Capítulo 4

- Então, deixe-me recapitular a coisa toda. - Sirius coçou o queixo, agachado na mesa da sala, seu novo lugar preferido da casa - O novo líder de vocês, Fenrir Greyback, na verdade é um servo do que você chama de Wyrm?

- Não posso pensar em nada diferente, visto que aquelas marcas de sangue começaram a surgir exatamente depois que ele derrotou o meu pai e tomou a liderança da alcatéia. - Remus refletiu, como se até hoje o assunto lhe intrigasse - Além do mais, o próprio fato dele ter sido capaz de derrotar meu pai com tanta facilidade já é muito suspeito.

- Por que diz isso?

- Porque Fenrir sempre foi um lobisomem muito fraco. Antes eu dava conta dele tranquilamente sempre que ele tentava arrumar alguma confusão. Até que um dia ele desapareceu e quando voltou tinha força suficiente pra matar a todos nós se quisesse.

- Certo... - Sirius concordou que aquilo era realmente um bom motivo para suspeitas - Acho que está bem claro que esse lobo fedorento fez algum tipo de aliança com o Sabá.

- E que essa aliança tem relação com o nosso Caern. - Remus completou.

Sirius assentiu com a cabeça.

- Não é a primeira nem a última vez que eu vejo o Sabá tentando se apoderar desses nodos. Eu mesmo já fui guardião de um deles, há muitas décadas atrás.

- Foi? - Remus perguntou, curioso - E o que aconteceu?

Sirius fechou a cara de uma forma que não deixou dúvidas a Remus de que ele havia acabado de pisar em terreno arenoso. Mas, ao contrário do que o lobisomem imaginou, ele não se recusou a responder.

- Eu nunca voltei a ver um ataque Sabá das proporções daquele que eu vi naquela época. Quando o arcebispo em pessoa desce pra nos atacar com uma multidão de escravinhos deformados, não há muito o que fazer. - apesar do tom de voz do vampiro transmitir indiferença, por algum motivo Remus sabia que aquele era um assunto delicado.

- Eu compreendo. - Lupin respirou fundo e levantou-se para colocar um bule de água no fogo na cozinha.

- Mas se isso for verdade, vocês lupinos estão numa boa enrascada. - Sirius continuou, parecendo espantar as lembranças que o perturbaram com alguma habilidade - O Sabá não vai permitir que vocês continuem vivos depois que eles conseguirem dominar o lugar.

A cabeça de Remus surgiu na porta da cozinha:

- Como assim?

- Bem... - Sirius hesitou um pouco antes de começar - Ele vem atacando esses locais de poder faz algum tempo... Mas seja qual for a tática que eles usam pra conseguir isso, no fim o Sabá sempre toma o lugar fisicamente e matam, ou abraçam (1) todo mundo que passe por perto do local.

A cabeça de Remus sumiu por alguns instantes e logo o lupino retornou com uma xícara de chá nas mãos.

- Não posso dizer que não imaginava essa possibilidade. - Remus sorveu um longo gole do líquido quente, como se aquilo o fizesse pensar um pouco melhor.

- Foi por isso que você procurou a ajuda de Dumbledore? - Sirius perguntou, para logo depois completar rapidamente - Aliás, por que você não fala sobre suas desconfianças com os outros lobisomens mesmo?

- Porque não adiantaria. Nós devemos obediência a Fenrir.

- Mesmo quando ele é um maldito lupino aliado ao Sabá que vai matar todos vocês? - Sirius perguntou, impaciente.

- Claro que não. Os Garou (2) devem combater a Wyrm mesmo quando ela domina um líder.

- Então? - Sirius fez um gesto que demonstrava obviedade.

- Não é tão simples assim. - Remus explicou, paciente - Nós não somos tão irracionais quanto você imagina, e gritar acusações contra um líder sem provas suficientes pode ser um erro fatal.

- Aquelas manchas de sangue vampírico são uma bela prova, não acha? - Sirius insistiu.

- Não se Greyback der uma justificativa satisfatória para a existência delas.

- Como por exemplo?

- Espalhar sangue de vampiro pra todos os lados não é uma imagem que desagrade os Garou. Se ele esfregou aquele sangue ali dizendo que era uma prova do nosso poder sobre o dos vampiros, essa seria uma justificativa mais do que bem aceita.

- E você não ouviu com os próprios ouvidos essa justificativa imbecil? Afinal de contas, você é um dos que precisariam ser convencidos.

- Não, eu não ouvi justificativa alguma e nem estava entre os que precisavam ser convencidos.

- Por que? Você não é tão lupino quanto os outros?

- Claro que sou! - Remus respondeu prontamente.

Sirius esperou o outro continuar a explicação, mas o silêncio se manteve imperturbável até que ele próprio o quebrou, impaciente:

- Dá pra parar com todo esse mistério e dizer logo o quê diabos aconteceu?

Remus já estava tão mergulhado nas lembranças do seu passado que se sobressaltou um pouco com a violência com que o vampiro cuspiu aquelas palavras. Mas depois de uma pequena pausa, decidiu responder:

- Eu não tenho mais voz porque fui jogado no ostracismo pelos meus. Tecnicamente eu ainda faço parte da alcatéia, mas os demais estão proibidos de falar comigo, ou de me ajudar em qualquer coisa. Na verdade, você é a primeira pessoa com quem eu falo de verdade em quase dez anos.

Sirius arregalou os olhos. Nunca poderia imaginar que o motivo poderia ser tão sério. Muito por causa disso seu tom de voz adquiriu uma suavidade bem maior quando ele fez uma nova pergunta.

- Mas... por que?

- Porque eu ajudei um vampiro. Mais ou menos da mesma forma que eu estou fazendo com você agora.

De repente, Sirius teve que lidar com uma sensação de desconforto que não sentia desde seus primeiros anos como vampiro, quando ainda se deixava levar muito mais por suas emoções humanas.

- Eu sinto muito... - Sirius respondeu, com sinceridade.

- Não se incomode. - Remus deu um sorriso cansado e encolheu os ombros, segurando a alça da xícara de chá com mais força.

Alguns minutos de silêncio desagradável se seguiram. Sirius acomodou-se melhor na sua mesa preferida e olhou pra Remus.

- Não se preocupe. Eu vou te ajudar e no fim de tudo isso esses lupinos vão implorar pra voltar a falar com você.

Era uma forma meio estranha de demonstrar preocupação, mas Remus a compreendeu e ficou contente com ela. Um pouco surpreso, é verdade. Mas contente do mesmo jeito.

- Muito obrigado... Mas tudo que realmente me importa nesse momento é protegê-los. Mesmo que eles não falem comigo.

Sirius apenas deu de ombros, mas a verdade é que ele sabia melhor do que ninguém como era ficar só durante tantos anos. Ele não era nenhum lupino pra querer se matar se ficasse longe dos seus, mas sendo uma criatura da noite podia compreender a solidão perfeitamente. E a solidão podia ser ao mesmo tempo uma adorável amiga e uma terrível inimiga.

Na verdade, a solidão sempre tinha sido a melhor amiga de Sirius, até que uma pessoa surgiu e mudou tudo.


Dumbledore olhou pro vampiro sentado bem a sua frente e perguntou:

- Afinal, o que o traz aqui, Sr. Malfoy?

Lucius Malfoy parecia transpirar graça e arrogância. Aparência física de alguém que foi bem tratado enquanto vivia e teve a beleza bem cuidada preservada depois do abraço, os cabelos muito loiros pareciam se desmanchar em suaves e longas madeixas perfeitamente distribuídas pelos ombros. O rosto duro e sério, olhos frios e corpo musculoso e bem cuidado completavam o quadro, fazendo um enorme contraste com a figura do Príncipe, que tinha sido abraçado já com bastante idade. Mas sendo ancião Ventrue, Lucius não se preocupava nenhum pouco com beleza e sim com poder. Em resumo, aquele vampiro era uma pedra no sapato de Dumbledore mas, apesar disso, um primógino(3) importante, que não poderia ser ignorado de maneira alguma.

Muito por causa disso, Dumbledore se via forçado a interromper sua série de afazeres para ouvir as reclamações de Malfoy. Nada que o surpreendesse, contudo.

Lucius Malfoy por sua vez pareceu se chocar com a simples idéia de Dumbledore não concluir o que ele tinha vindo fazer ali por conta própria.

- Majestade... Eu acabei de lhe dizer que meu filho descobriu que esse Potter é de sétima geração!

- Sim, eu ouvi perfeitamente, Sr. Malfoy. E então?

- Não acha estranho que um neófito Tzimisce de sétima venha bater na sua porta procurando asilo?

- Já conversamos muito sobre isso, Lucius. - Dumbledore demonstrou o primeiro sinal de cansaço.

- Mas isso foi antes de saber a geração dele! Francamente, ele não é cria de um vampiro qualquer. Quem quer que seja o maldito Tzimisce que o abraçou, é possível que se iguale em poder até com senhor.

- Acalme-se, Lucius. Nós sequer sabemos se o mestre de Potter está vivo. Ele mesmo não soube nos informar a esse respeito...

- Ele está mentindo. - Lucius interrompeu, o controle recuperado em tempo recorde - Basta Vossa Majestade meter um Osso da Mentira (4) na mão dessa criança e saberemos.

- Francamente, Lucius, não acho que seja necessário.

Lucius ficou um instante em silêncio, como se precisasse desse tempo para absorver as palavras do outro, mas logo contra-atacou:

- Majestade, como o devido respeito, mas o senhor só está mantendo esse vampiro aqui por causa daquele Sirius Black, não é mesmo? - perguntou num tom não tão polido quanto deveria, fazendo questão de passar um tom de asco ao proferir o nome Black.

- Está enganado, Sr. Malfoy. Não é segredo pra ninguém que eu mantenho com o Sr. Black um relacionamento de elevada estima e consideração... Mas, apesar disso, eu apenas permiti que Potter permanecesse entre nós porque considerei prudente e seguro. - dito isso, Dumbledore se levantou na cadeira, fazendo um gesto em direção a porta - Se essa resposta lhe satisfaz, por favor, não vamos discutir mais a este respeito, ambos somos muito ocupados.

Entendendo que não conseguiria mais nada dessa conversa, Lucius levantou-se e, depois de fazer uma curta reverência, se retirou, deixando Dumbledore e seus pensamentos pra trás.

Dumbledore não pôde deixar de pensar que era uma sorte que nem em seu mais terrível pesadelo Lucius poderia imaginar quem realmente era o mestre de Harry Potter. Mas este era um segredo que deveria ser guardado por enquanto.


Peter Pettigrew estava nervoso. Tinha sido convocado pela segunda vez consecutiva naquela semana e novamente se apresentaria a seu mestre sem novas informações pra dar.

E pra sua total desgraça, o Arcebispo (5) Tzimisce não andava nenhum pouco satisfeito nos últimos tempos. Na verdade, desde que sua cria havia desaparecido dos seus domínios junto com um de seus prisioneiros, seu mestre se tornara ainda mais irascível e avesso às desculpas de Peter.

O Nosferatu antitribu (6) subiu as longas escadas lodosas em forma de caracol e então prosseguiu por um longo e vazio corredor tão lentamente que era como se quisesse cumprimentar cada uma das enormes pedras que cobriam o chão do lugar. Uma aranha desceu de sua teia para "cumprimentá-lo" e Peter a pegou nas mãos, fazendo uma suave carícia em suas costas peludas, sorrindo nervoso.

Alguns minutos depois e Peter estava de pé em frente ao enorme portão que o separava do Arcebispo e, pela primeira vez em muitos anos, achou que aquele corredor enorme não era grande o bastante. Mas antes que pudesse reunir coragem para empurrá-lo, ele se abriu por conta própria, revelando um vampiro muito mal humorado sentado num enorme trono enfeitado de ossos.

O Arcebispo Tzimisce acariciou a cabeça de uma enorme cobra, ajeitando-a melhor em seu colo e só então pareceu se dar conta da presença física de Pettigrew.

- Peter, Peter... - apesar do tom ameno, o Nosferatu sabia que ele não estava satisfeito - Estava a sua espera...

- Desculpe o atraso, senhor. - O vampiro balbuciou, enquanto se curvava numa reverência exagerada demais.

- Pensei que tivesse pedido para que me desse notícias o mais rapidamente possível... - o Arcebispo prosseguiu - Mas ao invés disso você só me apresenta desculpas. Espero que as coisas sejam diferentes dessa vez.

- Meu senhor. - Peter se curvou até quase se ajoelhar no chão - Eu lamento terrivelmente, senhor. Mas por mais que eu procure não consigo achar o paradeiro nem do Sr. Potter e nem daquele Gangrel, mas eu juro que...

- Peter... - o Arcebispo Tzimisce o interrompeu, sua voz havia adquirido um suave tom predatório que ele sempre costumava usar quando estava prestes a administrar uma punição - Aproxime-se.

- Senhor, por favor...

- Ora, o que há? Aproxime-se, venha...

Tremendo dos pés a cabeça, o vampiro se aproximou alguns passos.

- Mais. - o vampiro insistiu, sua voz começando a transparecer um leve vestígio de impaciência.

Quando Peter finalmente ficou ao alcance das mãos do Tzimisce, ele o puxou sem muita gentileza para perto de si, a mão magra e ossuda deslizando pelo seu rosto.

- Peter... - Ele finalmente disse, seus dedos apertando suas bochechas gorduchas com gentileza - A sua incompetência está me deixando um pouco irritado...

Pettigrew olhou para o rosto cadavérico de seu senhor. Nunca o Arcebispo lhe parecera tão terrível antes. A cabeça sem cabelos, o rosto extremamente angular, cuidadosamente esculpido por suas próprias mãos com o único intuito de apagar qualquer vestígio de humanidade, os olhos puxados refletindo puro ódio, a pele de aspecto macilento completava a figura terrível daquele vampiro impiedoso.

Um monstro por dentro e por fora. Ninguém teria dúvidas disso.

- Perdão, senhor. - Peter guinchou quando os dedos do vampiro se afundaram um pouco mais em sua carne, começando a lhe provocar os primeiros vestígios de dor - Eu juro que vou me empenhar mais... que não vou dormir, nem comer enquanto não descobrir... Arght!

De repente, o Nosferatu se viu incapaz de falar. Os dedos do outro haviam se afundado tanto em seu rosto que fora obrigado a abrir a boca e, com uma dor lancinante, sentiu a parte interna de suas bochechas se encostarem.

Voldemort finalmente o largou, parecendo satisfeito com a deformidade que causara.

- Aprenda de uma vez a me trazer ações e não palavras. - Foi a última fala do Arcebispo e Peter sabia que deveria partir.

Ainda confuso e entorpecido pela dor, fez uma última reverência e claudicou pelos corredores se afastando o mais rapidamente que pode.

Voldemort deixou escapar de seus lábios um som de puro desprezo, antes de voltar suas atenções para o réptil que deslizava por suas pernas.

Continua...


(1) Sempre lembrando que o "abraço" é o ato de transformar alguém em Vampiro, acho importante informar que o Sabá, ao contrário da Camarilla, não procura controlar o nº de vampiros que cria. Assim sendo, uma das técnicas Sabá é abraçar em massa, ou pelo menos criar exércitos de carniçais (escravos humanos).

(2) Garou - é o termo usado por lupinos para se autodenominarem.

(3) Primógeno - O termo remete aos membros da Primigênie, que é o conselho formado pelos anciões que residem numa determinada cidade. São os poderosos.

(4) Osso da Mentira - É um ritual Tremere. Consiste em fazer com que o vampiro segure um pedaço de osso, normalmente um crânio. Enquanto estiver tocando o osso o vampiro não consegue deixar de dizer a verdade, seja qual for a pergunta que lhe façam.

(5) Arcebispo - O posto de Arcebispo do Sabá equivale ao de Príncipe da Camarilla.

(6) Nosferatu antitribu - O clã Nosferatu é marcado por uma maldição. Todos os membros desse clã são invariavelmente deformados e horrendos e nenhuma magia ou Vicissitude é capaz de reverter isso. A principal disciplina desse clã é a Ofuscação, que normalmente usada para esconder a verdadeira figura desses vampiros. Também há o Animalismo, mesma disciplina usada pelo clã de Sirius. O ponto forte desse clã é a sua rede de informações; esses vampiros vivem do tráfico de segredos. No caso de Peter, ele é um antitribu porque a diretriz do clã Nosferatu é pertencer a Camarilla e não ao Sabá.

A título de exemplo, podemos citar o próprio Potter, que ao se aliar à Camarilla tornou-se um Tzimisce antitribu, pois a diretriz do seu clã é pertencer ao Sabá.