AS MARCAS DE UM ANJO
por Nina Neviani
Capítulo II – Lembranças, lágrimas e abraços...
Estava deitada no seu quarto. Ela não tinha sono, talvez pressentisse o perigo. Devia ser tarde, pois no quarto havia pouquíssima claridade. O silêncio que reinava no quarto foi quebrado por passos fortes. Ela olhou para a porta quando ela se abriu, pôde identificar um vulto de um homem alto e forte. Algo lhe dizia que ele estava com muita raiva.
– O que você está fazendo aqui? Como entrou na minha casa nesse horário? – disse com voz decidida. Por dentro estava muito nervosa, mas jamais demonstraria. Começava a aprender que com aquele homem não podia demonstrar medo em momento algum.
– Por que você fez aquilo, Shunrei? – ela estava certa: o homem estava muito raivoso. Ele foi se aproximando da cama lentamente. Ela agradeceu aos céus por não estar vendo os olhos dele, mas mesmo assim poderia imaginar a ira que transbordava deles. – Eu já havia dito para que você não me desobedecer, então porque você o fez? – a raiva não havia diminuído da voz, pelo contrário.
Ele já estava na cama. Shunrei notou que ele segurava algo nas mãos muito parecido com uma faca, estremeceu e fechou os olhos. Ele a virou de bruços, ela tentou resistir mas ele era incomparavelmente mais forte do que ela.
– Acho que agora você vai aprender a me respeitar. – Shunrei escutou-o dizer antes de sentir uma dor enorme nas costas, em pouco começou a sentir o sangue escorrendo pelas suas costas e chegar ao lençol.
A crueldade do homem era tanta que ele a cortava lentamente, como se sentisse prazer em ver cada gota sangue saindo do corpo da garota. Ela sentia muita dor mas esforçou-se para abrir os olhos.
A claridade começava a entrar em seu quarto. Era dia. Fora um pesadelo. Acalmou-se e secou as lágrimas do rosto. Estou no Japão e não na China, aqui ele não pode me encontrar, dizia para si mesma. Na realidade não fora um sonho, mas sim a lembrança do pior momento da sua vida. Levou uma das mãos às suas costas, mas exatamente à sua cicatriz, como se quisesse comprovar que fora mesmo uma lembrança. Levantou-se, mas não sem antes olhar para a cama onde estivera dormindo e verificar se não havia sangue no lençol. O pesadelo fora tão real que ela julgava ter sentido a mesma dor que sentira anos atrás.
No banheiro, olhou-se demoradamente no espelho. Os seus olhos estavam vermelhos e estava com olheiras. Seu rosto já estava um pouco maltratado pelos anos que tinham se passado desde que chegara ao Japão. Anos que viveu, e que ainda vivia, com medo. Anos que passara olhando sempre ao redor pronta para fugir caso revisse aqueles olhos que um dia a encantaram, mas que se vistos hoje causariam um imenso pavor.
Entrou embaixo do chuveiro. A água caindo em seu corpo aos poucos ia tranqüilizando-a. Fazia algum tempo que não tinha aquele pesadelo, ela começava a acreditar que essa lembrança fora despertada pelo belo paciente da noite anterior.
Uma semana depois...
– Olha só quem está por aqui! – Seiya brincou. – Pensei que fosse ficar mais uma semana em casa se recuperando.
– Seria ótimo! Mas nada é perfeito. – Shiryu respondeu bem-humorado. Essa semana que recebera de descanso e para se recuperar do corte no braço fizera um bem enorme em seu estado de espírito. Sentia-se renovado. – Na verdade, três dias seriam o suficiente para eu me recuperar. – confessou.
– Folga a mais não faz mal para ninguém. – apoiou o outro policial, e mostrando a chave do carro, perguntou – Pronto para o serviço?
– Claro!
Caminharam até a garagem da delegacia. O sol começava a esquentar a manhã de Tóquio. Provavelmente seria um dia longo, mas Shiryu gostava do seu trabalho, mesmo a sua folga tendo sido bem aproveitada, estava feliz em voltar à "ativa".
No interior do veículo, Seiya perguntou:
– Mas esse braço como está? – apontou para o braço esquerdo o companheiro.
– Novinho em folha. Também, fui atendido por uma enfermeira que era um verdadeiro anjo!
– Sério? Quando eu vou para o hospital nunca tem uma enfermeira bonita pra me atender!
– Mas foi muita sorte minha, ela é da pediatria, estava na emergência apenas para cobrir uma outra enfermeira.
– Bom, eu não posso reclamar de o Filippo raramente ficar doente. Mas me conta, rolou alguma coisa mesmo com você cortado?
– Infelizmente, não. Ela foi extremamente séria, pra falar a verdade foi quase lacônica. Apesar de que quando ela entrou no quarto, eu achei que ela tinha me olhado de um jeito diferente, mas acho que foi imaginação minha.
– Vai ver ela era casada ou tinha namorado. – arriscou.
– Ela não usava aliança, pelo menos. – sorriu – Mas eu acho que ela gostou da minha tatuagem.
– Você e essa sua tatuagem... – Seiya revirou os olhos.
– Depois, eu a acompanhei até a estação. – disse ele com indiferença que não foi percebida por Seiya.
– Aí as coisas começam a ficar boas! O que aconteceu? – perguntou o policial empolgado.
– Nada. E eu percebi que ela não queria a minha companhia, então eu nem forcei nada, se ela falasse alguma coisa eu pediria o número dela, ou qualquer outra coisa, mas como ela não disse nada, além do "tchau"... paciência.
– Shiryu, você não deu nem um beijinho de agradecimento pelo... tratamento recebido? – Seiya desviou o olhar da direção e olhou para o amigo, ao ver que ele balançava a cabeça negativamente, continuou – Eu não sabia que você era tão lerdo!
– Ora quem está dizendo! Você não sai com ninguém a muito mais tempo do que eu! – defendeu-se.
– Eu tenho um filho pra cuidar, por isso.
– Deixando a Shunrei de lado, e falando no seu filho, como vai o Filippo?
– Peraí, deixando quem de lado? – perguntou Seiya, com um risinho no rosto.
Shiryu olhou para cima, sabia que pelo seu amigo não passava nada...
– A enfermeira. Nós não falávamos dela? Ela se chama Shunrei.
– Se uma semana depois você ainda lembra o nome dela, e porque a garota mexeu mesmo com você. Como eu sou um amigo muito legal, e como você está precisando de uma namoradaurgentemente, vou fazer o seguinte: no horário que ela sai do hospital nós passamos por lá e se tivermos sorte, você admirará o seu "anjinho". – Ambos deram risada e começaram a olhar atentamente o movimento das ruas de Tóquio.
Horas mais tarde...
Shunrei estava em seu horário de almoço. Quando entrou na sala destinada às enfermeiras, ela cumprimentou as que já se encontravam no local e sentou-se à mesa começando a comer o seu sanduíche. Enquanto comia lembrou-se que naquele dia fazia uma semana desde que tivera aquele pesadelo horrível. Desde então, não havia mais tido sonhos ruins como aquele, porém seus sonos foram agitados e ela andava receosa. Com os cotovelos na mesa, apoiou a cabeça em suas mãos. "Tenho que esquecer o passado de vez. Aqui eu estou segura." Falava mentalmente para si mesma.
– Shunrei, querida, está tudo bem com você? Nesses últimos dias eu tenho percebido que você está tão distante? Aconteceu alguma coisa? – a colega da emergência perguntara.
Shunrei olhou para ela. "Será que ela sabe? Impossível! Ninguém aqui sabe o porquê da minha saída da China." Então disse o mais calmamente que pôde:
– Está tudo bem, não se preocupe. Acho que estou apenas um pouco cansada. – sorriu e decidiu mudar de assunto – E o seu filho como está?
Ficou conversando sobre crianças com a colega até o final do horário de descanso.
O resto do dia passou rapidamente no hospital. Novamente cobriu o horário da amiga na emergência, e dessa vez não houve nenhum paciente estonteante como na semana passada. Às onze e meia da noite deixava o hospital.
A rua estava praticamente deserta. Estava andando perdida em seus pensamentos, quando a sua frente viu um homem um tanto suspeito vindo ao seu encontro. Achou melhor atravessar a rua. Para aumentar o seu temor o homem fez o mesmo. Tentou andar mais rápido, mas o homem sacou um canivete. Ela estremeceu, com certeza um revólver causaria menos medo.
– Entrega a bolsa. – o bandido ordenou com o canivete apontado para ela.
– Eu estou saindo trabalho, só tenho o dinheiro do metrô... – queria que sua voz soasse mais convincente, afinal falara a verdade, mas estava tremendo.
– Passa logo a bolsa. – Ela resolveu obedecer quando virou para tirar a bolsa do ombro percebeu que o assaltante começou a correr.
– Pronto, Shiryu! Estamos na rua do hospital da sua Shunrei. – disse Seiya ainda debochando do colega enquanto fazia a curva que daria acesso à rua do hospital. Mas parou de sorrir quando observou uma cena estranha mais à frente. – Olhe aquilo ali. – disse indicando um homem que estava com um canivete apontado para uma mulher.
– É a Shunrei! – Shiryu disse ao reconhecê-la. Antes de Seiya parar totalmente o carro, ele saltou e correu em direção ao bandido, que ao vê-lo com o revólver na mão começou a correr também.
Shiryu deu graças pelas horas que ele e os demais policiais passavam na academia para melhorar o condicionamento físico quando alcançou o bandido. Derrubou-o no chão. Estava sentido muita raiva daquele homem. Onde já se viu assaltar alguém como a Shunrei? Algemou-o. Seiya chegou para ajudá-lo.
– Deixe que eu cuido dele, vá cuidar da mulher. – Seiya disse enquanto carregava o bandido, que era bem mais fraco do que eles, até o veículo. No caminho explicava ao assaltante os direitos que ele teria.
Shiryu olhou para Shunrei. Ela parecia estar em estado de choque. Aproximou-se.
– Está tudo bem com você? Ele te machucou? – perguntou preocupado.
Ela respondeu a última pergunta do policial com um movimento negativo de cabeça, mas mesmo assim começou a chorar. As lágrimas pegaram o policial de surpresa. Shiryu chegou mais perto, e então ela o abraçou. Sua cabeça não passava do peito do policial. Ele tentou confortá-la.
– Está tudo bem agora. Não precisa chorar. – disse baixinho.
– Eu sei, é que eu tenho trauma de facas... – ela explicou, ainda abraçada ao policial. Então ele lembrou do diálogo que os dois tiveram no hospital.
– Mas não aconteceu na... – foi interrompido por Seiya.
– Pronto, Shiryu. Ele já está lá atrás no... – parou seu discurso e olhou com uma sobrancelha erguida para o amigo que estava abraçado à enfermeira. Quando ele dera a idéia de "cuidar dela" referia-se apenas ao procedimento normal e não a essa cena digna de um romance! Bem pelo menos o amigo não era tão devagar quanto julgara naquela mesma manhã.
Shunrei percebeu que estava chorando abraçada ao policial. Com vergonha do seu descontrole, afastou-se de Shiryu.
– Desculpe-me. – murmurou para ele, virando-se para Seiya completou – Eu não sei como agradecer vocês. – sua voz ainda soava amedrontada.
– Esse é o nosso trabalho. – respondeu Seiya – Mas, você não me parece estar em condições de voltar para casa sozinha. Shiryu pode lhe acompanhar se você quiser.
– Eu não quero dar mais trabalho. – ela respondeu indecisa.
– Não será trabalho demais, pelo contrário, nosso turno já está acabando. Eu vou até a delegacia entregar aquele ali – disse apontando com a cabeça para o carro no qual estava o assaltante – e de lá vou para casa. O Shiryu acaba o turno dele te escoltando até em casa. Não será a primeira vez que faremos isso. – mentiu.
– Tem certeza? – ela estava com vergonha de passar minutos a mais com Shiryu depois da cena que acabara de dar.
– É só você querer. – disse Shiryu que até então estava excluído do diálogo.
– Obrigada.
– Tchau, boa noite pra vocês. – disse Seiya. No interior do carro deu um sorrisinho. "Seiya você é genial!" Disse para si mesmo.
Na estação de metrô, sentaram lado a lado enquanto esperavam o metrô. Shiryu percebeu que Shunrei tremia.
– Está com frio? – Perguntou enquanto começava a tirar a sua jaqueta.
– Não, eu acho que ainda estou um pouco nervosa. – ela explicou, e fez um gesto que informou não ser necessário que ele lhe desse a jaqueta.
Shiryu ponderou como ela reagiria se a confortasse novamente. Colocou o braço o no ombro dela e disse com a voz mais tranqüila que conseguiu:
– Calma, Shunrei, não aconteceu nada com você. A essa hora, Seiya já deve estar cuidando para que ele não saia da prisão tão cedo.
– Eu não precisava ir lá na delegacia depor?
– Não... ele foi pego em flagrante, então não seria necessário.
Ela fez que compreendia com um gesto. E ele voltou a falar.
– Veja, o metrô chegou. Vamos.
Shiryu surpreendeu-se quando no metrô, Shunrei apoiou a cabeça no seu ombro. Sorriu internamente. Porém, o trauma de Shunrei voltou-lhe a mente. "Será que ela já se machucou com uma faca?" Ele perguntava-se. "Ou será que a machucaram? Não! Quem faria isso com ela? Mas como julgava que ninguém fosse capaz de fazer mal nela, não sabia nada do seu passado!" Simples. Dela emanava uma bondade única, não fora à toa que a comparara a um anjo. Olhou para ela, que estava olhando para ele.
– Como você ainda lembra o meu nome? – ela perguntou e involuntariamente sorriu ao vê-lo sorrir.
– Eu não lhe disse que era um belo nome? Eu não me esqueceria tão cedo. Aliás, mesmo que seu nome não fosse marcante, você fez um ótimo trabalho meu braço está perfeito.
– Desculpe-me eu esqueci de perguntar como você havia se recuperado. Mas eu julgo que bem já que você não foi até o hospital retirar o curativo. – ficou vermelha. Não queria que ele soubesse que havia perguntado no hospital se alguém com as descrições dele não fora retirar um curativo no braço.
– Eu disse que você fez um ótimo trabalho. Não foi necessário ir até o hospital eu mesmo tirei. – explicou. "Então quer dizer que você perguntou sobre mim?"
Shunrei sentiu um alívio por ele não comentar nada sobre ela saber que ele não fora até o hospital. Percebeu que a próxima parada era a sua.
– Eu desço na próxima parada. – ela disse levantando-se. Não sabia explicar porque ficou contente ao perceber que Shiryu levantara-se também. Porém, lembrou das palavras do outro policial: "O Shiryu acaba o turno dele te escoltando até em casa. Não será a primeira vez que faremos isso". Desanimou-se. Não tinha nada a ver com ela. Ele estava fazendo apenas o seu trabalho.
Na frente da casa de Shunrei...
– Muito obrigada, Shiryu. Agradeça ao outro policial também.
– Claro. Este é o nosso trabalho. Mas por favor, evite andar sozinha naquela rua. Ela é muito perigosa.
– Claro, eu não darei mais trabalho a vocês. – ela disse sorrindo.
– Não é por isso. Alguém pode machucar você. – ela concordou timidamente. – Boa noite, Shunrei.
– Boa noite. – ela disse antes do policial se afastar.
Novamente ela pensaria no belo policial antes de dormir, mas dessa vez nem de longe sentiria raiva dele.
Continua...
N/A:Para quem não leu "A Deusa do Crime" o Seiya tem um filhinho, o Filippo. Ele é filho dele com a Shina.
Ah, eu não sei nada sobre procedimentos policiais... aquela referência ao flagrante foi puro chute.
O que mais? Ah, eu confesso que não morro de amores pelo Seiya, mas nesse capítulo ele estava maravilhoso, não? Pra quem gosta dele, como ele é o melhor amigo do Shiryu ele vai aparecer bastante nessa fic.
Então... já sabem quem é esse homem cruel que maltratou a Shunrei no passado?
Nina Neviani