O SEGREDO DAS VALQUÍRIAS –SIDE HISTORY

By Darkrose

Epílogo: Dain Nacht – Gripahellir

(Noite morta – Gruta para Hel)

Há quanto tempo estava correndo? Não sabia dizer. Por que corria? Outra questão sem resposta. Simplesmente corria. Atualmente, a única coisa que tinha certeza, na verdade eram duas coisas. Primeiramente, queria esquecer tudo. Em segundo lugar, queria morrer.

Desde aquela noite, aquela noite que teve a maior tempestade de neve do mês, ela jamais voltou para casa. Aliás... Será que era correto afirmar que algum dia ela teve casa? Tudo mudou bruscamente na vida da garota. E nada mais fazia sentido. A única coisa que possuía sentido para ela era a morte.

Assim que tudo terminou, que tudo foi esclarecido, perdeu totalmente o rumo. Na verdade, nunca tivera um objetivo certo na vida. Após ouvir o relato de sua mãe adotiva e mestra, a única coisa que fez foi pegar seu agasalho com o capuz; um saquinho que guardava antigas runas feitas de marfim e atear fogo naquele lugar. Queria que as chamas consumissem aquela casa, aquelas memórias e tudo que poderia representar para si... Queria que as chamas lhe servissem de borracha para apagar tudo e esquecer...

Esquecer que viveu ali, esquecer as dúvidas que a consumiram por longos 18 anos... Esquecer toda a sua pseudovida... Esquecer, esquecer... Parar de respirar... Fechar os olhos e morrer.

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Mais uma negra noite. Hel estava abrigada, no meio de árvores. Estava muito frio; a neve enregelava seu corpo. As pernas, os pés e as mãos estavam adormecidos, não os sentia mais.

A garota estava cansada. Fazia muito tempo que não comia. Não enxergava nada naquele breu. Tateou o chão a esmo, procurando algo que pudesse comer. Queria morrer, mas o instinto de sobrevivência ainda falava mais alto.

Agarrou algo. Apalpou de leve com as mãos, seja lá o que fosse. Baixou a cabeça e tentou distinguir o que era pelo cheiro. Foi em vão. O nariz estava entupido pelo frio, não conseguiu cheirar nada. Sacudiu os ombros e cravou os dentes. Gullveig lhe dissera muitas vezes que o melhor tempero da comida era a fome.

Não sentiu gosto de nada, mas serviu para contentar seu estômago por algum tempo. Para esquecer a fome, deitou-se na neve e ficou a olhar o céu estrelado. Queria dormir. Se tivesse um pouco de sorte, poderia morrer congelada ali.

Ao pensar na morte que poderia lhe visitar durante o sono, Hel sorriu prazerosamente.

-Se sou a protegida da deusa, nada mais lógico do que ela me dar o que tanto almejo...-pensou, antes de cochilar.

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Tudo estava escuro, envolto por uma densa bruma. O nevoeiro estava tão espesso que parecia uma cortina que caía dos céus, como se a própria Naglfari (1) deixara de propósito aquele denso véu esbranquiçado cair.

De fora da rústica casa de madeira podia-se ouvir o uivo do vento. A neve continuava a cair. Estava incrivelmente gélido. O tempo prometia piorar durante a madrugada. Hel sentia as queimaduras latejarem de leve. O tempo mudaria bruscamente. Esta noite teria uma tempestade de neve.

O tempo corria fora da casa. A neve já se acumulara totalmente na janela, impossibilitando a visão dos arredores. Mas dentro dela, o tempo parara.

Hel olhava para Gullveig ansiosa. Esperou por aquele momento há anos. Sentia a respiração pesar, estava realmente ansiosa. Arfava. As batidas do coração estavam aceleradas.

Gullveig fitava os olhos dela. Pela primeira vez na vida conseguiu sustentar o olhar melancólico da garota.

-Sente-se ao meu lado, Hel. A história é curta, mas pode ter alguns meandros complicados.

Hel a obedeceu prontamente. Sentou-se, cuidadosamente, ao lado do corpo deitado da idosa. A encarou, cheia de expectativa. A verdade lhe seria revelada. Finalmente, após 18 anos, ela iria descobrir quem realmente era. Finalmente.

A senhora tossiu um pouco. Uma nova crise de tosse. A garota entregou uma bacia para ela. Gullveig escarrou sangue ali. Hel limpou a boca dela; um pouco de sangue escorreu no canto de sua boca.

-Hel... É uma pena, mas você não é minha filha...-pigarreou e respirou fundo, contendo a tosse- E também não é minha neta. Você não tem o meu sangue nas veias. Eu estou só no mundo há muitos e muitos anos... Porém eu te achei e cuidei de você como se fosse minha filha. Sangue do meu sangue.

A garota não se espantou. Esperava por algo desse tipo.

-Mas... Como me achou?

-...Eu te achei... Há muitos anos atrás. Há precisamente... Precisamente 18 anos atrás. Um dia frio como todos os outros. Talvez, o único fato incomum foi o funeral de uma senhora distinta daqui... Mas isso não importa. O fato é que já estava escurecendo. Eu tomei o caminho da praia até aqui e no meio da floresta encontrei uma matilha de lobos. Eles uivavam muito. Um deles começou a enfiar a pata dentro do tronco oco de uma árvore. Eu ouvi um som baixinho e distante. Notei que tinha algumas folhas e gravetos. Alguém estivera ali, recentemente. Me aproximei da árvore. E dentro do tronco dela estava um embrulhinho de peles...

-Era... E-Eu?-gaguejou, um tanto transtornada.

Gullveig assentiu com a cabeça.

-E eu... Eu estava... Eu já tinha...?-ergueu a manga da blusa e mostrou as queimaduras.

Ela puxou a manga, cobrindo o braço da garota.

-Sim... Você era um bebê recém-nascido. Estava com queimaduras de 3º grau, mas tinha recebido algum socorro. Um socorro de um leigo, mas que a ajudou a sobreviver. Você sobreviveu por milagre, levando-se em consideração que mais de 80 do seu corpo estava queimado.

Hel sentiu um nó na garganta. Em seus olhos azuis lágrimas começaram a brotar. Ela se abraçou, encolhendo-se na cama, cravando as unhas no braço. Queria morrer. Queria deixar de existir. Queria nunca ter existido.

Com o resto de voz que tinha, sussurrou, entrecortada por soluços:

-Você chegou de conhecer... meus pais?

A velha negou com a cabeça. Estava tentando recuperar o fôlego. Sua mão acariciava debilmente as pontas dos cabelos da garota. Odiava vê-la triste. E odiava ainda mais ser a culpada por ela estar triste.

-Então você não sabe por que fiquei assim? Você me conheceu dessa maneira...

Gullveig anuiu. Embora sempre tivesse a impressão de que as queimaduras ocorreram por culpa de alguém. Negligência, raiva ou muitas outras hipóteses eram plausíveis. Uma vez ela até cogitou que a criança poderia ser uma bastarda que o pai traído atirou no fogo... Entretanto, não passava de especulações que ela jamais descobriria a resposta. Nem ela, nem Hel.

-Será... Será que eu fui queimada por descuido? Será que foi intencional? Fui raptada por alguém e fizeram isso?...Ah, Gullveig... Eu pensei que você soubesse de mais coisas sobre mim...

-Minha filha... Eu te conheço desde que nasceu. Sei de tudo sobre você... Eu vi você engatinhar e dar os seus primeiros passos. Vi também quando caiu o primeiro dente, quando ficou mocinha, quando tentou cozinhar pela primeira vez... Tudo, por mínimo que seja, eu presenciei. Mesmo sendo aparentemente sem importância, eu sei.

A garota ergueu a cabeça e encarou a velha. Seu olhar transmitia um misto de ternura e tristeza.

-Eu sei... Mas o que eu queria descobrir... O que eu esperava descobrir era quem de fato sou. Nunca aceitei bem essa minha identidade de "consagrada à deusa dos mortos"... Eu também esperava descobrir quem são os meus pais, supondo que ainda estejam vivos... Eu queria olhar para eles, uma vez na vida e perguntar por que fizeram isso comigo? Por que? Não faz o menor sentido...

A velha feiticeira fitou a garota tristemente. Em todos esses anos, o desejo de Hel jamais mudara. Apenas cresceu e cresceu, desmedidamente; incandescente como as chamas que foram seus algozes. A vida da garota resumia-se num eterno e doloroso "Por que". Seu esforço de salvá-la, criá-la e ensiná-la foi em vão. O que ela deu para a menina não era o que ela queria.

Por um momento, recriminou-a. Tudo que fizera, fizera por ela. Todas as privações que passou, todos os olhares amedrontados, todos aquelas recriminações, enfim, todas as humilhações que sofrera, foi por criá-la. Por criar Hel. E agora, no leito de morte, levaria a certeza de que Hel não a valorizava para o Nifmheimr (2).

Hel notou o olhar duro que Gullveig lhe mandava. Em toda a sua vida, jamais viu a senhora lhe dirigir tal olhar. Baixou a cabeça, somente naquele instante percebeu como foi rude e mal-agradecida. Não queria que a única pessoa que a amou e a respeitou morresse sentindo raiva dela. Murmurou, envergonhada e constrangida:

-Mamãe... Mesmo que a senhora não seja a minha mãe, saiba que eu... Eu agradeço tudo que fez por mim, até mesmo cuidar da aberração que sou. Posso parecer ingrata nesse meu desejo, mas a senhora deve saber melhor do que ninguém que as pessoas só desejam o que não podem ter.

A idosa sorriu. A garota não sabia se expressar direito, mas ela nunca tinha a intenção de ferir os sentimentos alheios. Encarou a ruiva e esboçou um sorriso vago. Não poderia recriminar Hel. Vivendo da forma como vivia, a única coisa que restava era tentar compreender o quebra-cabeças que era a sua vida.

-Minha filha... Hel... –tateou pela cama até encontrar a mão fria da garota. Segurou-a com força, entrelaçando seus dedos nos dela- Lembre-se sempre disso: Você não é uma aberração. Perdoe-me por não poder te dar o que você tanto queria... Eu só pude dar aquilo que tinha. E infelizmente, o conhecimento da sua família não fazia parte do meu legado... Perdoe-me...

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Sons estranhos ecoavam. Uma luz fraca e crescente começava a iluminar gradativamente a floresta. Vozes estranhas e embaralhadas se pronunciaram. Passos apressados. Pessoas corriam. A corrida de tais indivíduos fazia os galhos das árvores se partir. Mesmo o uivo do vento não conseguia apagar a voz das pessoas.

Vozes graves. Vozes masculinas. Caçadores, provavelmente.

Hel acordou sobressaltada com aqueles sons. Olhou para os lados e notou que eles logo se aproximariam de onde ela estava. Assustada, levantou-se da neve com dificuldade. Sentia que o corpo inteiro estava adormecido. Esfregou os braços e as pernas rapidamente, tentando aquecê-los para sair dali. Assim que se sentiu pronta começou a correr em disparada por um caminho qualquer, apenas para fugir daquelas pessoas.

As pessoas não gostavam dela, logo, ela também não gostava das pessoas. Simples assim.

Enquanto ela se distanciava, um grupo composto, por três homens e alguns garotos, chegou no local onde ela dormira. Examinaram as marcas recentes que ela deixara e se entreolharam. Um arrepio subiu pela espinha de cada um.

Um garoto, talvez o mais novo dali, sorriu nervoso e falou o que ninguém ousara dizer:

-Olha só... Parece que o monstro da floresta dormiu bem aqui.-indicou o local com o pé.

Eles encararam o ponto indicado e sentiram um arrepio gélido percorrer suas espinhas... Estava mais do que evidente que algo ou alguém dormira ali. E a única coisa que poderia ter sido era o terrível "Monstro da Floresta".

Há pouco mais de um mês, talvez dois meses, algo rondava a floresta durante a noite, escondendo-se durante o dia. Esgueirava-se pelas trevas, às vezes indo até a cidade e roubando alimentos, destruindo casas, assustando as pessoas e guiando suas almas até o Nifmheimr.

-Nós devemos fazer alguma coisa para acabar com esse monstro... Está assustando as mulheres e as crianças...-disse o líder do grupo olhando ao redor - Vejam, ele foi por aquela direção.

Os demais se entreolharam e, em seguida, voltaram o olhar para o líder. Nenhum deles tinha coragem de seguir a tal criatura. Os velhos diziam que era algum demônio à serviço de Loki (3) e que isso era um sinal do Ragnarök (4).

-Deixemos o monstro ai... É vontade dos deuses... –arriscou um, virando as costas para se afastar. Diria qualquer coisa para se ver livre daquela perigosa empreitada.

Todos os demais aceitaram a sugestão dele em unamidade. O líder foi deixado para trás. Olhou as marcas e sacudiu os ombros, conformando-se, e seguindo-os.

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Dentro da mansão imponente ouvia-se o crepitar da lenha na lareira. As chamas ondulavam, agitadas. Os olhos azuis se perdiam naquela dança flamejante. Tinha flashes de memória. Desde aquele maldito dia, há 18 anos atrás, ele revia a mesma cena todos os dias, onde quer que estivesse. O cheiro de carne queimada sempre aparecia, entorpecendo seu corpo. Mesmo que fechasse os olhos, ainda assim, via com nitidez a desgraça que ocorrera.

-Gerd...-um homem suspirou, inclinando a cabeça para trás.

Ficou daquela maneira por um bom tempo. Fitava o teto, em busca de consolo ou de algo que pudesse silenciar sua agonia. Repentinamente, a porta do seu escritório é aberta abruptamente:

-Senhor Freyir... Novamente os camponeses vieram aqui.

Freyir abriu os olhos e virou-se para encarar o empregado. Suspirou entediado:

-Mas afinal o que essa gente quer de mim, Skirnir?

O empregado da casa, o fiel Skirnir, aproximou-se de seu patrão e o encarou com medo:

-Todos os dias eles vêm aqui e imploram de todas as maneiras para que o senhor acabe com o tal "Monstro da floresta".

-E por que eu? Por que não pedem para outra pessoa? Todos sabem muito bem que eu não tenho nada a ver com essa história ridícula. Além disso, também não tenho motivos para ajudá-los.

-Eles pedem, por que ultimamente o monstro é visto nas suas terras, meu senhor.

O homem levantou-se da poltrona num salto. Encarou Skirnir num misto de indignação, surpresa e aborrecimento.

-Mas é muito atrevimento... Isso ocorre a quanto tempo?

-Bem... Segundo os camponeses faz dois meses. Mas eu tenho notado que a comida tem sumido a pelo menos três meses e meio.

Freyir corou levemente. Sentiu o sangue correr nas veias, aceleradamente.

-Onde esse infeliz apareceu?

-Próximo ao pântano, durante a noite. Segundo alguns camponeses, rumava para o sul.

-Somente durante a noite.

O senhor andou de um lado para o outro, pensativo. Passou a mão na barba por fazer. Olhou o servo de soslaio. Havia se decidido.

-Skirnir... Prepare as armas; separe munições, punhais, espadas e redes. Prepare também a provisão de alimentos e os cães de caça. Arrume minha roupa para caçadas e a do meu filho também... Aliás, vista algo apropriado. Você nos acompanhará.

Skirnir fez uma profunda reverência para Freyir. Virou-se para se retirar, quando a voz do seu senhor o interrompeu:

-Quero sair daqui antes das cinco. O sol se põe cedo demais...

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Tudo estava escuro. As trevas da noite engoliram por completo a floresta de coníferas. O sentido que possuía clareza sobre os demais era a audição. O uivo dos lobos à distância, juntamente com o piar da coruja. Aqueles sons eram o prelúdio de mais uma noite de caçada. A melodia dos predadores.

Hel estava andando sem rumo na escuridão. Procurava algum lugar para passar a noite. O céu estava acinzentado, não era possível ver as estrelas. Uma densa bruma atravessava a floresta. A garota já tinha perdido totalmente a noção de dias, quanto mais horas.

Sentia muito frio pelo corpo. Fora as marcas das queimaduras naqueles das tinha ganhado cortes, arranhões e novas cicatrizes. Mas não tinha encontrado o que realmente almejava. A morte.

Não tinha mais roupas. Apenas trapos encardidos cobriam seu corpo. Andando em círculos, a garota acabou chegando novamente no mesmo lugar.

Era amplo, algumas árvores cresciam ali, desordenadamente. A névoa parecia ser gerada dali. Não dava para enxergar com clareza. A terra estava fofa e um tanto escorregadia. As plantas ao redor cheiravam à chuva e à podridão.

-Um pântano...-sussurrou para si mesma, rouquenha.

Ela se aproximou lentamente do local. Havia algo ali, indescritível, que a atraía, a puxava, a arrastava. Estava além de suas forças.

Quando deu por si, a água já estava acima dos joelhos. Suas vestes flutuavam na superfície da água, seguidos pelas pontas dos seus cabelos.

Não conseguia dar nem mais um passo adiante. O corpo de Hel estava rígido de frio. Ela sentia que caso se mexesse com brusquidão, seu corpo se partiria em inúmeros pedaços.

O chão sob os seus pés afundava, gradativamente. Ficou parada, no meio da água e da bruma. Um lugar silencioso e escuro como buscara desde que saíra de casa.

-É aqui... Meu túmulo. –pensou. Já não sentia mais as pernas. O frio cedia lugar ao calor. Seu sangue lutava para não congelar nas veias.

Deslizava a ponta dos dedos na superfície da água. Ouviu alguns barulhos. Passos apressados, galhos se partindo e latidos de cães. Pensou em fugir, mas desistiu.

-Se tem alguém para fugir são eles... Este é o meu lar e como eles mesmos dizem... Eu sou um monstro.

Mal finalizou seu pensamento e ela notou que os visitantes chegaram.

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O primeiro a chegar foi Skirnir, sendo puxado pelos cães. Logo atrás vinha um jovem de cabelos loiro-avermelhados, carregando uma rústica arma. Deveria ter aproximadamente 20 anos. Fechando o grupo estava Freyir com um sabre embainhado. Não confiava em armas de fogo.

Skirnir parou e ficou encarando o meio do pântano num misto de terror e admiração. Foi empurrado para o lado pelo jovem e por Freyir.

-Gerd...?-Freyir murmurou para si, estupidificado.

Enquanto o senhor tentava conter as emoções que afloravam em sua mente, seu filho encarava as costas úmidas da mulher e percorria o corpo dela, com um olhar inquisitivo.

A roupa dela estava grudada no corpo, moldando-a. A névoa servia como um véu, encobrindo-a, tornando sua silhueta imprecisa. No fim da análise, o jovem assobiou e sorriu, num gesto de aprovação:

-Se esse é o monstro então tiramos a sorte grande!

Impulsivamente, adentrou a água, aproximando-se de Hel, que permaneceu imóvel. Skirnir e Freyir o chamavam, implorando para que voltasse.

O jovem ignorou os apelos. Sentia-se atraído por aquela mulher imóvel no meio da água. Não notou que suas pernas enrijeciam de frio e que seus pés afundavam lentamente.

Quando iria tocar nela, percebeu, tardiamente, que estava afundando. Tinha muitas coisas pesadas presa nos bolsos e no cinturão. Não conseguia se mover, teve a impressão que algo se enroscou em suas pernas.

-Você... Você é mesmo um monstro!

O jovem se debatia, tentava se agarrar a algo. Hel observou o desespero dele, mas nada fez. Ele se agarrou às roupas e ao cabelo dela, mas não conseguiu fechar as mãos.

-Será que estou congelado?-questionou-se, sentindo a água na garganta.

O empregado olhou em volta, estudando uma maneira para salvar seu jovem senhor. Freyir não se moveu. Estava entorpecido por aquela neblina, hipnotizado pelo perfil da garota. Observava à distância, enquanto meneava a cabeça para si mesmo, concordando.

-Gerd... Sim... É você mesma... Minha amada Gerd.

Skirnir tinha amarrado os cães numa árvore próxima. Amarrou uma corda na cintura e a ponta na árvore. Respirou fundo e adentrou o pântano. Mas já era tarde demais.

Seu jovem patrão estava imóvel. Somente seu rosto era visível, uma expressão de perplexidade estampada nele. O olhar frio de Hel fixou-se no rosto do rapaz.

-Para algumas pessoas é tão simples... Irritantemente simples...

Ela sorriu com uma ponta de desprezo e encostou a ponta dos dedos na testa dele, empurrando-o para o fundo.

O empregado baixou a cabeça deixando sinceras lágrimas rolarem. Sentia-se culpado por aquilo. Se não tivesse avisado seu patrão, o menino não teria morrido. O menino que ele criara com tanto carinho, como se fosse seu próprio filho...

Caiu ajoelhado no chão. O esmurrou com raiva e frustração:

-Isso não é justo!

Freyir não se importou com a morte do filho. Na verdade, nem percebera. Aproximou-se das águas, queria falar com a esposa:

-Gerd, minha amada esposa... Eu sempre te esperei, por todos esses anos me mantive fiel a você e a ninguém mais além de você... Estou pronto –jogou a espada na margem do lago pantanoso- me leve com você...

Skirnir levantou-se num salto. Não perderia seu senhor Freyir para o monstro. Não Freyir que antes de ser seu senhor, é seu amigo de infância.

-FREYIR! VOLTE PARA CÁ! GERD ESTÁ MORTA!

Seu amigo não o ouviu. Já estava prestes a tocar o ombro da garota.

-Gerd... Por que não se vira para mim? Espero tantos anos para revê-la... Dezoito anos! Estamos separados há 18 anos!... Não sentiu a minha falta?

Hel se virou parcialmente para olhá-lo. As palavras desconexas dele lhe despertaram. Ela também esperava por algo há 18 anos. A verdade.

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Freyir sorriu ao ver a mulher virando-se para ele. Algo estava entalado na garganta. Um nó. Lágrimas brotavam de seus olhos azuis. Num gesto inconsciente abriu os braços para abraçá-la.

Assim que iria estreitá-la em seus braços, Freyir a fitou, num misto de espanto e terror. Tentou se afastar dela, sem sucesso. Algo se enroscou em suas pernas. Olhou para baixo e vislumbrou algo semelhante a um corpo.

-Meu filho...-pensou, notando que estava no mesmo lugar onde seu filho morrera.

Somente naquele instante ele percebeu que o chão que pisava não era firme. Afundava gradativamente.

-VOCÊ! AFASTE-SE DE MIM IMPOSTORA! COMO SE ATREVE A ASSUMIR O ROSTO DA MINHA DOCE GERD, MINHA AMADA ESPOSA?

Ele olhava fixamente para o rosto de Hel. Aquela estranha face dúbia. Um lado perfeito e belo. Outro lado deformado e decrépito.

Mas o que realmente o deixou desconcertado foi a semelhança com Gerd. Os longos cabelos vermelhos, a altura, a silhueta alongada. Na parte imaculada do rosto dela, Freyir pode ver o mesmo brilho que Gerd possuía. Mas aquelas queimaduras... Aquelas marcas e aquele rosto que era idêntico ao da esposa...

Ele fechou os olhos com força e balançou a cabeça. Tinha que apagá-la e esquecê-la. Não podia se deixar enganar por aquele truque demoníaco. Abriu os olhos e olhou Hel determinado. Pode vislumbrar os olhos da garota, olhos azuis, tão azuis quanto os seus.

Freyir ficou boquiaberto. Teve um lampejo de memória. A criança que há dezoito anos atrás Gerd dera a luz. A criança pela qual sua esposa se sacrificara. Ele viu o sexo do bebê de relance. Uma menina...

-Cabelos vermelhos como a mãe e olhos azuis como os meus...-balbuciou para si mesmo.

Novamente ele avançou para a garota. Sua expressão estava distorcida de ódio e descrença.

-FREYIR! VENHA PARA CÁ! ESTA NÃO É GERD! –berrou Skirnir, observando que seu amigo voltava a caminhar para perto da garota. –VEM AQUI! ME DÊ SUA MÃO! NÃO POSSO ENTRAR NESSA ÁGUA, SENÃO MEUS MOVIMENTOS TAMBÉM SERÃO AFETADOS POR ESSA ÁGUA GÉLIDA! SOU O ÚNICO QUE PODE TE AJUDAR! VENHA AQUI!

-Skirnir, volte para casa imediatamente.

-Mas Freyir...

-É UMA ORDEM!

Hel já estava com a água no peito. Estava alheia à discussão entre os dois homens. Queria apenas morrer. Entretanto, aquele homem, que aparentemente se chamava Freyir, lhe deixou intrigada. Ele a confundiu com uma mulher, uma tal de Gerd, e com mais outra pessoa. E isso jamais aconteceu com ela em toda a sua vida.

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Freyir voltou a encará-la. Não se importava se seu empregado ainda estava ali ou não. Iria destruir aquelas lembranças ali para sempre.

-Você tem cabelos vermelhos, como sangue... como o sangue de Gerd. E olhos azuis como os meus... Teu rosto é deformado por queimaduras... Jurei que havia sido consumida pelo fogo, mas está ai... Viva, encarando-me com espanto, querendo me afrontar.

Ele esticou as mãos até o pescoço da garota e cravou as unhas nele. Sentia as articulações das mãos estralarem e doerem. Era o frio. E só piorava com seu corpo imerso naquela água gélida. Mesmo assim, Freyir continuou apertando o pescoço dela. Queria sentir ele se partir entre suas mãos.

Ela se debatia. Asfixiava. Sacudia os braços erguidos a esmo, tentando se agarrar em alguma coisa ou soltar seu pescoço das mãos daquele homem.

-Você é um pesadelo... Um pesadelo que não me permite dormir em paz... Dezoito anos! Eu jurava que você estava morta! Mas ai está você!... Uma assombração... Sei que você não é real, que provavelmente é mais outro truque, afinal você é o "Monstro da Floresta"... Dessa vez será mais prático... Enviarei você e aquela maldita criança para o Nifmheimr!

Forçou a cabeça dela para dentro d'água. Queria que o monstro morresse, de um jeito ou de outro.

-Se o fogo não te destruiu, então a água te destruirá! Filha do demônio! Que Hel te carregue!

Skirnir permaneceu no local. Estava realmente preocupado com o amigo. Primeiro ele viu Gerd. Agora brigava contra o suposto monstro que assumiu a forma da criança que ele atirou no fogo.

-Me sinto impotente... Deve existir alguma coisa que eu possa fazer para ajudá-lo!

Hel começou a arranhar as mãos do homem. Sua visão turvava. Não sabia se era a falta de ar, a água ou o que. Pela primeira vez na vida, sentiu a presença da morte.

-Não posso morrer aqui... Não dessa maneira... Não agora... Sinto que de alguma forma... Este homem... Freyir... Ele sabe algo de mim...

Freyir a tirou da água e a encarou. Continuava prendendo o pescoço dela, apenas diminuira a força. Sorriu, seus olhos estavam brilhando insanamente.

-Você é culpada por Gerd ter morrido... Ela não resistiu ao parto... Tudo por culpa sua! Enquanto eu me despedia dela, você chorava querendo atrair a minha atenção para você, fruto nefasto... Então eu vi... Vi seu sexo. Uma menina. Uma menina de cabelos vermelhos como Gerd e olhos azuis como os meus... Depois disso, não tive dúvidas... VOCÊ TINHA QUE MORRER! EU TE ATIREI AO FOGO! TE MATEI UMA VEZ, POSSO TE MATAR OUTRA E MAIS OUTRA!

Hel arregalou os olhos abismada. Era coincidência demais. Aquele homem atirara uma criança no fogo e ela tinha marcas de queimadura. Quando Gullveig lhe achou, ela já estava queimada. A voz daquele estranho ecoava em sua mente:

"Cabelos vermelhos como Gerd e olhos azuis como os meus..."

Sua garganta secara. Queria gritar de raiva e de dor, mas a voz não saia. A loucura daquele homem a marcou para sempre. Pela morte da tal Gerd, seu corpo pagara um preço muito caro. Será que estava certa em acreditar naquela estranha coincidência? Será que de fato ele realmente era culpado pelas queimaduras de seu corpo ou será que ela apenas estava cansada demais de procurar seu passado e ficou satisfeita em ouvir alguns fatos correspondentes entre ela e o estranho?

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O homem tornou a apertar seu pescoço com força. Entretanto, a garota não permaneceu passiva. Ela se mexeu e se debateu o máximo que pode. A raiva, a frustração e a dor que suportara por longos dezoito anos a impeliam a lutar e a esbravejar. Não morreria ali. Não nas mãos daquele sujeito.

Todos aqueles sentimentos unidos dentro de si a moviam. Era a sua força. E nada e nem ninguém a derrotaria enquanto Hel não calasse tais sentimentos...

Inconsciente de seus atos, Hel lutava para sobreviver. Tudo passava diante dela velozmente. Ela e o homem protagonizavam as cenas. Ora ela o agarrava e o mordia e cravava suas unhas na carne dele; ora ele a esbofeteava e a asfixiava.

Depois de algum tempo parou. Teve a nítida impressão que durante aquela luta envelhecera anos. Olhou para a margem e viu o rosto aterrorizado do outro homem. A fisionomia dele era a mesma... Apenas minutos se passaram.

Hel encheu os pulmões de ar. Sentiu que aquele ar congelara seus pulmões irreversivelmente. Olhou ao redor de si. A água já alcançara seu pescoço. Sentiu os cabelos do homem roçarem de leve nela. O tal Freyir não se mexia mais. Seu corpo boiava na água, alguns metros distantes do corpo do filho.

Aquele homem estava morto. Ela o matara. Não lembrava como, mas sabia que o matara.

Respirou fundo novamente, tentava normalizar a respiração. Sabia que era impossível, afinal ela estava dentro da água gelada. Mesmo vendo o corpo do sujeito flutuando, ela ainda ouvia a voz dele. Continuava ecoando em sua mente:

"Cabelos vermelhos como Gerd e olhos azuis como os meus..."

Baixou a cabeça. Agora poderia pensar com calma em tudo que ouvira...

Enquanto Hel repassava na mente tudo que sucedera anteriormente, ela sentia seu sangue enregelar. Conteve um espasmo de horror. Levou a mão na boca e olhou fixamente para um ponto qualquer.

-Por Odin! Agora eu entendo... Por que essa frase fixou-se na minha mente. "Cabelos vermelhos como Gerd e olhos azuis como os meus..."... Se as coincidências que existiam entre a minha história e as coisas que aquele homem falava forem verdadeiras... Significa que eu... Eu era a filha dele! –voltou a cabeça para a direção que o corpo do homem boiava- ELE É MEU PAI?

Sem distinguir a verdade da mentira, a ilusão da realidade; Hel encheu-se de pesar. Aquela pessoa poderia ser o seu pai, aquele que ela procurou a vida inteira para perguntar e entender o motivo de todas as suas desgraças.

E ela o matara.

A garota fechou os olhos e baixou a cabeça. Prendeu a respiração e mergulhou a cabeça na água gélida do lago.

Permaneceu debaixo d'água por algum tempo. Não sabia ao certo e nem se importava com aqueles detalhes.

Não viu mais nada. Tudo silenciara. A escuridão finalmente tomou seu corpo.

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Um cheiro familiar. Lenha queimada. O fogo crepitava com um ruído impreciso.

O ambiente estava quente. Nem parecia que do lado de fora o frio continuava castigando as pessoas.

Sentia a cabeça tonta. Sua visão estava desfocada.

Seu corpo doía e pesava. Sentia o corpo quente e suado. Provavelmente um resfriado. Tossiu. Seu peito chiava e expectorava. Corrigindo: pneumonia.

-Eu deveria ter morrido... Naquele pântano... Junto com os outros dois...

Levantou-se da cama com cuidado. Estava vestida. Um longo vestido de tonalidade escura. Parecia preto. Não tinha ninguém ali. Mas era mais do que óbvio que alguém cuidou dela durante aquele tempo. Mas quanto tempo se passara?

Pisou no chão. Os pés estavam adormecidos. Sentia lâminas argutas atravessando-os. A visão melhorou. Acostumou-se com a luz do ambiente. Olhou em volta. Estava sozinha numa gruta.

Tirou uma lenha da fogueira e improvisou uma tocha. Caminhou no sentido contrário ao do vento que adentrava o local. Aprofundou-se na caverna até que encontrou algo estranho que jamais vira na vida.

Lembrava uma armadura. Era roxa. Ela refletia as chamas bruxuleantes. Cravada nela, tinha algo que lembrava uma espada. Parecia uma espada feita de cristal.

Deu mais outro passo e pisou em algo, estilhaçando-o. Abaixou a tocha e, com a mão, conteve um grito de susto.

Ao redor da armadura tinham inúmeros esqueletos e crânios, espalhados.

-Todos vocês queriam essa armadura?

Hel esticou a mão para tocar na armadura. Era gelada. A garota sorriu.

-Parece que nós temos algo em comum... Ambas malditas...

-Engana-se Hel...

Ao ouvir aquela voz, a garota saltou para trás assustada. Deixou a tocha cair no chão e ficou na mais completa escuridão. Reuniu toda a sua coragem e olhou em volta, mesmo sem enxergar nada.

-Quem está ai?

A mesma voz se pronunciara. Uma voz aguda e forte. Uma voz feminina.

-Hel... Aprendiz de Gullveig...

-Hel... A criança consagrada à filha de Loki...-disse outra voz feminina. Uma voz doce.

-Quem está ai? Quem são vocês? Como sabem quem sou?

-Você não pode nos ver, garota...-respondeu a primeira voz.

-...Mas nós a vemos com clareza.-completou a segunda voz. –Nós a salvamos...

-Ainda não pode morrer.

-Asgard precisa de você... Odin quer que você o sirva.

A garota riu.

-Tenho pena tanto de Asgard quanto de Odin... Não consigo salvar nem a mim mesma, quanto mais a minha terra e o seu deus protetor.

-Mas agora, você vai ter que salvar. É sua obrigação.

-Sua salvação... Foi a vontade d'Ele.

-Esta armadura... Ela é sua por direito.

-Vista-a.

A garota ouviu as vozes e ficou confusa. Tinha matado o pai, tinha tentado se matar e agora ganhava presentes? Não fazia o menor sentido.

A voz forte riu, acompanhada pela doce.

-Isso não é presente Hel...

-É dever...

-Por Asgard e Odin...

-Você vai vestir a armadura e proteger esta terra gélida.

-Evitar que outros erros sejam cometidos...

-E cumprir o destino que os deuses traçaram para ti.

Um destino. Os deuses traçaram um destino para ela?

Algo tomou conta de seu corpo. Sentia um nó na garganta. Estava emocionada. Então, até alguém como ela tinha um destino. Então os deuses se dignaram a olhar por alguém como ela e lhe dar um destino?

Ela caminhou no escuro em direção da armadura. Tateou o ar até tocar no metal gélido da armadura. Mas dessa vez foi diferente.

Ao tocá-la, algo envolveu seu corpo e sua armadura. Uma luz cegante e quente iluminou tudo ao redor. Cada peça envolveu seu corpo.

Peitoral, cintura, braços, pernas. Para finalizar a cabeça. Levitando em sua frente a espada de cristal. Estendeu a mão e a pegou, empunhando-a.

-Incrível... Parecia tão pesado... Mas é tão leve...

Novamente as vozes se pronunciaram, ecoando na gruta:

-Agora, você deve treinar para fortalecer seu corpo e seu espírito...-soou a voz forte

-...Afinal, eles não pertencem mais a você... Agora, mais do que nunca, são de Odin.-completou a doce.

Ao ouvir as palavras delas, a garota sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Respirou fundo. Nunca amou a vida mesmo, poderia correr alguns riscos a mais.

-Hel... Aprendiz de Gullveig...

-Hel... A criança consagrada à filha de Loki...

As duas vozes se uniram e disseram em uníssono:

-Hel... A guerreira deusa de Megrez.

Glossário:

Deusa da noite, segundo a mitologia nórdica.

Reino dos mortos, segundo a mitologia nórdica.

É o Senhor do Fogo, além de ser símbolo da maldade e da astúcia, embora ajude os deuses muitas vezes. Conhecido como trapaceiro e dissimulado, possui vários filhos, inclusive os monstros que atemorizam os deuses. No Ragnarök, ele vai fugir de sua prisão e vai lutar contra os deuses.

O fim do mundo, segundo a mitologia nórdica.

Confissões da autora:

Ebaaaaa! Finalmente, conforme o prometido aqui está entregue o último capítulo! É o primeiro trabalho (publicado) que eu finalizo! XDDDD

E agora, darei continuidade à minha saga do Saga XDD e também às outras... A inspiração voltou? Creio que ela nunca tinha saído XD

Bjao para todos e inté maisXDD