AS MARCAS DE UM ANJO
Nina Neviani
Capítulo III – Arriscar
Shunrei, quando despertou, sentiu-se muito bem. Na realidade, fazia muito tempo que não acordava feliz. Naquela noite tivera um sono sem sonhos e, obviamente, sem pesadelos. Ao olhar no relógio, deu-se conta que estava uma hora adiantada. Caminhou até a janela e ficou observando céu ainda estava escuro dar lugar a uma manhã ensolarada.
Lembrou-se de tudo que acontecera nos últimos dias, especialmente do episódio da noite anterior. Se Shiryu e o outro policial não tivessem chegado no momento certo, provavelmente não teria dormido tão tranqüilamente.
Apenas uma noite bastara para que o fato de pensar no belo policial não a perturbasse mais. Agora Shunrei percebia que algo o diferenciava daquele que a fizera sofrer no passado, porém ainda não sabia ao certo o que era. Então, a imagem dele a abraçando e tentando acalmá-la lhe veio a mente. Era isso: Shiryu mostrara que sabia confortar alguém, ou pelo menos tentar. Livrou-a de ser machucada, e não o oposto. O conhecia pouco, mas desconfiava que ele era uma pessoa especial.
Mirou o sol, agora já mais visível, mostrando com o seu movimento que o tempo passava. Ela sabia disso. Tinha vinte e sete anos e sonhava em ter filhos. Mas para isso teria que se arriscar naquele estranho sentimento chamado amor. Porém, mesmo que não planejasse ter filhos, um dia ela teria que entregar o coração dela alguém, já que não pretendia ficar sozinha o resto da sua vida. No entanto, lhe faltava coragem para deixar de proteger a si mesma. Ou talvez, não fosse a coragem que faltasse, talvez precisasse encontrar alguém em quem confiar.
Assim que o despertador tocou, ela entrou no chuveiro, pensando que enquanto não encontrava aquele que lhe inspirasse confiança, o trabalho era a melhor forma de usar o tempo. Não era lhe agradava a idéia de ter alguém apenas para não estar sozinha. Era totalmente a favor de estar antes só do que mal acompanhada, principalmente por já ter vivido a experiência de estar pessimamente acompanhada. Assim, com calma esperaria a pessoa especial para ela.
Shiryu estava sentado na sua mesa na delegacia. Dormira pouco, muito pouco, na verdade, pois passara um bom tempo pensando em Shunrei. Ela simplesmente o encantava. Não era mais um garoto, achava que aos trinta anos já vivera o necessário para ter uma boa noção de relacionamentos e não se lembrava de ter sentido nada parecido com o que sentia agora. E a mulher que despertava todos esses sentimentos era quase uma desconhecida. O que sabia dela? Primeiro, que era dona de uma beleza única. Era serena. Parecia ser forte, mas no fundo demonstrava ser extremamente sensível. Possuía um sorriso encantador. E... tinha esse estranho trauma de facas. Será que ela se machucou com facas, ou ela machucou alguém?
Um forte tapa nas costas o trouxe novamente a realidade. Seiya já chegara ao trabalho.
– Já por aqui, Seiya? Ainda é cedo pra você, não? – o amigo costumava chegar em cima do horário, não era normal ele chegar tão adiantado.
– É cedo, mas resolvi vir mais cedo para saber dos detalhes. – Seiya sorria.
Shiryu também sorriu, e respondeu calmamente.
– Não há detalhe algum. – Pensou melhor e continuou. – Se bem que, mesmo que houvesse, você não saberia.
– Eu estava certo. "Mesmo se houvesse detalhe você não me contaria". Essa Shunrei está mexendo mesmo com você, hein? – Pegou um biscoito que estava na mesa do amigo – Já que não tem detalhe algum, me conte o que aconteceu no caminho até a casa dela. Afinal, eu não cheguei mais cedo no trabalho por nada.
– Nada de mais. Ah, tem algo sim que eu achei estranho. Ela tem trauma de facas. Por isso que ela ficou tão abalada com aquela tentativa de assalto. Falando nisso, e o... – foi interrompido
– Pagando pelos seus crimes. Não se preocupe, ele não ameaçará mais a sua enfermeira. – Sorriu e pegou mais um biscoito – Agora no que diz respeito ao trauma dela, é estranho mesmo. Especialmente para alguém com a profissão dela. Mas pode ter sido só alguma desculpa para te abraçar. – Seiya riu da própria observação.
Shiryu, porém, nem ao menos sorriu, achava o assunto sério para rir das piadas do Seiya.
– Não seja idiota, Seiya. Ela não mentiu com relação a esse trauma porque quando ela me atendeu, ela falou algo sobre cortes.
– O que ela disse? – Seiya agora não sorria mais, pelo contrário, estava interessado no assunto.
– Alguma coisa sobre os cortes com facas afiadas doerem menos...
– É mesmo estranho. E o que você vai fazer agora?
– A que você se refere? Ao trauma?
– Agora quem está sendo idiota é você. Eu me refiro a você dois. E repito: o que você fazer? Mandar bombons, flores, ingressos para o cinema, convidar para sair... ? – Seiya explicou como quem falava para um adolescente.
– Eu ainda não tinha pensado em nada ainda... – confessou.
Seiya suspirou.
– Eu recomendaria as flores. – disse levantando-se da cadeira.
– Que tipo?
– Ah, Shiryu! Foi você quem teve a mulher nos braços, você é quem deve saber! – disse quando já estava quase na porta.
Shiryu levantou-se apressado.
– Eu vou até aquela floricultura, a duas quadras daqui. – Jogando as chaves do carro para Seiya, completou – Quando começar o nosso horário de trabalho passa lá pra me pegar.
Na floricultura, Shiryu observou as flores tentando relacioná-las a Shunrei. Estava indeciso até que seus olhos pousaram em um buquê de rosas na cor champagne. Simples, mas refinado. Uma beleza discreta, mas ainda assim, encantadora. Era Shunrei. Forneceu o endereço do hospital.
Quando saiu da floricultura, Seiya já o aguardava.
– Pronto, já cuidou dos assuntos do coração, agora é hora de trabalhar.
Shunrei chegou bem-humorada ao trabalho. Antes de entrar, conversou com a sua colega sobre a tentativa de assalto na noite anterior. Entretanto, não puderam conversar muito, já que logo começaram a trabalhar. A manhã foi cheia de trabalho, por esse motivo, o horário do almoço aparentou chegar mais cedo. Na sala das enfermeiras estava um lindo buquê de rosas. Shunrei por um momento invejou a enfermeira que ganhou as flores, mas logo parou de pensar dessa forma, visto que a inveja era um dos sentimentos que ela mais desprezava. Foi para a parte destinada às refeições, lá estavam as demais enfermeiras.
– Por que não nos contou que você tinha um admirador, Shunrei? – Uma enfermeira indagou com um sorriso nos lábios.
– Ela não contou nem para mim! – Disse a amiga de Shunrei, fingindo sentir-se ofendida.
– Como assim, "admirador"? Do que vocês estão falando? – Perguntou Shunrei, um tanto confusa com as manifestações das colegas.
– Ora, Shunrei! Estamos falando das flores que você recebeu!
Por um curto período de tempo, Shunrei ainda não conseguiu descobrir do que as colegas falavam, mas de repente...
– Aquelas rosas da sala ao lado são para... mim? – perguntou sem esconder o espanto.
– Não nos diga que não sabia?
– Não...
– O que está esperando. A pessoa que teve o bom gosto mandar aquelas rosas deve ter escrito uma bela frase no cartão! – disse a amiga piscando.
Shunrei se aproximou das flores. Eram lindas, mas... quem as mandara? Bem só poderia ser... não, não era tão sortuda assim! Leu no envelope do cartão o seu nome escrito em uma letra firme.
"Que essas rosas consigam formar em seu rosto o seu encantador sorriso, ainda que eu não esteja perto para poder admirá-lo. Desejo que você tenha um ótimo dia.
Shiryu"
Depois de ler essas palavras foi impossível não sorrir. Seus olhos encheram de lágrimas, tratou de logo secá-las. Fazia tempo que não a elogiavam. Os últimos elogios verdadeiros que recebera fora do seu avô, enquanto ainda estava na China. Afastou o passado da sua mente e concentrou-se no cartão. No verso, estavam dois números de telefone, que ela deduziu ser da casa e do celular dele. Guardou o cartão na sua bolsa e voltou para o refeitório. Dessa vez as colegas foram mais diretas nas perguntas. Shunrei esquivou-se dizendo que o suposto admirador tratava-se apenas de um amigo. O que, de certa forma, era verdade.
Perto de acabar o horário de almoço, amiga de Shunrei a chamou até o canto da sala para conversar.
– Shunrei, eu queria dizer que falei com o meu marido sobre o que aconteceu ontem à noite com você, e nós decidimos que ele virá me buscar quando acabar o meu turno, assim você não ficará além do seu horário normal. Eu agradeço por tudo e que você fez, e peço desculpa pelo que aconteceu.
Shunrei concordou com o que a amiga disse e explicou que ela jamais teria culpa sobre o fato ocorrido na noite passada.
Shunrei chegou em casa mais cedo e a primeira coisa que fez foi colocar as flores em um vaso com água e açúcar, e o vaso foi colocado em seu quarto. Depois tomou um demorado banho. Quando saiu do banheiro e olhou as rosas, decidiu que telefonaria para Shiryu. Seria uma falta de educação não agradecer por ter recebido rosas tão lindas. Ansiosa e apreensiva foi até a sua bolsa e pegou o cartão. Discou o número da casa.
Shiryu chegou em casa sentindo-se exausto. Na geladeira só encontrou comida congelada. Desanimou-se e resolveu tomar banho primeiro. Estava caminhando para o banheiro quando o telefone tocou. Estranhou porque não costumava receber telefonemas.
– Alô.
– S-Shiryu? – Ele escutou uma voz feminina um pouco hesitante do outro lado da linha. Reconheceu a dona daquela voz no mesmo instante.
– Shunrei?
– Sim, sou eu. Eu atrapalho? Quero dizer... você está ocupado?
– Não, lógico que não. Como você está, Shunrei? – perguntou sorrindo. Estava feliz por ela ter ligado.
– Eu estou bem, obrigada.
– Como foi seu dia?
Shunrei não estava acostumada a ter alguém com quem pudesse conversar sobre o seu dia, e surpresa, se viu contente, por poder compartilhar as suas atividades com alguém.
– O dia no hospital hoje foi repleto de pacientes, mas, felizmente, nada grave. – Disse sorrindo. – E o seu dia como foi?
– Eu também tive um dia bastante corrido, mas nada fora do comum. – Mudou de assunto – Gostou das flores?
– Claro! Desculpe, esqueci de agradecer antes. Elas são lindas. Obrigada, mesmo.
– De nada. – pensou um pouco, sobre convidá-la para sair. Concluiu que o máximo que poderia acontecer era ela recusar o convite – Shunrei, você trabalha aos sábados?
– Em alguns, sim.
– E nesse próximo sábado? – Perguntou ele esperançoso
– Hum... Nesse não. Por quê?
– É que... bem... se você pudesse e quisesse, nós poderíamos sair sábado à tarde, ir ao parque por exemplo...
Shiryu a estava convidando para sair!
– C-claro, claro! Sairemos sim.
– Ótimo! Dê-me o seu número eu ligarei para você no sábado de manhã, ok?
– Sim. – forneceu seu número de telefone. – Certo. Até o sábado, então.
– Até. Uma ótima semana para você.
– Para você também, Shiryu. – E desligaram o telefone.
Shiryu mal acreditava que iria sair com Shunrei! Enquanto tomava banhou cantou uma música que ele nem se lembrava que sabia. Depois até mesmo a comida congelada pareceu mais saborosa. Esta noite ele dormiu muitíssimo bem.
Shunrei também acordou bem-humorada. E assim continuou a semana toda. O motivo de tanta alegria era, obviamente, o encontro que ela teria no sábado com o policial que atualmente povoava seus sonhos. Em contrapartida de tanta alegria, e não raramente, o passado mostrava que não estava tão esquecido e sua consciência lhe indagava se ela não iria se machucar novamente. Então se lembrava dos abraços... das flores... Sem dúvida chegara a hora de arriscar!
E o sábado chegou!
Na conversa por telefone decidiram se encontrar as quatro da tarde no parque. O relógio marcava duas horas e Shunrei ainda não decidira que roupa usaria. Decidiu ir normal, se ele gostasse, ótimo, se não... paciência. Não mudaria para agradar uma outra pessoa, afinal não é inteligente cometer o mesmo erro duas vezes. Pegou um dos seus vestidos preferidos, porém simples. Seu cabelo iria trançado, como de costume. E uma maquiagem simples também.
Chegou no parque. Logo avistou Shiryu, que estava... lindo! Shunrei o observa a uma certa distância. Ele usava uma calça jeans e uma camisa branca, mas eram poucas as mulheres que passavam e resistiam à tentação de admirá-lo. Um temor voltou a se apoderar de Shunrei. Uma vez já se relacionara com um homem que também encantava várias mulheres e o resultado fora desastroso. Mas não podia pensar assim! Dessa vez, se acontecer alguma coisa, será diferente! Respirou fundo. Caminhou até ele.
Shiryu sentiu alguém se aproximar. Era ela. E quando olhou para ela notou que ela estava... maravilhosa! Gostou de vê-la sorrir. Na realidade adorava o sorriso dela, era uma pena que ela sorrisse tão pouco.
– Olá, Shunrei. – saudou-a sorrindo.
– Oi, Shiryu. – Desculpe-me pela demora.
– Tudo bem com você? – quis saber. Ela apoiou-se na mureta ao lado dele e também observava o lago. Era mais... seguro do que olhar para o Shiryu.
– Estou ótima e você? – olhou para ele.
– Também. Está tomando mais cuidado quando sai do hospital?
Ela gostou de saber que ele, mesmo que fosse de uma forma profissional, se preocupava com ela.
– Sim. E além disso, eu estou saindo no meu horário normal, que é mais cedo e menos perigoso.
– Melhor assim.
Ficaram algum tempo quietos. Apenas observando o lago.
– Eu sei pouco sobre você, Shiryu. – comentou.
– Eu também sei pouco sobre você. Bem, o que você quer sobre saber de mim?
– Não sei... Por que você decidiu ser policial, por exemplo.
– Eu não tive muitas escolhas. Quando saí do orfanato, sabia que poderia tomar o caminho certo ou o errado. Decidi escolher o que eu achava certo. E decidi ser policial.
– Orfanato, você também é órfão?
– Sou sim. Por que "também"? Você é órfã?
– Sim. Sou, mas não cresci em orfanatos. Eu morava com meu avô.
– Não mora mais?
– Ele morreu pouco depois que vim para o Japão. – a lembrança do avô ainda mexia com ela. Escutou-o dizer que sentia muito pela morte do avô dela. Mudou de assunto – Que eu sou chinesa você sabe, não?
– Sim. – sorriu – Você fala muitíssimo bem japonês, apenas em alguns momentos você fala com um pequeno sotaque.
– Eu já estou a sete anos no Japão, e na China já estudava um pouco de japonês com meu avô, mas acredito que não perdi todo o sotaque.
– Eu gosto do jeito que você fala. – a confissão deixou Shunrei vermelha – Sabe, no orfanato me contaram que provavelmente os meus pais eram chineses.
– Verdade?
– Foi o que disseram. – ficaram mais alguns instantes em silêncio. Dessa vez foi Shiryu quem retomou a conversa – Shunrei...
– Sim?
– É... Bem, eu queria saber se tem alguém na sua vida.
– Não. Não há ninguém na minha vida.
– Eu acho que você já deve ter percebido que eu estou interessado em você e ... – ela o interrompeu.
– Shiryu, eu tive no passado um relacionamento que terminou de uma forma não muito boa, e eu desde então tenho um certo... receio de me envolver novamente.
– Eu entendo. – Ele olhou para o lago e voltou olhar para ela. – Mas eu queria que você pelo menos soubesse que eu a respeito muito. E se você quiser um amigo eu estou aqui, e se você quiser tentar um relacionamento, bem... eu também estou aqui. – sorriu. Ela sorriu também.
O que ela estava fazendo? Não passara a semana inteira sonhando em ouvir aquelas palavras! Não deixaria uma chance dessa passar assim! Respirou fundo novamente. Era o momento de arriscar.
– Eu acho que ... não custa nada tentar! – sorriu.
– Prometo que farei o possível para que você não se arrependa. – ele disse olhando nos olhos dela.
Ele a beijou na testa.
– Shiryu, você não se importa, é que eu tenho que ir para a minha casa? Eu tenho alguns afazeres... – era mentira, mas não queria ficar mais tempo ali olhando para aqueles olhos. Precisava ir para a sua casa e refletir sobre tudo o que ocorrera naquela tarde.
– Lógico que não me importo. Eu posso levá-la. Meu carro está estacionado logo ali.
– Eu agradeço.
Shiryu percebeu que o fato de ela ter aceitado o relacionamento ainda a dividia. Shunrei era com certeza uma mulher com muitos mistérios, e ele queria desvendá-los, mas esperaria o tempo que ela quisesse. E queria estaria disponível para ajudá-la quando ela precisasse. Conversaram apenas sobre assuntos impessoais no caminho até a casa de Shunrei. Shiryu disse onde morava e disse que quando ela precisasse poderia ligar para ele. Desceu do carro e acompanhou-a até a porta da casa.
– Shunrei, – ele achou melhor esclarecer algumas coisas – eu queria que você soubesse que pode contar comigo, e se você tiver algum receio você pode, ou melhor, deve falar para mim. E também se eu fizer algo que te aborreça. – Percebeu que Shunrei sorria. – O que foi?
– O seu jeito. Não se preocupe Shiryu, eu confio em você. – Ela ainda sorria.
– Bom saber...
Os dois foram se aproximando e Shiryu encostou seus lábios nos dela. Ele não queria que ela pensasse que queria se aproveitar dela, mas quando iria pôr fim ao beijo sentiu a delicada mão de Shunrei no seu pescoço, trouxe-a para mais perto e aprofundou o beijo.
Depois de muito imaginar, era muito bom sentir o gosto dos lábios de Shunrei. E como era de se esperar, o beijo dela era tão maravilhoso quanto ela. Quando o beijo acabou Shiryu ficou contente em perceber nos olhos de Shunrei que ela gostara tanto do beijo quanto ele.
Ainda estavam abraçados quando ela disse:
– Eu tenho que entrar.
– Certo. – beijou-a na testa – Tchau.
– Tchau.
Continua...
