Capítulo III

"Eu lhe disse que seu esforço era inútil, Kyo", Yuki tomava seu chá com calma, mas quem prestasse bastante atenção na xícara em sua mão direita perceberia que o líquido tremia suavemente. "Tohru tem seus próprios motivos para não voltar".

"Ela fugiu de mim", o gato grunhiu, ainda tendo a imagem na mente com perfeição, dela se afastando pela rua, sem nem ao menos lhe mandar um olhar de revés. "Ela disse... disse que eu não tinha o direito de pedir nada...".

Yuki anuiu. "E não tem".

Kyo finalmente sentou-se na sala, empurrando a mesa quebrada para longe e fitando o primo com seriedade. "Nós não somos mais crianças, Yuki. Acabou a época em que brigávamos por besteiras, por um aumento de poder ou por uma rixa tola. Quero que me diga o porquê de Tohru ter partido. De estar tão fria e... assustada"

"Os motivos não importam", era a segunda vez que Yuki dizia isso, o que fazia com que Kyo só se irritasse ainda mais com aquela situação completamente confusa. "Se voltou para ficar, tem que se ajeitar aqui. Tem que comunicar a família Souma. Apesar de seus sempre freqüentes sumiços, todos estavam muito preocupados com você".

"Feh...", resmungou. "Todos? Até o seu precioso Akito?".

"Akito está morto".

A expressão irônica no rosto de Kyo sumiu de vez. "Mo... morto?".

"Isso não deveria te surpreender", Yuki podia tentar não mostrar, mas havia alívio em seu timbre de voz. Akito sempre fora o seu carcereiro e a morte dele significava uma liberdade imensurável, talvez jamais compreensível para os outros membros da família. Somente o rato tinha a verdadeira noção do que era estar de mãos atadas, vendo seu destino sendo controlado por uma pessoa tão demente como fora o antigo líder. "Akito sempre teve uma saúde frágil e sua última doença foi terminal. O atual líder me proibiu de dar maior detalhes a você. Disse que quando quisesse saber de algo, que fosse até a sede dos Souma".

"Atual líder?".

"Hatori Souma. Lembra-se dele, não?".

"Lógico que me lembro. Mas... eu nunca pensei que o Hatori se tornaria o líder dos Souma".

Yuki deu um sorriso genuíno. "Hatori merece. Depois de tudo o que sofreu nas mãos do Akito, ele tinha direito a uma recompensa justa. E é um bom líder. Muito melhor do que Akito jamais foi".

"É... estou vendo que não tem jeito. Vou ter que ir falar com ele", ergueu-se no instante seguinte, começando a caminhar em direção a porta de correr.

"Kyo".

Olhou por sobre o ombro para o primo, que o chamara num sussurro frio. "Hatori sabe por que Tohru partiu. Talvez, se quiser...".

Yuki nada pode mais dizer pois o primo já correra loucamente em direção a casa dos Souma.


Abriu as portas de sopetão, entrando naquela 'mini-cidade' tão conhecida. Muitos de seus moradores estavam do lado de fora, aproveitando a noite quente, e assombravam-se com o garoto alaranjado que corria em direção a casa do líder. Alguns murmuravam algo como 'ele não vai nem nos cumprimentar?' e outros, um pouco mais venenosos, diziam que 'aquilo é comportamento típico de um nascido no ano do gato'. Mas Kyo pouco se importava. Nessa sua visita, todas as suas dúvidas seriam esclarecidas.

A casa do antigo líder, Akito, ganhara muito mais vida desde a última vez que a vira. As luzes não mais estavam apagadas e um cheiro de comida agradável pairava sobre o ar do lado de fora. Adentrou na morada, deparando-se com o calmo Hatori cozinhando.

"Pensei que fosse demorar mais, Kyo", ele nem ao menos se virara para vê-lo.

"Talvez eu devesse ter demorado mais mesmo... não encontrei nada ao voltar".

Calmamente, o médico voltou-se para vê-lo, sorrindo brevemente. "Então passou na casa de Yuki antes de vir para cá".

"Lógico que passei, eu queria encontrar...!".

"Tohru, eu sei", Hatori retirou o avental, desligou o fogão e indicou a sala. "Vamos ter uma conversa uma boa conversa na sala, e não entre panelas".

Kyo concordou, seguindo o novo líder e observando-o com discrição. Não conhecia muito sobre Hatori, mesmo porque, jamais haviam tido oportunidade de conversar. Não sabia o porquê de ele ser cego de um olho, ou o porquê de ele ter saído de seu antigo consultório para dedicar-se somente a saúde frágil de Akito. Tudo o que sentia, no momento, era que o homem amargurado desaparecera e dava lugar a um mais complacente e leve, sem pesos extras nas costas e sem problemas maiores do que podia acarreta. Antes que pudesse concluir seus pensamentos, já estavam sentados sobre as almofadas fofas, enquanto o médico estendia um cigarro em sua direção, ocupando-se com a outra mão em acender outro.

"Não quero, obrigado".

"Bem...", Hatori guardou o cigarro no bolso e olhou-o, com divertimento evidente. "Onde aprendeu bons modos, Kyo? Agradecendo-me depois deu um oferecimento, não quebrando as coisas...".

"Com o tempo", o gato respondeu, até entendendo a razão de todos estranharem seu novo comportamento. Quando garoto, era um poço de aspereza... e se surpreendia em compreender isso depois de tantos anos.

"Um bom professor. O melhor, na minha opinião. Nos ensina a apagarmos sofrimentos e aceitarmos que o passado está morto".

"Eu não vou aceitar que o meu passado acabou, Hatori", rebateu instantaneamente. "Não quero ficar sem Tohru. Eu a quero perto de mim".

O médico fitou-o por segundos mínimos, antes de murmurar. "Não".

"Não o quê?".

"Não será possível. Tohru não vai voltar a ter relações com nenhum dos Souma".

"Droga, parem de ficar falando em enigmas!", gritou. "Você e Yuki estão me escondendo algo? O que a Tohru fez para não podermos mais ficar com ela?".

"Nada".

"E então?".

"Yuki fez".

Maldito gato desgraçado! Porque eu não suspeitei que ele destruiria tudo se eu não estivesse por perto!

"E o que ele fez?".

Hatori jorrou fumaça pela boca. "Algo terrível".

"Terrível?", assustou-se. Yuki adorava Tohru. Era sua melhor amiga e Kyo não o imaginava fazendo algo que pudesse feri-la. "Ele a machucou ou alguma coisa desse tipo? Porque se o fez, eu...".

"Ele se apaixonou por ela".

"O... o quê?".

O médico suspirou com fadiga, esfregando os olhos dourados. "Eu estou cansado. Devemos mesmo falar sobre isso?".

"Sim, devemos!", Kyo insistiu. "Yuki se apaixonou por ela!".

"Não seja ingênuo, Kyo. Tohru esteve com vocês por bastante tempo. Sempre foi bonita, gentil e ouso dizer, a única capaz de suportar mentalidades tão debilitadas como a sua, a de Shigure e a de Yuki. Eu não me surpreenderia se aquele escritor idiota começasse a gostar dela, mas ele foi esperto e iniciou um relacionamento com a editora. Você partiu e eu pensei que não houvesse nada que o ligasse a aquela casa. Só sobrou Yuki. E ele se apaixonou por ela. E ela...".

"E ela...?", o coração bateu, ansioso pelas próximas palavras.

"Se apaixonou por outro".

"Isso quer dizer que...", o mundo sobre os seus pés desabou por completo e foi obrigado a usar as mãos como apoio para não cair para trás. Tohru, sua Tohru era apaixonada por outro homem? Poderia até suportar o fato de ela gostar de Yuki, ou até mesmo do tonto do Shigure, mas... Outro que não fosse um deles? Um outro qualquer que lhe roubara o coração e a fizera partir?

"E quem é o outro?".

"Só posso lhe dizer que é da família Souma. O resto, cabe-lhe descobrir. Não quero me meter nas relações de vocês".

"Mas, Hatori, eu...".

"Kyo", ele o cortou, com o rosto austero. "Eu o esperei por anos porque tenho algo importante a te anunciar".

"Se... se for falar sobre Akito, eu já sei que está morto e que você é o novo líder", ofegava, suava, tremia. A idéia de Tohru amar outro integrante da família Souma enchia-lhe de dor insuportável. Nenhum assunto a mais lhe importava. Só queria vê-la e matar na mente feminina aquele por quem ela se enamorara. Tinha até medo de pensar quem seria.

"Que bom que pelo menos até esse ponto, você já sabe. Agora, deixe-me terminar o meu assunto com você e depois, poderá fazer o que quiser".

Como precisava de um tempo para se estabilizar, concordou com um movimento da cabeça.

"Pois bem. Ambos sabemos que durante anos, os nascidos sobre o ano do gato foram excluídos do círculo dos 12 e muitas vezes, tratados rudemente".

"Hai".

"Akito era um dos que pregava essa filosofia precária. Sua partida, Kyo, no entanto, o enlouqueceu sobremaneira. E preocupado com você, ele não mediu esforços para achá-lo, alegando que... que uma besta como você não deveria ficar fora dos olhos dos Souma", ao perceber que nem o adjetivo o afetava, Hatori perguntou-se se a notícia sobre Tohru havia transtornado tanto assim o gato. "Escute-me, isso é de extrema importância!".

Kyo o olhou rapidamente e pediu desculpas num tom baixo. Hatori assim prosseguiu. "Mas Akito não o achou. Ninguém o fez, de fato. Akito começou a dedicar-se a atormentar os outros familiares. Primeiramente, Shigure, quando este foi se casar. Mas ele foi bem mais persistente e dobrou as ordens do antigo líder. Depois, Akito voltou-se contra mim, mas...", ele sorriu sardonicamente, com certo orgulho também. "Eu já havia escutado demais dele e o ignorei... sobrou-lhe então Yuki e Tohru".

Os olhos amendoados de Kyo arregalaram-se, como se ele acordasse de uma realidade distante. "Tohru! O que ele fez com ela!".

"Nada. Akito não era mais forte do que Tohru. No entanto, com relação à Yuki, ainda sofria uma grande influência. Pregou-lhe dúvidas, tornou-o novamente aquele garoto que temia o contato com outras pessoas. Yuki afastou todos. Machucou todos. Foi preciso que Tohru tivesse muita paciência com ele. E o teve. Só que isso foi demais para ela".

"E por isso... ela foi embora".

"Tohru estava sozinha. Sempre esteve, desde que você foi embora e eu duvido que ainda não esteja", Hatori encarou-o com um tanto de decepção, mas logo, voltou a ter a expressão tranqüila. "Depois discuta isso com Yuki. O importante é que Akito, ao perceber que nada que fazia surtia efeito, recusou-se a tomar seus remédios, recusou-se a se alimentar e tudo o que fazia o dia inteiro era gemer, dormir, chorar. No fim, isso o matou. Foi alívio e tristeza para toda a família. Eu assumi o posto de líder e apenas esperei você voltar para dizer que...", ele deu um meio-sorriso. "Você está dentro".

"Dentro?".

"Isso, Kyo. Chega de ser o excluído. Se a maldição também o domina, é justo que compartilhe conosco do mesmo sentimento, senão da mesma frustração. Pode vir morar aqui, se quiser. Participará das mesmas comemorações. E será tratado como qualquer outro dos doze. O que acha?".

Isso é tão injusto, Kyo... Porque você não pode participar da festa de final de ano de novo? Eu não vou ficar sozinha dessa vez, vou comemorar com a Hana-chan e com a Uo-chan! Por isso, eu não quero que você fique fora de nada! Que tenha um ano novo tão bom como o meu!

"Antes...", a franja cobriu-lhe o olhar repleto de saudade da época em que Tohru lhe dissera aquilo. Somente preocupada por ele não participar da comemoração central dos 12. Por pertencer aos de fora. "Antes de eu ir embora, tudo o que eu mais queria era ouvir o que você está dizendo para mim agora, Hatori", mas isso não lhe importava mais. Com quem compartilharia tal vitória? Com o resto do círculo dos doze? Eles não bastavam mais. Ajustar-se a eles já não era o suficiente. Egoísmo? Talvez. Mas se Tohru não estivesse com ele, entrar naquela parte da família não lhe interessava. "Deixe-me tê-la de volta, Hatori. Se eu a tiver... eu juro que não precisa fazer isso por mim. Eu só preciso da Tohru. Só preciso disso para fazer-me feliz e completo".

"Kyo", Hatori pronunciou seu nome com surpresa. "Eu não estou fazendo isso apenas por você. Estou fazendo por todos nós. Akito foi injusto e aqueles que vieram antes dele também. Eu quero apenas reparar os erros passados, para que todos não venham

A sofrer por leis estúpidas. Seu avô foi um deles. Eu odiaria que você fosse também".

"Eu agradeço", Kyo ergueu-se, fazendo com que o médico fizesse o mesmo. "Agradeço por estar sendo tão bom. Mas... mas e ela? Ela vai continuar sozinha? Quando ela tinha tudo, eu nada tinha. E agora que eu tenho tudo, como posso deixá-la com o nada que eu tanto odiava? Não é justo", a voz soou com mais determinação na próxima sentença. "Eu vou descobrir quem é o outro, Hatori. Vou fazer com que ele a faça feliz. E aí, ela vai voltar para nós. Como a integrante da família Souma que ela sempre foi".

Hatori ficou sozinho segundos depois. Não tinha a menor idéia dos planos de Kyo, mas pela primeira vez desde que conhecia o espevitado gato, confiava nele. Só esperava que ele não se surpreendesse quando descobrisse quem...

"Quem é o outro", riu levemente, indo em direção à cozinha. "Outro...".

Continua...


Konbawa, minna!

Peço sinceras desculpas pela demora, mas tive problemas sérios no computador. Aqui está o terceiro capítulo, com a aparição mais do que especial de Hatori!

Deu para perceber que o fic segue a linha cronológica do desenho, não deu? O mangá é infinitamente mais complexo e a morte de Akito não seria aceita de uma maneira tão complacente, muito menos a substição por Hatori!

Agradeço aos comentários de coração!

Kisu!