O SEGREDO DAS VALQUÍRIAS –SIDE HISTORY
By Darkrose
Capítulo 1: Hati
(Odiável)
Tudo estava escuro, na penumbra. Uma pessoa jazia, enferma, deitada na cama. Ao lado dela, uma idosa de parcos cabelos brancos murmurava palavras ininteligíveis. Encantamentos.
Repentinamente, o entoar das magias é parado. A velha sussurra apressada:
-Filha, pegue o ungüento que deixei repousando.
-Sim, senhora.
A garota saiu das sombras e pegou a bacia indicada pela velha. Andou lentamente encurvada, era muito alta para aquela casa de teto baixo. Ajoelhou-se aos pés da feiticeira e entregou-lhe o que ela pedira.
A chama trepidante da vela dançava ao lado da cabeceira do doente. Num momento que a luz se fez mais visível ele arregalou o olho, estupefato. Mesmo com o corpo travado pela doença conseguiu se arrastar com muito custo pro canto da cama, berrando, com lágrimas nos olhos:
-AFASTE-SE DE MIM!... A-AFASTE-SE!... AFASTE-SE, FILHA DE LOKI (1)! QUERO MORRER EM BATALHA, NÃO NUMA CAMA!
A idosa olhou penalizada para a garota e fez um gesto para que esta se retirasse. Ela obedeceu à senhora. Levantou-se e curvou-se numa ligeira mesura, saindo em seguida.
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O sol já se punha. Ela caminhava rapidamente; voltava para casa. O olhar apavorado do doente fixou-se na sua mente, assombrando-a enquanto acordada. Puxou o capuz que cobria sua cabeça mais para frente, tampando todo o rosto.
Começou a correr, cabisbaixa, segurando o capuz para que ele não caísse e revelasse o que realmente era. Deixou um soluço escapar; em seguida foi a vez das lágrimas.
Finalmente avistou a casa. Uma casa simples e rústica, de madeira, no meio de uma clareira. Era isolada de qualquer contato humano. A adentrou abruptamente e fechou a porta. Baixou o capuz e foi lavar as mãos na tina de água quando viu seu reflexo.
Cabelos vermelhos, repicados e lisos, em total desalinho. Uma franja comprida que caía por cima da sua face esquerda. Olhos azuis, claros e límpidos que podiam ver através de tudo. Pele pálida. Observando cada detalhe de seu corpo isoladamente era bonita, mas o conjunto só tinha uma definição.
Pavoroso.
O rosto dela era deformado por horríveis cicatrizes de queimadura, assim como o peito, as costas, braços... Tudo enfim. O corpo inteiro estava maculado. O desconcertante era o rosto. Metade dele era normal, a outra queimada.
-Um rosto, duas faces... Uma clara e outra escura... –a garota falou para seu reflexo – Realmente faço jus ao nome...
Mergulhou as mãos na água desmanchando seu reflexo. Lavou-se. Colocou a capa em cima da cama e começou a preparar o jantar. Queria manter a mente ocupada e não se lembrar do que tanto a atormentava por 12 longos anos...
-Do jeito que ela é, voltará para casa mesmo de madrugada. –tentou sorrir, lembrando-se da senhora.
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Quando o céu já estava totalmente escuro e o vento zunia pela janela, a porta se abriu.
-Finalmente Gullveig (2)! Pensei que pousaria na casa do ferreiro só para fugir da minha comida.
-Ah minha filha... Ajude-me aqui. Lá fora está um frio de matar, mal consigo mexer meu velho corpo.
A garota a ajudou tirando as roupas sujas de neve e folhas. A sentou numa cadeira próxima à lareira e entregou-lhe um caldo quente.
A velha Gullveig puxou uma manta feita de peles para cima de seu colo e bebeu avidamente o caldo. Não se importou em queimar a língua, queria apenas expulsar o frio de seu corpo.
Depois de devidamente instalada, a idosa olhou para a garota na cozinha. Acompanhou os movimentos apressados e, ao mesmo tempo, delicados dela. Sentiu-se invadir por uma sensação incômoda. Tinha apenas um nome que ela conhecia. Culpa. Toda vez que via a menina ser maltratada sentia-se culpada. Mas não sabia o que fazer para contornar a situação. Questionava-se sempre, mas não chegava a lugar nenhum.
Doze anos se passaram desde aquele dia que achou a criança dentro de um tronco de árvore no meio de uma tempestade de neve. Doze anos e a vida delas não mudou em nada, não sofreu nenhuma alteração. Assim como o corpo da garota. Inteiramente tomado pelas cicatrizes... Apenas parte do rosto foi poupado.
Gullveig abriu a boca, iria dizer para que ela não se incomodasse com o medo do ferreiro, mas acabou desistindo. Não adiantava dizer nada. Não iria mudar nada. Não foi a primeira vez. E certamente, não seria a última... A garota continuaria queimada; humilhada; marcada, tanto física quanto emocionalmente... Seus sentimentos continuariam pisados e seu coração partido. Um destino irremediável, traçado pelos deuses... E aquela deusa, como sua provável protetora.
Um rosto e duas faces...
Uma garota de rosto deformado... Semelhante à Ela... Uma deusa misteriosa e de rosto incomum... Estranho. Aquela que possui um palácio de mesmo nome. Seu palácio possui o mesmo esplendor do palácio dos outros deuses. É enorme, com altas muralhas e salões grandes e vazios. A sua entrada é protegida por Garm (3), um cão de caça que guarda os domínios dela.
O salão principal se chama Éljúðnir (4); o prato que ela serve aos convidados é o Hungr (5); sua faca, para cortar os alimentos, é a Sultr (6). Ela tem dois servos: Ganglat (7) e Ganglöt (8). Fallanda (9) é o guarda da porta pela qual se entra; a cama que ela cede aos recém-chegados é Kör (10) e Bilkjanda (11) é a sua manta. Nos domínios dela suas portas estão abertas para todos. Aqueles que chegaram devido à doença ou velhice, mas também os maus, injustos e cruéis.
Ela não distingue e não poupa ninguém. Ela é imparcial. Homem ou mulher, velho ou criança... Nada disso tem valor para a deusa. Com um gélido abraço, ela sela o destino daqueles que não tombam em batalhas. Mas naquele dia, ela poupou o bebê.
A prova irrefutável disso estava na cozinha de Gullveig, lavando a louça. Os longos cabelos, macios e lisos; pendendo soltos pela cintura; oscilantes como as chamas; dando a impressão de que novamente a garota estava sendo consumida pelo fogo.
Não era a hora dela morrer. Não como um simples e inocente bebê. Ela tinha de permanecer viva. A qualquer custo. O destino colocou Gullveig no seu caminho, naquela fria tarde de inverno. A idosa conseguiu curar as queimaduras. Elas ainda existiam e a garota as carregaria até o túmulo, mas pelo menos deu a chance dela viver. Só não conseguiu dar uma vida feliz à menina... Mas a felicidade, está nas mãos de cada um... Era isso que dizia para si mesma todos os dias. Talvez realmente acreditasse nisso. Ou talvez queria apenas acalmar sua consciência.
Ela era protegida pela deusa. Como foi poupada daquela morte horrível, foi consagrada à Ela. Sua deusa, sua mãe, sua benfeitora. Em homenagem à Ela, tem o mesmo nome.
Hel.
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Caldeirão fumegante. Ervas desconhecidas. O mesmo ingrediente. Precisão na dosagem. Uma gota salva uma vida; uma a mais garante a morte? A vida é tão frágil e delicada... A qualquer instante essa linha tênue poderá ser partida...
As chamas dançavam em frente às duas mulheres e lambia o caldeirão com sua língua de fogo. A chama não causava nenhum efeito na mestra, mas a aprendiz as encarava num misto de interesse e receio. Olhava a dança incandescente e olhava para seu corpo. Aqueles cristalinos olhos azuis tinham muitas questões...
Respirou fundo. Iria tirá-la daqueles pensamentos torturantes. Encheu-se de autoridade e encarou a aprendiz, séria:
-Concentre-se menina! Como deseja aprender algo das magias ocultas se você fica ai, distraída com as chamas?
A menina recobrou a consciência e suspirou de leve, baixando a cabeça. Mas logo a ergueu e encarou a mestra num misto de deboche e melancolia:
-Para que aprender isso, Gullveig?
-Como "para que"? Para saber! Para ajudar os outros! Pode se sustentar com isso! Não cobro dinheiro, mas as pessoas sempre ficam agradecidas e me dão alimentos, calçados, roupas... Assim você terá um ofício!
A ouvinte baixou a cabeça novamente e sorriu tristemente. Seus cabelos ruivos caíram por seu rosto em completo desalinho.
-E quem disse que vou "ajudar os outros"?
A senhora a encarou surpresa. Ficou chocada com as palavras da menina que criou com tanto carinho por 12 anos. Ela notou isso e se explicou:
-Eu até gostaria de ajudar aos outros, mas... Como posso ajudá-los se não consigo ajudar a mim mesma? Como vou querer salvar as vidas de pessoas se nem a minha eu consegui? Como vou querer cuidar das manchas na pele dos outros, talvez provenientes de bexigas, se eu mesma tenho as minhas próprias marcas e não consigo removê-las de meu corpo de maneira alguma?
Gullveig encarou os olhos azuis da menina. Estavam turvos. Os olhos dela sempre lhe lembraram a água. Ora cristalinos, ora escuros... Sempre escondiam segredos...
-E antes que a senhora me diga que eu não tentei me curar, eu replico que tentei sim e muitas e muitas vezes. Nem a senhora conseguiu, que dirá uma mera aprendiz!
-Não se subestime, Hel.
-Não me subestimo, mãe... Mas também não me superestimo. Sou realista. Eu apelei até mesmo para os sagrados talismãs rúnicos, mas nem eles conseguiram restaurar a minha pele... O meu corpo –ela pôs a mão no colo e cravou as unhas- ... Nada apaga essas marcas.
A idosa se assustou. Encarou a menina e o colo que ela apertava e arranhava, nervosamente. Aproximou-se dela e puxou a mão, tirando-a da frente do peito.
Espanto.
Encarou a marca e depois a menina.
O que Gullveig vira não era nada grave, mas ainda assim a chocou. No peito dela tinha um desenho. Uma espécie de cruz, com a parte horizontal bem próxima do topo. Paralelamente, tinha uma mesma linha horizontal na base. No lado esquerdo e no direito, tinha um "L" deitado, cada um de uma maneira oposta, como se fossem reflexos de espelho.
O talismã da saúde. Para proteção do corpo e para curar enfermidades do corpo, mente e espírito.
O fato que a deixou chocada foi como Hel tinha feito isso.
Ela desenhou o símbolo no peito, entalhando-o na carne com uma adaga. Era uma cicatriz funda que se mesclava às marcas das queimaduras.
-Hel, minha filha! Por que fez isso? –abraçou-a bem apertado
Ela se deixou abraçar. Fechou os olhos e começou a chorar, baixinho:
-Ah mãe... Eu só queria ser normal... Eu queria apenas ter um aspecto menos desagradável. Eu queria apenas poder me aproximar das pessoas sem lhes causar temor... Só isso. Só isso...
Gullveig afagava os cabelos ruivos da menina:
-Hel, minha querida... Você é normal. Você é normal. Sua aparência não pode ditar o que você é. As pessoas temem aquilo que não conhecem, aquilo que não entendem. Mas isso não faz de você algo anormal. Você é uma pessoa especial, querida. Muito especial. Uma escolhida dos deuses. Eu sinto isso desde que a vi.
Hel soltou-se do abraço dela e a encarou, no fundo de seus olhos. Os cristalinos olhos azuis se fixaram nos olhos da idosa, perscrutando-os.
-Gullveig. Eu te pergunto isso há anos. Diga-me... Por que eu tenho essas marcas no corpo? Como eu me queimei? Desde que eu me conheço, eu as tinha.
A feiticeira baixou a cabeça. Nunca conseguia sustentar o olhar da garota, especialmente nestes questionamentos. Durante esses 12 anos de vida, sempre foi questionada e pressionada a responder estas questões.
-Minha filha... Eu não sei. Desde que a conheço, você é assim.
A garota pegou o queixo dela e o ergueu, para olhar no fundo de seus olhos.
-Por que sempre me chama de filha? Eu realmente sou sua filha? –avalia a senhora com o olhar- Não... Você não pode ser minha mãe. A senhora já é velha... Mas posso ser sua neta... Afinal, Gullveig, eu tenho seu sangue ou não? Sou sua parenta? Quem são meus pais? Por que me deram para eu ser criada por você? Eles... –parou e sentiu um nó na garganta- Eles têm vergonha de mim?
A velha nada disse. Apenas baixou a cabeça novamente e balançou em negativa.
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A vida seguiu seu curso. Ignoramos os seus planos e seguimos num rumo incerto. Alguns rezam para estar aqui no dia seguinte e no outro e no outro. Outros se recusam a fazê-lo, afinal a morte chega para todos, para os que rezam ou não.
Muitas luas e sóis se passaram. Em Asgard, não existem "Estações do ano". Apenas Estação. Inverno. Pleno inverno.
Passaram-se mais 6 anos. Gullveig ensinou todas as coisas que sabia para Hel. Feitiços, encantamentos, ungüentos... Tudo que sabia foi passado para a garota...
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O inverno chegou novamente. Não era nenhuma novidade para o povo de Asgard que vivia nele todos os dias. Um vento gélido e cortante uivava de fora. As janelas balançavam com força dando a impressão que seriam destruídas a qualquer momento. A neve se misturava ao vento, em minúsculos cristais e caiam desordenadamente pelo chão, acumulando-se nos telhados, janelas, portões...
Um inferno branco e gélido.
Dentro da humilde casa rústica, uma chama crepitava na lareira. Ela estava quase morrendo, mas foi alimentado por uma acha de lenha. As chamas tocaram o teto da lareira, num espasmo, ao receber o alimento. Um par de olhos azuis acompanharam isso e se questionaram:
-Será que ao me receberem no meio das chamas, foi assim?
Um cheiro de madeira úmida e queimada invadiu o ambiente. Ela se afastou, a fuligem queria se impregnar em sua roupa. Ela pegou algumas ervas e jogou a esmo no meio do fogo. Queria amenizar o cheiro de queimado. Um cheiro que lhe embrulhava o estômago.
Uma tosse seca e incessante se pronunciou. Hel correu até o quarto. Na penumbra pode ver a sua mãe. Antigamente, seria Gullveig a fitar um doente; assistida de longe por ela. Agora não. Agora ela estava no lugar de sua mestra. Ela olhava para os poucos que tinha coragem de receber sua ajuda. Ela rezava por eles. Às vezes os curava, às vezes os levava.
Hel ficou de longe, nas sombras, como sempre ficava, espreitando a mãe. Sentia-se impotente. Sabia que não tinha mais o que fazer a não ser esperar. Fizera tudo por ela, mas nada surtiu efeito. Era a velhice.
Uma voz fraca e débil se pronunciou, cortando por um momento o silêncio dali:
-Hel... Vem aqui... –começou a se levantar. Estava cansada de ficar deitada.
-Shh... Fique deitada. –afofou o travesseiro e a deitou novamente, puxando as cobertas para o corpo esquálido de Gullveig.
Hel usava inúmeras vestes de peles, sentia muito frio no corpo. Por cima, uma capa com um capuz, cobrindo sua cabeça. Para ninguém, nem ela mesma ver seu rosto, começou a usar uma meia máscara, cobrindo apenas a parte deformada do seu rosto. Para escondê-la cobria com sua comprida franja vermelha.
-Hel... Você sabe assim como eu sei –tossiu e segurou uma bacia que a garota lhe estendia. Escarrou sangue.- Como eu dizia... Eu sei que vou morrer. Sua protetora me quer com ela... E agora... antes que as trevas tomem conta de mim eu quero lhe contar o pouco que sei. Eu vou lhe contar a verdade...
Fora da casa o vento continuava uivando como Garm, que deixava a baba escorrer pela bocarra enquanto balançava o rabo ansioso por nova carne no Nifmheimr (12).
Notas:
(1) É o Senhor do Fogo, além de ser símbolo da maldade e da astúcia, embora ajude os deuses muitas vezes. Conhecido como trapaceiro e dissimulado, possui vários filhos, inclusive os monstros que atemorizam os deuses. No Ragnarök, ele vai fugir de sua prisão e vai lutar contra os deuses.
(2) A feiticeira dos Vanir. Levada 3 vezes à fogueira e voltando à vida por 3 vezes. (escolhida a dedo para ser a mestra da minha pobre garota uu)
(3) Cão de caça do submundo, guardava a entrada do Nifheimr (o mundo dos mortos). Semelhante ao Cerberus da mitologia grega. (a diferença é que não tinha 3 cabeças XD)
(4) Gelado
(5) Fome
(6) Faminta
(7) Preguiça
(8) Desarrumada
(9) Poço sem fundo
(10) Doença
(11) Miséria sombria
(12) O mundo dos mortos, segundo a mitologia nórdica.
Confissões da autora:
Olá, meus poucos e queridos leitores (oh, espero que eu realmente possa usar plural XD)! Como vão? Demorei (creio que alguns meses), mas trouxe um novo capítulo do "Segredo das valquírias". Eu deveria ter feito isso antes, eu sei, mas eu estava sem inspiração para ela... Eu sabia exatamente como seria este capítulo, mas na hora de por as palavras para formar um texto... Well XD
Enfim, aqui estou. Espero que tenham gostado dele! E preparem-se psicologicamente, por que o próximo capítulo será o "The end" XD E não me apedrejem, eu já comecei a escrevê-lo XD (Minha previsão é de lançamento daqui a 2 semanas )
Bjao para todos! Inté mais XD
