Capítulo I

"O noivo tinha quinze anos; um menino preguiçoso e um tanto mal-humorado [...] mas com apetites mais do que saudáveis, um glutão à mesa, dado a entornar cerveja e vinho forte e que beliscava e passava a mão em qualquer criada que passasse perto. A noiva, sua irmã, tinha apenas treze anos. Embora mais gorducha e menos deslumbrante do que a maioria dos Targaryen, Helaena era uma menina agradável e feliz".

Fogo e Sangue, Volume 1, página 546.

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Depois de tanto se remexer na cama, Helaena desistiu de tentar dormir. Ela sentou-se abruptamente no colchão e passou a mão pelos longos cabelos esbranquiçados.

A princesa Targaryen sentia-se inquieta e sufocada. Era como se um peso comprimisse o seu peito. Precisava de ar. Se uma tempestade não estivesse caindo lá fora, ela se dirigiria ao sobrado do seu aposento para aspirar o ar noturno e contemplar as estrelas. Era tudo o que mais ansiava no momento. Porém, caso se expusesse à frialdade da noite acabaria contraindo um resfriado e não havia nenhuma estrela no céu para apreciar.

Era por isso que Helaena odiava o inverno. Achava-o uma estação limitadora e melancólica. Nos meses invernais, suas caminhadas pelo jardim da Fortaleza Vermelha eram suspensas e ela era obrigada a ficar trancafiada no palácio como uma prisioneira. Helaena amava a vida ao ar livre. Adorava os cavalos, as flores, as árvores. Quando estava entre eles, sentia-se viva.

Contudo, ao longo do inverno, ela tinha que abrir mão de tudo isso. Além do mais, suas preciosas flores morriam, as árvores perdiam a folhagem e a neve tingia a paisagem de um branco terrível. A princesa, certa vez, ouvira que os Targaryens eram criaturas feitas de fogo e, por isso, possuíam aversão ao frio. Talvez, fosse verdade.

Helaena afastou os lençóis e se levantou da cama. Assim que se pôs de pé, a princesa sentiu imediatamente o corpo estremecer e buscou o seu manto grosso de pele de cervo para se proteger da gelidez. Em seguida, ela caminhou até a lareira e estendeu as palmas das mãos em direção ao fogo. Mas parecia que nada era capaz de aplacar o frio que sentia. Quem sabe, parte dele fosse causado pelos tormentos que a acometiam.

Helaena sabia muito bem o que estava a deixando tão perturbada.

Há uma lua, a septã que estava sempre a rodeando como uma vespa incômoda lhe disse que suas regras estavam atrasadas, o que significava que Helaena possivelmente estava esperando um filho de seu irmão e marido, Aegon.

A princípio, a ideia de estar grávida a assustou. Havia algo crescendo, se desenvolvendo silenciosamente em seu ventre. Não era uma criança fruto de uma relação de amor. Pelo contrário, as noites em que se deitava com Aegon eram detestáveis. Helaena era ciente de que o marido odiava ter relações com ela. Era por isso que sempre o fazia quando estava bêbado.

Com os passos vacilantes, Aegon pedia para que a esposa abrisse as pernas e então a penetrava. Ele não a olhava, nem se importava se ela estava se sentindo confortável. Quando atingia o ápice, o príncipe Targaryen adormecia profundamente. Não havia nenhuma palavra de consolo. Um olhar condescendente. Nada. Muitas vezes, Helaena precisava abafar o choro com uma almofada enquanto o marido dormia. Era possível que os deuses abençoassem uma criança gerada nessas circunstâncias?

Por outro lado, a gravidez não seria assim tão ruim, pois ela manteria Aegon longe de sua cama. Ao saber que tinha cumprido o seu dever para com a coroa, o príncipe voltaria a passar suas noites nos bordeis da cidade. Ao pensar nessa possibilidade, um sorriso iluminou o rosto de Helaena, o que fez a septã pensar que ela tinha ficado feliz com a notícia de estar esperando o primeiro filho.

Mas, ao longo dos dias, o alívio de saber que estava livre de Aegon transformou-se em tormento, pois Helaena concluiu que ele se manteria longe de sua cama temporariamente. Após o nascimento da criança, ele voltaria a visitá-la, já que um único filho não era o suficiente. Então, as relações forçadas recomeçariam. Pensar que passaria o resto da vida se deitando com Aegon e parindo filhos dele era aterrador. Helaena não queria um futuro desse para si. Não queria parir e nem amamentar nenhuma criança do homem que a estuprava quase todas as noites.

E isso a fez sofrer. Um sofrimento mudo, pois sabia que os seus lamentos não seriam compreendidos por ninguém. Ninguém era capaz de entender que ela sentia como se grilhões invisíveis a prendessem a um destino e a um marido que não desejava. Ou se entendiam não se importavam. Achavam que ela deveria se conformar.

Nessa noite chuvosa, essa perspectiva sombria de futuro era o que a perturbava e impedia que o sono viesse.

Enquanto se aquecia diante do fogo da lareira, Helaena pensou em continuar o seu bordado para desanuviar a mente. Gostava de fazer bordados. Era um ofício simples e que sempre a distraia. As imagens que mais gostava de bordar eram de insetos, uma vez que nutria uma antiga fascinação por essas criaturas. Aprendia sobre elas por meio dos livros da biblioteca real. Incialmente, as septãs ralhavam e diziam que Helaena não devia bordar essas nojeiras. Mas Alicent, sua mãe, consentiu e, como ela era a rainha, as irritantes mulheres pararam de fazer reclamações.

Porém, logo Helaena pensou em algo melhor para entreter a mente: um livro. O bordado deixava a sua mente livre demais e isso era tudo o que ela queria evitar. A jovem de cabelos prateados olhou em volta e descobriu que não havia nenhum livro em seu quarto. Ela teria que ir até a biblioteca da Fortaleza Vermelha buscar um. Para a sua sorte, o lugar não ficava tão distante assim dos seus aposentos.

Mas era tarde da noite. Caminhar esse horário pelos corredores do palácio não era adequado para uma princesa.

"O que é adequado para mim, afinal? Ser violada pelo homem com quem me casei?", pensou Helaena, enraivecida.

Ela trocou as vestimentas de dormir por um vestido simples e pôs de volta o manto sobre os ombros. Ao terminar de se aprontar, Helaena andou rumo a porta do quarto e a abriu. Assim que o fez, ela se deparou com um corredor iluminado precariamente por tochas. Não era um cenário muito convidativo.

Por um instante, Helaena sentiu medo, mas se controlou. A Fortaleza Vermelha era a sua casa e ela não a temeria.

A princesa fechou a porta de seus aposentos e, antes que pudesse dar o primeiro passo, a voz do membro da Guarda Real, que sempre dormia ao pé de sua porta, a conteve:

— Posso saber aonde está indo, princesa? — quis saber o homem que trajava uma bela armadura prateada.

Helaena virou-se e encarou-o de volta.

— Vou a biblioteca real buscar um livro. Não estou conseguindo dormir.

O homem assentiu.

— Sendo assim, princesa, é meu dever acompanhá-la. Não é apropriado que moças bem nascidas andem pelo castelo durante a noite. Não é seguro.

— Não será necessário — disse Helaena. — A biblioteca não fica longe daqui. Além do mais, tenho certeza de que nada de ruim me acontecerá.

— Mas, princesa Helaena...

— É uma ordem. Fique onde está. Não me siga — determinou a princesa, com firmeza.

O homem não teve outra alternativa exceto obedecer. Ele fez uma mensura e permitiu que Helaena seguisse para onde quisesse. Quando a princesa deu as costas e avançou pelo corredor, ela sorriu entusiasmada. Era tão fácil! Se soubesse que era fácil assim, teria escapado do quarto mais vezes.

Helaena caminhou por corredores mal iluminados, vazios e silenciosos. Havia inúmeras razões para sentir medo. Contudo, ela estava tão eufórica e alegre que não conseguia senti-lo. Pela primeira vez na vida, Helaena sentia-se livre. Naquele momento, não havia ninguém no seu encalço. Não havia nenhuma serva, nenhuma septã e, principalmente, não havia sua mãe, nem Aegon. Como ela estava feliz!

Helaena apreciou tanto o trajeto que lamentou quando ficou diante das grandes portas da biblioteca. Mas estava frio demais para perder tempo no corredor e, por isso, ela empurrou rapidamente as pesadas portas e entrou no recinto.

Quando Helaena adentrou no amplo cômodo abarrotado de estantes de livros, ela surpreendeu-se ao encontrá-lo iluminado pelo brilho dourado do fogo da lareira e das tochas. Por acaso havia alguém ali?

Mas não houve tempo para pensar. De repente, a mente de Helaena foi invadida por uma estranha visão. Tratava-se de uma fera planando no céu em meio a uma chuva incessante. As asas da criatura batiam com rapidez, como ela se estivesse em meio a uma perseguição. E foi então que Helaena observou entre as nuvens pesadas uma sombra insólita se agigantar sobre o animal. À distância, a fera fugitiva aparentava ser pequena e indefesa.

A visão não era clara. Parecia que tinha saído de um sonho. E ela vinha acompanhada de angústia e desespero. Helaena sentiu o corpo inteiro tremer e o coração martelar fortemente no peito.

A imagem da fera cortando a tempestade, certamente, era um sinal de mau agouro. Helaena sentiu um pânico primitivo a invadir.

A princesa buscou desesperadamente um ponto de equilíbrio, pois os seus passos estavam cambaleantes. Mas, antes que ela encontrasse um ponto de apoio, a jovem sentiu um aperto firme em seu braço.

Com um sobressalto, Helaena girou o rosto no intuito de identificar a quem pertencia o aperto. E para a sua estupefação, descobriu que ele pertencia a Aemond, seu irmão.

Aemond a fitava com o olho de tonalidade violeta enquanto o outro estava coberto por um tapa-olho. Ao contrário de Helaena, ele parecia assustadoramente tranquilo. Alguns nobres do reino costumavam temer Aemond por conta de sua aparência exótica. Mas esse não era o caso de Helaena. Assim que focalizou o irmão, ela quase soltou um suspiro de alívio.

— Aemond! — exclamou Helaena, recuperando-se do susto. — O que está fazendo aqui?

Ele se manteve inexpressivo.

— Acho que essa pergunta é minha, irmã — rebateu, ajudando a jovem a retomar a postura. — Deveria estar nos seus aposentos.

Helaena levou a mão a têmpora. Ainda sentia-se zonza por conta da visão.

— Vim buscar um livro, só isso — esclareceu ela. — Não precisa se preocupar. Não sou nenhuma criança.

Aemond a contemplou por um momento.

— Você não parece bem. Devo chamar o septão? — indagou, calmo.

— Não! Por favor, não chame ninguém! — implorou Helaena. — Eu estou bem. Eu só... Preciso me sentar por um instante.

Aemond assentiu.

— Venha, vou levá-la até uma cadeira.

Helaena se deixou ser conduzida por ele até a cadeira da escrivaninha. Era curioso, observou a jovem à medida que olhava de soslaio o irmão, Aemond era mais novo que ela e Aegon, mas parecia ser mais velho.

Nos últimos anos, ele mostrara possuir um nível de maturidade que Aegon jamais conseguiu alcançar. Enquanto o primeiro filho homem do rei Viserys, gastava o seu tempo com putas e bebidas, Aemond treinava exaustivamente com Sor Criston Cole e estudava os mais variados assuntos. Ele também sempre vencia os torneios dos quais participava e, por conta disso, estava ganhando fama em Porto Real.

Além do mais, em termos de aparência, Aemond se tornara um jovem alto e esbelto. Ele não era exatamente belo, mas emanava uma aura de perigo que despertava o interesse das damas da corte. Helaena sabia disso, pois ouvia os comentários das mulheres em festividades e torneios.

E como se não pudesse bastar, Aemond montava o maior dragão do mundo, uma fera imensa apelidada de Sombra Alada. A fêmea Vhagar tinha sido montada por Visenya Targaryen durante a Conquista. Era o dragão mais antigo de sua época e nenhum outro poderia comparar-se ao seu tamanho e ferocidade.

A verdade que ninguém ousava dizer em voz alta era que Aemond era um príncipe mais competente que Aegon. E se um deles fosse nomeado rei no lugar de Rhaenyra Targaryen, era Aemond quem merecia usar a coroa.

Quando os dois alcançaram a escrivaninha mais próxima, Helaena se sentou na cadeira feita de carvalho antigo.

— Melhor? — quis saber Aemond.

Helaena balançou a cabeça.

— Sim, obrigada.

De repente, um trovão ribombou no céu e Helaena lembrou-se da visão. A princesa viu novamente a fera alada movimentar-se na tempestade enquanto era perseguida por algo que a jovem não conseguiu identificar. Mais uma vez, ela foi dominada por um terror sufocante.

Sem que pudesse evitar, Helaena gritou e se encolheu na cadeira, como um animalzinho assustado.

— Não sabia que tinha medo de tempestades — comentou Aemond, encarando-a com curiosidade.

Com a respiração acelerada, Helaena ergueu o olhar para o jovem de cabelos esbranquiçados e sentiu-se corar. Era constrangedor pensar que alguém estava vendo-a tão vulnerável.

— Não tenho — murmurou ela, tentando se recompor.

Aemond a olhou intrigado, como se ela fosse um mistério que ele quisesse resolver.

— Posso saber então o que a aflige?

Helaena meneou a cabeça.

— Você não quer saber. Vai me achar louca.

Aemond esboçou um pequeno sorriso.

— Eu não acharia algo assim de você porque tenho certeza de que não existe alguém verdadeiramente normal neste mundo — disse ele. — As pessoas possuem particularidades, Helaena. E é isso que as fazem únicas. Acredite em mim, não acharei que você é louca.

— Está bem... — falou a princesa, insegura. — Tem... Tem uma fera no meio da tempestade. Eu vi.

Ele franziu o cenho.

— Que tempestade? A que está caindo lá fora?

Helaena balançou a cabeça.

— Não. Essa não.

— Dou a minha palavra, irmã, se existe alguma fera incomodando você eu juro que a matarei, mas antes precisa me dizer onde posso encontrá-la.

Helaena enrubesceu novamente. Estava envergonhada por não conseguir dar as informações que ele queria.

— Eu não sei — confessou ela, baixinho. — É confuso até para mim.

Aemond sorriu discretamente.

— Você sempre foi assim.

— Assim como?

— Costuma dizer enigmas quando ninguém está esperando — explicou ele. — Nunca consigo entendê-los.

— E quando foi que alguém entendeu algo a meu respeito? Você não é diferente de ninguém — falou Helaena, com o timbre carregado de rancor. Mas logo se arrependeu. Aemond tinha sido gentil com ela e merecia ser tratado da mesma forma. — Desculpe. Acho que estou descontando minha frustração em você. Não é justo.

— Não tem importância — disse Aemond. — Acho que ainda lhe não dei minhas felicitações.

— Pelo quê? — perguntou a princesa, confusa.

— Você está esperando um filho, não é?

— Ah. É verdade — concordou Helaena educadamente, mas sem entusiasmo. — Obrigada. É muito gentil da sua parte.

O desânimo da jovem não passou despercebido pelo irmão.

— Não está feliz? — questionou Aemond.

— Estou sim, é claro. Muito feliz — ela apressou-se para dizer.

A intenção de Helaena era corrigir a impressão de que estava insatisfeita com a gravidez, mas a urgência no seu tom de voz só ajudou a confirmá-la. Aemond que era um excelente observador, sem dúvidas, percebeu.

— Diga-me, qual livro veio buscar? — perguntou ele, mudando de assunto. — Acho que já li quase todos deste lugar.

Estudo dos insetos de Braavos.

Aemond riu.

— É claro que seria um livro sobre insetos!

A maioria das pessoas que Helaena conhecia zombaria de sua estranha obsessão por insetos, mas esse não era o caso de Aemond. Não havia nenhuma ironia no tom de voz do príncipe.

Helaena sorriu.

— As pessoas costumam odiar os insetos. Muitas sentem prazer em esmagá-los com os pés — disse ela, sentindo-se à vontade para falar abertamente sobre as criaturas que tanto admirava. — Mas acho que mudariam de opinião se lessem um pouco sobre eles. Insetos são criaturas fascinantes, tanto quanto os animais que estampam estandartes de casas famosas. Sabia que a coloração das asas das borboletas serve para atrapalhar os pássaros que as caçam? As borboletas batem suas asas coloridas que refletem o brilho do sol. Isso confunde os predadores e permitem que elas escapem de ataques. Isso não é incrível?

— É curioso — admitiu Aemond. — Mas ainda prefiro ler sobre os nossos antepassados.

Por um instante, um silêncio confortável se instalou. Helaena surpreendeu-se ao constatar que essa tinha sido a primeira conversa normal que teve com alguém desde que a sua gravidez foi anunciada. Sempre que tentava conversar com as servas e septãs que a cercavam ao longo do dia o assunto era desviado para bebês, partos e amamentação. Helaena odiava isso. Odiava quando a reduziam à maternidade. Por isso, estava grata a Aemond por tratá-la como um ser humano.

— Você vem muitas vezes aqui? — indagou Helaena num impulso. Ela era assim. Às vezes agia sem pensar.

— Não tanto quanto antes.

— Eu gosto da biblioteca É silenciosa, como um templo — comentou Helaena, com um olhar maravilhado em direção às estantes. — Os meistres enviam todos os anos várias cópias de livros da Cidadela para abastecer a biblioteca real. Isso me permite conhecer o mundo inteiro sem atravessar os muros da Fortaleza Vermelha.

— É uma perspectiva ingênua, irmã — comentou ele num tom suave, quase sorrindo. — Há muitas coisas que não são mencionadas nas páginas dos livros que você lê.

— Como por exemplo?

— As vielas sujas, as tabernas, os bordéis. Imagino que não saiba nada sobre esses lugares. É preciso ir até eles para conhecê-los.

Helaena revirou os olhos.

— Ah, é verdade. E os homens o fazem desde cedo. Porém, nós, mulheres, temos que nos manter trancafiadas em fortalezas, caso contrário nossa reputação será arruinada.

— O submundo de Porto Real não é um lugar agradável, Helaena — disse o príncipe. — Pessoas que nasceram em castelos, como nós, podem sentir alguma curiosidade sobre os lugares mais degradantes da cidade, mas quando se passa muito tempo na sujeira você começa a se sujar também, compreende? Os plebeus não fogem da Baixada das Pulgas à toa. É um lugar violento, imundo e miserável. Deve ser grata aos deuses por ter uma fortaleza segura para se resguardar.

— Uma prisão é uma prisão, irmão. Mesmo que as grades sejam feitas de ouro — lamentou Helaena com um suspiro. — Mas acredito em você. A questão é que você teve a escolha de conhecer o mundo além da Fortaleza Vermelha, embora tenha odiado o que viu. Para mim não existe escolha — e acrescentou antes que Aemond tivesse a chance de se pronunciar: — Acha que estou falando demais? As pessoas sempre dizem que eu falo demais. Espero que eu não esteja o aborrecendo.

Ele conteve um sorriso.

— Não, não está.

Helaena soltou uma respiração.

— Graças aos deuses! — exclamou ela. — Mas agora preciso ir. Está tarde.

— Espere um instante — pediu Aemond assim que a irmã fez a menção de se levantar do assento.

Helaena se manteve sentada e observou com curiosidade Aemond caminhar até uma das estantes da biblioteca com uma desenvoltura de quem já fizera isso incontáveis vezes. Ele deu uma rápida olhada nos livros enfileirados e retirou um deles.

Com o livro na mão, Aemond retornou para próximo de Helaena e estendeu o objeto em direção a ela. Helaena encarou o livro e depois o irmão, confusa.

— Você não veio buscar Estudo dos insetos de Braavos? Aqui está ele — explicou Aemond.

— Oh! É mesmo! Eu tinha esquecido! — e pegou o livro das mãos dele.

A verdade era que Helaena nem precisava mais do livro para se distrair. A conversa com o irmão tinha cumprido essa função. Enquanto os dois conversavam sobre insetos e lugares insalubres, ela esquecera completamente de suas aflições.

De repente, Helaena se deu conta de que nunca tinha conversado com Aegon. Os diálogos dos dois eram sempre breves e aconteciam por pura obrigação, de modo que eles eram estranhos um para o outro.

Por um instante, a jovem pensou que ela deveria ter sido prometida a Aemond. Ele poderia não a amar, mas certamente a respeitaria e haveria cumplicidade entre os dois. Helaena sabia disso, pois Aemond, apesar de ser selvagem e feroz, sempre a tratou com gentileza. Nas festividades, ele sempre se oferecia para dançar com ela, enquanto Aegon o fazia apenas quando a mãe obrigava. Intimamente, Helaena lamentou a sua falta de sorte.

A jovem se levantou do assento com o livro nas mãos.

— Preciso ir. Obrigada pela conversa, irmão — disse ela, sorrindo com uma tristeza inevitável.

— Irei acompanhá-la até os seus aposentos — anunciou Aemond num tom que não deixava margem para contestações.

— Não precisa. Meu quarto não fica longe daqui.

— Eu não deixaria minha irmã andando sozinha pelos corredores do castelo a essa hora da noite. Vamos — e ofereceu o braço para ela.

Helaena segurou o braço de Aemond e, assim, os dois deixaram a biblioteca. Fisicamente, os jovens Targaryens eram um tanto diferentes. Aemond possuía uma alta estatura, ao contrário de Helaena. Além disso, a princesa detinha uma silhueta rechonchuda e um adorável rosto em formato de coração. Aemond, em contrapartida, era esguio e afiado como uma faca. A única característica que eles compartilhavam era a tonalidade prateada dos cabelos.

A personalidade dos dois também era diferente. Aemond era observador e quieto. Nada escapava do olhar violáceo do príncipe. Ele também possuía um humor inflamável. Aemond irritava-se com facilidade e era implacável com seus inimigos. Helaena, entretanto, era ingênua, doce e expressiva. Se não fosse a coloração dos cabelos ninguém imaginaria que ela possuía o sangue do dragão correndo nas veias. Embora possuíssem alguns gostos parecidos, Aemond e Helaena eram duas forças opostas.

Talvez, por isso ele gostava tanto da irmã. Ela era tudo o que ele não era. A inocência natural de Helaena despertava em Aemond o instinto protetor.

Os jovens de cabelos esbranquiçados caminharam pelos corredores do castelo à medida que ouviam os trovões ressoarem. De vez em quando, o brilho azulado dos relâmpagos iluminava o trajeto. Mas Helaena não tinha medo, pois Aemond estava ali e ele era o melhor guerreiro que ela conhecia.

Quando eles se aproximaram dos aposentos de Helaena, o membro da Guarda Real se empertigou e fez uma reverência.

— Meu príncipe — cumprimentou ele ao ficar diante de Aemond. — Eu insisti em acompanhar a princesa, mas ela...

— Sorte a sua que eu encontrei a princesa Helaena, Sor Waymar. Se algum mal tivesse acontecido a minha irmã, eu me certificaria de que o senhor morresse aos gritos — falou o príncipe, ameaçador.

— Não é para tanto, irmão. Sor Waymar apenas cumpriu as minhas ordens — interveio Helaena, tentando aliviar a tensão. — Bem, senhores, agora irei dormir. Nos vemos amanhã.

Sor Waymar fez uma mensura rígida e postou-se ao lado da porta.

— Durma bem, princesa — disse Aemond, olhando-a com intensidade.

Helaena ergueu a mão para abrir a porta, mas subitamente cessou os movimentos e voltou-se novamente para o irmão que já se afastava.

— Aemond — chamou a jovem.

Ele virou-se para ela no corredor e a princesa foi até ele.

— Obrigada — disse Helaena, ao aproximar-se do jovem.

Aemond franziu o cenho.

— Pelo que está agradecendo?

— Por você ter me feito companhia essa noite. Isso foi muito importante pra mim — e ao dizer essas palavras, Helaena ficou de ponta de pé e depositou um rápido beijo na bochecha do irmão.

O gesto repentino e cheio de ternura pegou Aemond de surpresa. Ele continuou com o olho grudado nela, mesmo quando a jovem se desvencilhou e correu de volta para os próprios aposentos.

Quando Aemond retomou o trajeto, os lábios dele se curvaram num sorriso.

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A Fortaleza Vermelha amanheceu agitada, pois, naquela noite, haveria um festim no castelo para celebrar a gravidez da princesa Helaena que daria à luz em pleno verão. A comemoração fora organizada pela rainha Alicent que ficara mais animada com a gravidez da filha do que a própria.

Em meio a névoa da manhã, os portões da Fortaleza Vermelha recebiam carruagens, carroças e homens montados em cavalos. Naquele dia, todos os criados se puseram de pé durante o crepúsculo e então começaram a preparar o castelo para a solenidade. A rainha Alicent também se levantou cedo para receber os lordes que vinham de diversas regiões do reino.

Em determinado momento daquela manhã, a rainha Alicent instruiu que a criada pessoal da princesa Helaena fosse acordá-la para o dejejum. E assim foi feito. A criada se dirigiu aos aposentos da princesa e, antes de entrar, chamou pelo nome da jovem senhora.

Como nenhuma voz foi proferida, ela abriu a porta e encontrou Helaena adormecida em sua cama, o rosto parcialmente coberto por fios prateados.

— Princesa Helaena — chamou a criada, suavemente.

Após repetir o chamado, Helaena se mexeu entre os lençóis.

— Diga, Tethra — murmurou com uma voz rouca e sonolenta.

Tethra, a criada, fez uma reverência.

— Senhora, a rainha está a chamando para o dejejum — informou.

A princesa soltou um muxoxo, mas se sentou na cama. Quando o fez, Tethra observou que havia sombras escuras ao redor dos olhos violetas de Helaena, o que significava que ela havia demorado a adormecer ou tivera uma noite de sono ruim.

Enquanto Helaena se levantava, a criada preparou a água para a princesa se lavar e selecionou um vestido e um xale para ela. Após alguns instantes, a jovem Targaryen se aproximou de Tethra coçando os olhos e bocejando. Ela trajava um vestido branco, o qual era usado para dormir. Tethra ofereceu-se para ajudá-la a retirar o vestido e Helaena aceitou.

A jovem ergueu os braços e a criada tirou o vestido pela sua cabeça. No momento em que a peça foi retirada, Tethra gritou, assustada.

— Princesa! A sua regra! — e exibiu para Helaena o tecido branco maculado por uma mancha escarlate.

A jovem arregalou os olhos, incrédula, e em seguida olhou para as próprias pernas, as quais estavam manchadas de um líquido vermelho.

— Não pode ser... — disse Helaena, estupefata. — Eu estou grávida! Como isso é possível?!

— Já ouvi falar de mulheres, cujas regras sofrem atrasos — revelou a criada. — Se me permite, princesa, acho que não está grávida.

Helaena prendeu a respiração. O primeiro pensamento que lhe veio à mente foi: "isso significa que terei que me deitar com Aegon de novo". Ela fechou os olhos por um momento, sentindo o corpo tremer.

— Não se preocupe, princesa — Tethra tentou consolá-la. — Ainda poderá engravidar, se rezar para a Mãe...

— Não! — vociferou Helaena, repentinamente. Em seguida, tomou as mãos da criada, desesperada. — Não deve contar isso a ninguém, Tethra. Nem mesmo à rainha. Está me ouvindo?

A criada assentiu, aturdida.

— Sim, senhora — concordou, empalidecida.

— Você deve me prometer — Helaena a encarava diretamente nos olhos.

— Eu... — balbuciou a criada.

— Prometa! — exigiu a princesa.

— Eu prometo, senhora. Eu juro pela Mãe que manterei segredo — falou Tethra, quase aos prantos.

Ao ouvir isso, a expressão de Helaena se tranquilizou. De repente, ela correu pelo quarto e alcançou sua caixinha de joias. A jovem retirou de lá um par de brincos de jade e pôs nas mãos de Tethra.

— Fique com isso — disse a princesa. — É minha forma de agradecer pelo seu serviço.

— Obrigada, minha senhora — murmurou a criada, sem saber o que fazer com aquele presente tão valioso.

Enquanto se lavava, Helaena se permitiu sorrir. A alegria que sentia explodir em seu íntimo era tão avassaladora que lágrimas escorreram pelo seu rosto. Ela não estava esperando um filho de Aegon! Parecia que um grande peso tinha sido retirado de suas costas. Helaena foi arremetida por uma súbita vontade de rir e dançar.

A jovem não sabia o que pretendia fazer quando pediu a Tethra para manter em segredo a sua falsa gravidez. Tudo o que sabia era que não estava pronta para se deitar com Aegon de novo. E havia a celebração. Ela não podia revelar justo no dia do festim que não havia nenhuma criança em seu ventre.

Quando finalmente terminou de se arrumar, Helaena estava radiante. A alegria estampada em seu rosto não era vista desde o seu casamento com Aegon. Com um sorriso, a princesa abriu a porta dos seus aposentos, pronta para tomar o seu dejejum com a rainha, familiares e convidados.

Porém, dentro de si, ela sabia que essa alegria era efêmera, pois a verdade, mais cedo ou mais tarde, viria à tona.