AS MARCAS DE UM ANJO
por Nina Neviani
Capítulo IX – Irremediável
– O senhor não precisa se preocupar seu machucado não foi muito profundo.
Não queria, mas não conseguiu reprimir um sorriso quando ela o fez lembrar o dia em que se conheceram. Lembrou como ela o havia encantado mesmo sendo distante e tratando-o de um modo estritamente profissional.
– Isso é bom. – e para tentar "quebrar o gelo" ele dissera – E a senhorita não precisa me chamar de senhor.
Ambos riram. E o clima animoso mudou para outro. E ele teve vontade de beijá-la. Tivera essa mesma vontade no dia em que ela cuidara do ferimento dele. Estava quase realizando esse desejo quando percebeu que isso só adiaria o momento da conversa. Shiryu desviou o olhar no último momento. E irritou-se consigo mesmo. "Nem quando eu estou com raiva dela eu consigo não desejá-la" . Viu-a se afastar, respirar fundo e dizer:
– Certo, Shiryu. Por onde você quer que eu comece?
Ora, ele queria saber tantas coisas... Se ela ainda sentia algo pelo Ohko, porque ela não contou os seus segredos para ele antes... ele na verdade queria saber tudo! Tudo do passado dela.
– Comece por onde você achar melhor. Eu estarei ouvindo.
Ela assentiu ao sentar no outro sofá e dessa forma ficar de frente para Shiryu. Seus olhos pareceram mergulhar em lembranças e ela começou a falar.
– Eu, antes de vir para o Japão, morava em Rozan na China com o meu avô. Como você já sabe meus pais morreram quando eu tinha dois anos, então éramos apenas nós dois, eu e meu avô. Rozan nunca foi um povoado muito grande. Praticamente todo mundo se conhecia. Quando eu tinha os meus doze anos eu me apaixonei pelo garoto mais bonito, rebelde e famoso do lugar. Ohko. Bem, mas eu não fui a única, quase todas as garotas eram apaixonadas por ele. Ele era quatro anos mais velho do que eu. E eu vivi com essa paixão adolescente escondida por quase quatro anos. Então, quando eu tinha quase dezesseis anos o que eu sempre sonhara aconteceu. Ohko "olhou" para mim. – suspirou – Como eu, hoje, daria tudo para que isso não tivesse acontecido. – voltou a falar do passado –Logo nós começamos a namorar. Eu vivia nas nuvens. Pela primeira vez eu era "amada" por alguém que não fosse meu avô. Nos dois primeiros anos tudo foi uma maravilha. Ele era carinhoso comigo e nós planejamos o futuro juntos. Ele era muito ciumento, mas isso para a garota ingênua que eu fui, era apenas mais uma prova do quanto ele me amava. Os nossos primeiros desentendimentos vieram quando eu estava com dezoito anos e queria ser enfermeira, como a minha mãe havia sido. Ohko se opôs, mas eu consegui completar o curso de enfermagem e comecei a trabalhar no hospital da região. Ele, é claro, que não gostava nada de me ver trabalhando. Então um dia, ele disse que era eu ou o trabalho. Bem... ele fez isso, com um jantar e me mostrando uma aliança de noivado. Ele dizia que a mulher dele não tinha que trabalhar, pois ela ficaria em casa cuidando dos filhos. Eu aceitei. Isso foi seis meses antes de eu vir para cá. Eu estava com dezenove anos.
Shiryu não dizia uma palavra, estava concentrado no que Shunrei dizia. Ela respirou fundo e começou a contar a parte que julgava a mais crítica.
– Seis meses depois do nosso noivado, houve um incêndio enorme em várias casas do lado marginalizado do povoado. Dezenas de pessoas ficaram feridas naquele que depois foi denominado "o grande incêndio". Foram me chamar para ajudar nos cuidados dos feridos e, lógico fui. Foram três dias e duas noites que eu e várias outras pessoas passamos cuidando dos feridos. Na terceira noite, o movimento já estava menor e o meu avô mandou-me para casa para que eu descansasse e ficou no meu lugar. Eu fui, estava muito cansada. – ela deu um riso triste – Mas, eu não conseguia dormir, acho que algo me avisa que eu estava correndo perigo. Era madrugada quando eu ouvi passos fortes no corredor. Passos que jamais seriam do meu avô. – respirou fundo – Passos que só poderiam ser de Ohko. Então ele entrou no meu quarto. E perguntou-me por que eu o havia desobedecido. Ele disse que a partir daquele dia eu aprenderia a obedecê-lo. – agora algumas lágrimas já começavam a turvar sua visão. Fato que não importava, pois ela olhava para dentro de si. – Então ele me deixou com essa marca que eu carrego até hoje nas costas.
– E faca com que ele te cortou não estava afiada. – Shiryu completou.
Shunrei fez que sim. Pela segunda vez naquele dia eles relembravam o primeiro diálogo.
– Continue. – ele pediu. Sua voz já não tinha o tom raivoso de antes.
– Ele me cortou e saiu. – ela sorriu – Naquele dia eu entendi o porquê de muitas pessoas de Rozan considerarem o meu avô um sábio. Cerca de meia hora depois ele chegou em casa. Eu já tinha perdido bastante sangue, mas mesmo assim eu não deixei que me levassem pro hospital.
– Por quê? – ele perguntou assombrado.
– Porque eu teria que dizer quem tinha feito aquilo comigo. E seria... vergonhoso explicar tudo. O meu avô, sozinho, cuidou de mim. Ele conseguiu estancar o sangue, mas obviamente demorei mais tempo para me recuperar do que levaria caso tivesse sido ponteada.
Shiryu assustou-se e perguntou:
– Você teve um corte desse tamanho e não levou pontos!
– Não. Por isso a cicatriz ficou dessa forma. – houve uma pausa e ela voltou a falar do passado – Em duas semanas eu já estava melhor. O machucado só sangrava, e já pouco, se eu de alguma forma me movimentando esticasse a pele das costas. Parece que o Ohko adivinhou que eu já estava melhor. E foi me visitar. – mais um sorriso triste – O cínico apareceu na minha casa com um buquê rosas vermelhas e disposto a marcar a data do casamento. Eu não cheguei a falar com ele. O meu avô conversou com ele. E sinceramente eu não sei o que o meu avô disse pra ele. Só sei que o meu avô me garantiu que Ohko não pareceria tão cedo lá em casa.
– Talvez seu avô o tenha ameaçado.
– Não. Ele me disse que às vezes mentiras devem ser ditas, e que por aquela ele pedia perdão aos céus. Eu nunca entendi direito. E não tive tempo de perguntar novamente. Nós dois conversamos, e nós dois suspeitávamos que Ohko estava por trás daquele incêndio. Dali a três dias eu estava em um avião vindo para cá. Com as nossas posses, compramos uma casa. E quando eu já conseguia realizar todos os movimentos sem sentir dor ou sangrar, eu consegui o emprego de enfermeira no hospital. Seis meses depois o meu avô morreu. E eu não pude ir no seu enterro.
– Você não podia voltar para China. – ele concluiu. Ela confirmou.
– É isso, Shiryu.
– Shunrei, eu quero que você me conte tudo. Tudo. Que não esconda nada de mim.
– Mas, isso é tudo.
– Shunrei... – ele disse em um tom cansado.
– Shiryu, isso é tudo. – ela agora se levantava do sofá – Mas pelo jeito você quer que eu confirme alguma coisa que o Ohko te contou. – Ambos estava em pé, e ela olhou nos olhos dele e perguntou – Diga-me, Shiryu. O que ele te falou?
– Que você não pode ter filhos.
Ele não queria ter dito da forma que disse. E se arrependeu no mesmo instante, ao ver a expressão que se formou no rosto da noiva.
Quando ela conseguiu se recuperar do golpe, disse:
– Ohko disse isso pra você?
– Querida, eu quero que você saiba que o fato de você... – foi interrompido.
– Isso não é verdade.
– Shunrei, eu te amo da mesma...
Como ele não a escutava, ela fez algo que raramente fazia. Ergueu a voz:
– Shiryu! Escute-me! Eu posso ter filhos.
Ele ia dizer alguma coisa, mas compreendendo o significado daquelas palavras...
– Você pode ter filhos? – ela assentiu – Então por que...
– Por que ele disse isso? Não sei. Mas o que ele disse afinal?
– Bem... – Shiryu ponderava como poderia dizer e sem de alguma forma magoar noiva. Ela percebeu a intenção dele.
– Não precisa me poupar das palavras de Ohko. E, na verdade, eu queria mesmo saber como foi a conversa entre vocês. Pelo visto vocês conversaram sobre muitas coisas. – ela disse um pouco magoada.
– Não foi bem assim. A conversa foi praticamente unilateral, eu apenas escutei. Afinal eu queria esclarecimentos.
Ficaram quietos por um tempo.
– Mas me diga, como você e o Ohko chegaram nesse assunto?
– Ele perguntou se o Filippo era adotado.
– O Filippo? – então lembrou-se – O porta-retrato!
Shiryu confirmou.
– Como eu neguei que era adotado, ele conclui que ele era meu filho, porque seu não poderia ser. Eu não entendi. E ele falou que você também não tinha contado para ele que não poderia ter filhos.
– Eu não sei da onde o Ohko tirou isso. Até onde eu sei, eu posso conceber.
– Shunrei, isso pouco importa. – ela olhou-o assustada – Sim. Claro que eu adoraria ver nossos filhos com o seu jeito, o seu sorriso. Ah.. o seu sorriso.
Shunrei começou a ficar esperançosa. Afinal Shiryu falou "nossos filhos"!
Ele continuou:
– Sem dúvida, me encantaria. Mas ter você, já me basta.
Quando ela falou ainda estava um pouco vacilante.
– Quer dizer então que você me perdoa?
Ele abraçou-a fortemente.
– Shunrei. Minha Shunrei. Eu procurei a minha vida toda por alguém como você. – pensou melhor e olhando nos olhos dela, disse – Não. Na verdade, eu procurava por você. Não vou te deixar. E nem deixar que você deixe. Jamais.
– É bom saber.
– Mas por favor, prometa-me que daqui em diante não haverá segredos entres nós dois. Conte-me tudo. Eu sempre vou estar do seu lado. Sempre!
– Claro. Eu te amo.
– Só a mim?
Ela olhou-a de modo confuso.
– Não acredito que você possa suspeitar que eu ainda sinta alguma afeição pelo Ohko!
Eles ainda estavam abraçados, mas se encaravam. E ele respondeu calmamente.
– Segundo ele, você sempre o amou e sempre o amará. Eu fui apenas para passar o tempo. Tanto que você escolheu alguém muito parecido com ele.
– Shiryu, eu nunca o amei. Nunca. Eu achava que o amava. O que eu senti por ele foi um encantamento, ou algo assim. Uma tola paixão adolescente. E eu te asseguro que o que eu sinto por você está muito longe de ser apenas uma paixão adolescente.
Beijaram-se.
– E quanto à aparência? – ele parecia querer ter mais provas de que ela se apaixonara por ele e não por uma cópia do Ohko.
– É. Vocês são parecidos. Porém, você é mais bonito. – o lado narcisista da sua personalidade fez que ele sorrisse, embevecido – Na primeira vez que eu te vi, você me surpreendeu muito pela semelhança com o Ohko. Pela sua beleza também. E eu fiquei com raiva de mim mesma, porque mesmo você sendo parecido com aquele que me tinha feito tantas maldades, eu já estava fascinada por você. Contudo, a cada dia eu fui vendo que você tinha, felizmente, mais diferenças do que semelhanças com o Ohko.
Tudo fora esclarecido, e ele perguntou antes de beijá-la no pescoço.
– E essa sua fascinação por mim?
– A fascinação? – ela perguntou estreitando o abraço.
– É. – ele continuava com os beijos.
– Irremediável.
Shiryu segurava a sua mão e tentava assim transmitir um pouco de coragem, e ao mesmo tempo acalmá-la.
– Querida, você não precisa falar com ele. Basta reconhece-lo, e para isto ele não precisa te ver.
– Não, Shiryu. Eu tenho que falar com ele. Só assim eu poderei virar de uma vez essa página da minha vida.
– Então você precisa saber que o Ohko não está preso apenas por ter invadido a sua casa. – ela olhou espantada – Na verdade, esse é a infração mais leve dele. Shunrei, ele é, ou era, o criminoso mais procurado de toda a China.
Ela estava horrorizada.
– Depois de vir pra cá, eu às vezes pensava nesse lado mal do Ohko e na sua índole nada pacífica mas eu não imaginava que seria algo tão sério. Quais são os outros crimes dele?
Ele resolveu ser sincero.
– Bem, não são poucos. Mas o principal motivo de ele estar preso é por comandar o tráfico de drogas na China. – ele notou que ela ainda parecia assustada – Não precisa se preocupar ele não fará nada de mal a você.
– Sim, eu sei. E te agradeço por ter me contado a verdade.
Ele assentiu. A delegacia estava pouco movimentada naquele horário. E instantes depois Seiya chegou, avisando que já poderiam ir até a cela que atualmente era ocupada por Ohko. Durante o curto trajeto, Shiryu continuou de mãos dadas com Shunrei e ela agradeceu mentalmente por aquilo.
Mesmo ela tendo feito questão de falar com Ohko, não era fácil estar tão perto dele depois de tudo que ele a fizera sofrer. Era verdade que saber que fortes grades os separariam a acalmavam um pouco. Um pouco.
Quando Ohko a viu levantou-se imediatamente do chão. Shunrei se surpreendeu ao vê-lo. Ele parecia mais velho do que os seus trinta e um anos. Estranho, ele continuava bonito. Sim, muito bonito. Mas não exercia mais o poder de outrora. E perto de Shiryu era como se ele perdesse todo o seu brilho.
– Shunrei, meu amor, eu sabia que você viria resolver esse mal entendido. Ora, desde quando um noivo não pode entrar na casa da sua noiva?
Ela ficou um pouco chocada e demorou a responder o ex-noivo. Como ele consegue ser tão cínico? Ele encarou o silêncio como consentimento e continuou.
– Querida, você está tão linda. – então notou que Shiryu estava ao lado da mulher e que segurava sua mão – O que ele faz aqui?
– Respondendo as suas perguntas, Ohko. Sim, você tem razão não há mal nenhum em um noivo entrar na casa da noiva. Mas nós não temos mais nada. E Shiryu está aqui primeiro porque ele trabalha aqui, e segundo e este o motivo mais importante, ele é o meu noivo.
Ohko não se deu por vencido.
– Shunrei, eu sei que nós tivemos uns pequenos desentendimentos no passado, mas agora somos maduros e eu estou aqui para que nós possamos reviver os bons momentos.
Shiryu que até então estava quieto disse:
– Pequenos desentendimentos?
– Você fica quieto que eu estou conversando com ela. – Ohko erguia o dedo na direção do policial. Ele sabia ser arrogante e prepotente mesmo estando atrás das grades.
Shiryu ia responder mas ao sentir o leve toque de Shunrei no seu braço parou. Ela tinha razão, o passado era dos dois e não dele. E Ohko continuou:
– Sabe, eu não me importo mais com o fato de você não poder filhos. Claro, eu fiquei magoado por ter sido o seu avô quem me contou e não você.
Então tudo fez sentido. A conversa que o avô tivera com Ohko, fora isso! Era essa a mentira pela qual o sábio Dohko pedia perdão aos céus. Seu avô conhecendo as ambições de Ohko, fez com que ele pensasse que Shunrei não era boa o bastante para ele. Resolveu não desmentir o que seu avô.
– Ohko, eu não vim aqui falar do nosso passado e muito menos do nosso futuro. – ele ergueu uma sobrancelha, mas mesmo assim continuou escutando – Eu estou aqui apenas para dizer que te perdôo pelo que você me fez.
Ele apenas abaixou a cabeça. Shunrei se surpreendeu em todos os anos que convivera com Ohko, nunca o vira abaixar a cabeça.
– Apenas isso. E espero que você se arrependa dos seus erros. Não os que me prejudicaram, até porque eles são quase insignificantes comparados com os outros. Mas aqueles que você fez com inocentes. Como "o grande incêndio".
Ele olhou-a espantado. Pelo visto não imaginava que Shunrei soubesse de quem era a autoria daquele incêndio, que na época fora considerado acidental. E não conseguiu achar uma defesa boa o suficiente para justificar o que fez.
– Mas como eu já disse não estou aqui para falar do passado. Vim apenas para dizer que te perdôo e para dizer... adeus. – ela já estava se virando para deixar o local, quando ele disse.
– Por que você não quer dar mais uma chance para o nosso relacionamento?
Ela suspirou, e foi sincera.
– Porque eu amo outra pessoa – olhou para Shiryu – e mesmo que eu não amasse o Shiryu, o nosso relacionamento é... irremediável.
Ohko por fim desistiu de insistir e olhou para a parede como se fosse uma forma de dizer que ela poderia ir embora. E ela o fez.
Continua...
N/A: Mais um capítulo. Gostaram dele? Espero sinceramente que sim.
Houve uma pequena mudança na divisão dos capítulos. E terão mais dois capítulos. Eu sei que já falei isso no capítulo passado (ou não?), mas agora é verdade. Não se preocupem essa fic terá um fim e ele está perto! Contudo, eu ainda preciso de reviews! Vai que eu me revolto e machuco um dos dois(Shunrei ou Shiryu)? O futuro deles está na suas mãos! Por isso, R-E-V-I-E-W-S!
Ah, algo quase insignificante já que fala da autora da fic: Eu fui aprovada no vestibular da UFPR! E em primeiro lugar no curso de Gestão da Informação! Não que isso vá mudar a vida de vocês, mas só para constar que agora vocês tem uma escritora de fics universitária!
Beijos! Até o próximo capítulo.
Nina Neviani
