se à cama, com o álbum no colo, e respirou fundo antes de abri-lo. Por mais que estivesse apavorado, precisava faze-lo. Abriu e, para sua surpresa, deparou-se com a primeira foto, de quando era garoto, brincando no trator ao lado de Jonathan. Clark sorriu e, na seqüência, deparou-se com mais e mais fotografias de família. Num dado momento, começaram a vir as fotografias com os amigos. Pete e Chloe. Lana aparecia apenas em algumas. Depois, Chloe e Lois. E da metade em diante, muitas outras apenas com Lois, o que era deveras estranho. Também havia algumas pessoas que não conhecia. Estranhamente, Perry White também estava lá. Clark enrugou a testa, confuso, enquanto virava as páginas do álbum, quando, finalmente, encontrou as fotografias do casamento.

E algo aconteceu. Clark simplesmente ficou sem reação. Por segundos, ficou olhando aquela primeira fotografia de casamento, boquiaberto. Não podia acreditar no que via. E, depois, olhou alternadamente, e várias vezes, para a aliança no dedo e para a foto dele com Lois vestida de noiva.

"Eu me casei com a Lois?" indagou ele, chocado.

Clark virou todas as demais páginas do álbum, e todas elas eram do casamento. O dia mais feliz da sua vida. Pelo menos, era o que acusavam as fotos. E todas elas eram dele com Lois, deslumbrante em seu vestido de noiva. Algumas eram deles dois juntamente com seus pais, com o General Sam Lane e Chloe. Em todas elas, ele sorria. Estranhamente, aquele era um sorriso seu que ele próprio desconhecia. Como se estivesse transbordando de felicidade. Algo que Clark não lembrava ter experimentado muitas vezes. Mas ainda não conseguia conceber. Como aquilo era possível? Lois era a mulher da sua vida? Mas ela era rude, grosseira e tagarela! Clark revirou o álbum novamente. Alguma coisa devia estar errada. Mas não. Não podia ser! Ele não conseguia acreditar. Era casado com Lois!

E ele fechou o álbum. Não podia mais ver. Não podia ver o que não entendia. E não sabia como lidar com aquilo. Era muito mais complexo do que lidar com seus poderes. Olhou fixamente para a aliança. O quê o teria feito se casar com Lois? pensou. O que quer que fosse, teria que descobrir sozinho. E o mais longe possível dali. Não podia confrontá-la. Não Lois! Ela o deixava sem reação. Ela o intimidava. Era a única pessoa com a qual não podia lidar. Clark se levantou e decidiu que precisava sair dali o mais depressa possível.

Ao atravessar a sala em direção à porta, porém, Clark ouviu a chave entrar na fechadura. Olhou para os lados. Não havia para onde ir, exceto pela janela. Mas estava na cobertura, e ele não podia voar. Não tinha jeito. Era tarde demais. Como a porta não estava trancada, era questão de tempo.

"Clark!" exclamou Lois ao vê-lo parado no meio da sala.

"Lois -" disse ele, chocado ao vê-la.

E ela sorriu. Estava diferente.

"Por onde andou?"

Mas Clark não conseguia pensar no que dizer. Ela estava igual, mas ao mesmo tempo, diferente. Tinha aquele mesmo brilho nos olhos e o sorriso contagiante. Mas havia um ar mais ponderado e seguro em Lois. Além do mais, ela estava ótima. Os cabelos estavam mais escuros. Talvez fosse o seu natural, imaginou ele. E ela vestia um tailleur preto que ressaltava suas formas esguias. Lois parecia muito mais... madura. Clark não queria encará-la. Isso o entregaria. Ela logo descobriria que havia algo errado. E enquanto ele não soubesse o que de fato acontecia, não podia dizer a verdade. Mas era impossível não olhá-la. Era atordoante e impressionante. Era Lois, e algo mais.

"Pensei que tivesse saído para atender alguma emergência" disse ela. "Você saiu tão apressado -"

E Clark continuava sem saber o que dizer. Aliás, ele não sabia nem o que pensar. Atender alguma emergência? pensou ele. Até aquele momento achava que trabalhava no Planeta Diário, e não no corpo de bombeiros.

Lois então percebeu que alguma coisa estava diferente. Olhou bem nos olhos de Clark, e perguntou:

"Você está bem?"

"Eu... eu, hum. Não" respondeu. Nada melhor do que a verdade, pensou. Ainda que não fosse toda ela.

"Algum problema?" perguntou ela, preocupada, colocando a valise sobre o sofá e aproximando-se dele.

E Clark se surpreendeu. Aquele era um lado de Lois que jamais havia visto antes. E não era apenas pelo fato de que se tratava de sua mulher, o que, aliás, ainda o incomodava. Era algo muito maior, e que ele ainda não compreendia.

"Lois, eu, bem..." disse ele. E ela o encarava com firmeza. E Clark via tamanha preocupação no seu olhar, que antes só vira nos seus pais. Resolveu então que talvez não fosse uma boa idéia contrariá-la. "Na verdade, está tudo bem"

Ela então sorriu, convencida. E essa foi a parte mais estranha para Clark. Ela acreditou.

"Ótimo, porque o Perry está maluco atrás de você sobre aquela matéria dos manhunters!"

Perry? Seria Perry White? pensou Clark. Então ele realmente trabalhava no Planeta Diário. E junto com Perry White!

"Lois, eu -" e Clark não sabia como terminar a frase. De fato, ele queria dizer a verdade. Talvez esclarecer as coisas fosse a melhor forma de sair daquela situação tão absurda quanto estranha. Mas era Lois Lane! Sua esposa! E isso ainda estava em fase de processamento!

"Ei, meu bem" disse ela, gentilmente, aproximando-se mais dele.

E Clark não sabia o quanto podia ser desastrosa aquela proximidade toda, de modo que se afastou, sutilmente. Mas era tarde. Havia uma parede atrás dele. E antes que ele pudesse fazer ou dizer qualquer coisa, Lois já estava perto o bastante para puxá-lo pela gola da camisa. E o beijo foi inevitável. Clark não sabia como fazê-lo. E se ela descobrisse? Mas não houve tempo para pensar ou planejar. Ao sentir os lábios quentes e macios de Lois pressionados contra os seus, sua primeira reação até foi a de se afastar. Afinal, aquilo era errado. Por outro lado, era sua esposa. E achou melhor não resistir, pelo menos, até descobrir o que acontecia. Clark então retribuiu o beijo de Lois, desesperado, imaginando se corresponderia corretamente. E quando se deu conta, segurava-a gentilmente pela cintura, envolvendo-a num abraço. Não lembrava de um beijo tão envolvente como aquele. E ele experimentou um sentimento de perdição completa enquanto mergulhava no calor dos lábios de Lois. Clark não queria que acabasse, quando, de repente, ele o desvencilhou gentilmente:

"Calma, Smallville" disse suavemente, enquanto Clark abria os olhos, despertando daqueles instantes de perdição, e ouvia Lois chamá-lo por um nome que somente ela usava. "À noite tem mais -" prometeu, sorrindo, enquanto caminhava em direção ao quarto.

E Clark não sabia se devia gostar ou não daquela promessa. Imóvel, viu-a se afastar para o quarto. Ainda sentia o calor e o hálito mentolado dos lábios de Lois na sua boca.

"Preciso que você me ajude a encontrar a lista de presentes!" pediu ela, do quarto.

Clark nada disse. Ficou pensativo, no meio da sala, quando Lois surgiu à porta, ao ver que não houve resposta.

"Olá? Terra chamando Clark!" chamou, ao vê-lo com o olhar perdido.

"Er... que lista?" indagou ele, ainda atordoado.

"Não se faça de desentendido!" pediu ela, voltando para o quarto.

Clark foi atrás dela, e a viu revirando as gavetas do armário. Felizmente, Lois parecia não perceber que ele havia mexido nas suas coisas instantes antes. Ou melhor, nas coisas deles. E ela se virou para vê-lo.

"Por que acha que eu voltei? Esqueci a lista!" explicou ela. "E temos que comprar os presentes hoje! O casamento da Chloe é na semana que vêm!" exclamou. "E não me diga que esqueceu porque falamos disso ontem à noite!"

"Casamento... da Chloe -?" indagou Clark, chocado.

Lois o encarou. E ele tentou remediar:

"Como pudemos deixar para última hora?"

De fato, nada mais era tão estranho quanto o fato dele estar casado com Lois.

"Não, e o pior é que somos os padrinhos!" exclamou ela, olhando para Clark, que continuava pensativo.

"Você podia me ajudar a encontrá-la" pediu ela.

Clark então olhou à volta, e usou sua visão de raio-x. Mas não encontrou coisa alguma.

"Lois, tem certeza que está aqui? Pode ser que tenhamos esquecido no jornal" sugeriu ele.

"Duvido muito" respondeu ela, pensativa, e olhando para o relógio. "Acho melhor você se vestir. Já estamos atrasados!"

instantes depois, quando Clark voltou à sala, vestindo terno e gravata, vestuário com o qual não estava nem um pouco acostumado, viu Lois falando ao telefone, caminhando de um lado a outro:

"Você não faz idéia do favor que está me fazendo! Imagina se ela descobre que deixamos para última hora?" dizia ela, enquanto se aproximava de Clark e segurava o telefone com o ombro, para ajeitar sua gravata.

Surpreso com o gesto inesperado, Clark apenas permitiu que ela o fizesse. Lembrou então de Lois ter feito o nó da sua gravata no dia de sua formatura no Smallville High. De certa forma, agora era diferente.

"Acha que consegue me mandar até o meio-dia?" perguntou ela ao telefone, sorrindo para Clark e depois olhando para a gravata.

Aquilo era totalmente estranho para ele. Lois era sua esposa. E Clark ainda não conseguia aceitar aquele pensamento. Enquanto ela apertava o nó de sua gravata, distraída com a conversa, ele a olhava nos olhos, como se tentasse descobrir o que o havia feito se casar com ela. Embora não parecesse muito difícil de imaginar, ainda assim, ele não conseguia entender. Eram tão diferentes! Eram como água e óleo! E tudo aquilo ainda era inacreditável. Teriam eles mudado tanto assim?

"Ótimo! Então falamos mais tarde!" disse ela, desligando.

"Com quem falava?" perguntou Clark. E Lois o surpreendeu com mais um beijo. Desta vez, rápido. E novamente Clark não teve tempo de evitá-lo. Ou talvez, não o quisesse.

"Você está ótimo!" disse ela, atravessando a sala para colocar o telefone no gancho e indo para o quarto. "Com o Alfred" respondeu então, voltando logo depois, com um par de óculos nas mãos, os quais entregou para Clark, que não sabia o que fazer com eles. Ao ver Lois se virar para pegar sua valise sobre o sofá, deduziu que eram seus, e os colocou.

"E, o quê ele queria?" perguntou ele, sem ao menos saber quem era.

"Pedi a ele para me mandar a lista por e-mail" completou ela.

"Que ótimo!" exclamou Clark, completamente confuso, ainda tentando se adaptar àquela nova e desvairada realidade, enquanto Lois abria a porta e os dois saíam juntos.

Clark ajeitou os óculos, fechou a porta, e respirou fundo, imaginando o que ainda estava por vir...

Continua...