Capítulo 5
O gabinete de Dumbledore era amplo e bem mobiliado. Móveis antigos e quase tão resistentes quanto seus donos. Madeira da melhor qualidade, feita pra durar.
O velho Dumbledore passava a maior parte de sua noite enfurnado naquele lugar, às voltas com inúmeras decisões e problemas intermináveis e aparentemente insolúveis. Volta e meia tinha que mandar fazer uma faxina pra limpar sua cidade de vampiros irresponsáveis que não sabiam respeitar a Máscara (1), ou não tinham inteligência para fazê-lo da forma correta.
Mas esse estava longe de ser o seu único problema com vampiros. Havia a ameaça Sabá mordendo os seus calcanhares o tempo todo, havia anciões ambiciosos que venderiam a Camarilla inteira por um punhado a mais de poder... e havia Sirius.
Um dos vampiros mais competentes e confiáveis que Dumbledore conhecia era também, e pra sua desgraça, um Gangrel. O que por si só significava alguém que não ficava muito tempo num mesmo lugar, e ao mesmo tempo não dava a menor bola pra política.
De fato, desde que o clã de Sirius se desligara da Camarilla, tornando-se independente, Sirius se sentiu ainda menos na obrigação de se submeter às ordens de Dumbledore. Por muito favor, escolhia uma missão que lhe interessasse por algum motivo. Quando não gostava da proposta, Sirius simplesmente dava as costas e sumia e não havia muito que Dumbledore pudesse fazer a respeito.
Mas dessa vez, Dumbledore não podia de jeito nenhum permitir que Sirius recusasse.
- Por que justo eu tenho que fazer isso? - Sirius perguntou, rebelde, depois de ouvir com impaciência a proposta de Dumbledore.
- Porque suas viagens constantes te presentearam com um conhecimento precioso dessas regiões. - Dumbledore respondeu, paciente - Além disso, todos os demais estão cumprindo missões tão ou mais desagradáveis do que a sua.
- Duvido muito que algum outro vampiro tenha que ficar limpando bunda de mago - Sirius resmungou.
- Muito cuidado com suas palavras, Sr. Black! - Minerva levantou-se de sua cadeira, indignada com a ousadia do vampiro.
- Está tudo bem, Minerva. - Dumbledore levantou a mão, apaziguando os ânimos - Sr. Black, creio que você está subestimando a sua missão.
- E tem como não subestimar? - Sirius deu de ombros - Francamente, bancar o guarda de um maldito lodo...
- Nodo. - Dumbledore corrigiu.
- Que seja... - Sirius prosseguiu, levantando-se da cadeira - Mande um neófito.
- Um neófito não conseguiria sequer chegar lá por conta própria.
- Não por isso. Eu dou uma carona pra ele e depois vou cuidar da minha vida.
McGonagall se remexeu na cadeira. Dumbledore por sua vez não se deixou abalar:
- Insisto que você está subestimando a sua missão.
Sirius cruzou os braços, displicente:
- Então me explique o que esse buraco que você quer me atirar tem de tão importante e talvez eu pare de subestimar tanto a minha missão.
Dumbledore pareceu ponderar o caso por alguns instantes e então finalmente anuiu.
- Por favor, sente-se. - Dumbledore, pediu antes de começar. Sirius obedeceu.
- Está muito bem... Confesso que há uma questão pessoal por trás desse meu pedido e por isso a minha hesitação em entrar em maiores detalhes. - Fez uma pausa, durante a qual Sirius aguardou pacientemente que continuasse - Já ouviu falar da Ordem de Hermes (2)?
- Alguma coisa.
- Pois muito bem, há cerca de duas noites atrás recebi um mensageiro da Ordem de Hermes. A mensagem me explicava que um nodo muito importante anda sofrendo constantes ataques de carniçais (3) Sabá e me pedia ajuda para combatê-los.
- Ataque de carniçais Sabá? - Sirius fez uma careta - Lamento por eles.
- A mensagem também me falava que vários outros nodos têm sido tomados nas proximidades e que eles perceberam que estes ataques não são nada aleatórios. Não se sabe ao certo os objetivos deles, mas com certeza eles vão tentar alguma coisa usando esses nodos.
- Eu sinceramente duvido que esses malditos Sabá saibam nos atacar de alguma outra forma que não seja usando a força bruta. Quantas vezes nós não tivemos que lidar com eles? Não, Dumbledore... Não consigo pensar que o Sabá tenha se tornado tão meticuloso do dia pra noite.
- É aí que o senhor se engana, Sr. Black. - Minerva interferiu - Nada aconteceu do dia pra noite. O senhor deve ter ficado sabendo que o antigo Arcebispo do Sabá foi morto recentemente.
- Aquele Tzimisce malcheiroso já foi tarde pro inferno. - Sirius respondeu.
- Pois então... Recentemente nós descobrimos que na verdade ele sofreu Diablerie (4).
- Vocês estão bem informados, não? - Sirius ironizou e tanto Dumbledore quanto McGonagall preferiram ignorar aquele comentário - De qualquer forma, não podemos dizer que seja algo muito surpreendente, não? Estamos falando de Sabá, afinal de contas. Eles devem fazer Diablerie no almoço e no jantar.
- O senhor pode ter razão... - Minerva respondeu - Mas o vampiro que fez isso com o antigo Arcebispo também tomou o lugar dele.
- Lei da selva. Típico do Sabá. - Sirius falou com desprezo.
- A partir daí, acho que podemos pensar com que tipo de vampiro que teremos que lidar daqui pra frente. - Minerva explicou.
- Eu francamente acho que todos os Sabá saíram de um mesmo baú empoeirado. - Sirius opinou, sem humor - No fundo é tudo a mesma coisa. Vejam bem, saiu um Sabá maluco, entrou um Sabá diabolista. Daqui a pouco ele bate aí, com uma horda de carniçais.
- Tenho motivos pra pensar que o senhor está errado. - Dumbledore respondeu - Eu penso que dessa vez eles têm uma estratégia de ataque a longo prazo.
- Certo... E vocês acham que essa estratégia tem relação com esses nodos, é isso? - Sirius perguntou.
- Exato. - Dumbledore confirmou.
- Está muito bem. - Sirius levantou-se novamente e deu seu parecer - Não custa nada passar lá, afinal.
Dizendo isso, o Gangrel andou tranqüilamente até a porta, as mãos no bolso. Mas quando estava prestes a girar a maçaneta, virou-se:
- Qual era mesmo a questão pessoal?
Dumbledore sorriu:
- Eu já fui da Ordem de Hermes. Mas claro, isso foi há muito tempo atrás...
- Entendo... - Sirius retribuiu o sorriso - Vou amanhã mesmo.
- Você está pensativo hoje... - Remus comentou sem querer perguntar o motivo pra evitar uma briga como a que eles tiveram algumas noites atrás.
- Estava pensando em histórias muito antigas... - Sirius respondeu - Coisa de mais de 50 anos. Faz muito tempo mesmo que Dumbledore me explora.
- Você parece ter uma relação de amor e ódio com ele.
Sirius deu uma risada:
- Certa vez alguém me disse que eu tenho uma relação de amor e ódio com todo mundo.
Foi a vez de Remus rir.
- Quem disse isso deve estar certo.
Sirius olhou pro lobisomem, demonstrando surpresa:
- E você diz isso por quê!
- Bem, não leve a mal. Mas está um pouco óbvio...
- Ora... - Sirius ficou por alguns segundos sem saber o que dizer, mas logo veio com o argumento que pensou ser invencível - Eu não tenho uma relação de amor e ódio com você, por exemplo...
Remus poderia rebater tranqüilamente qualquer outro argumento, mas aquele tinha ido direto no calcanhar de Aquiles.
- Ah, bem... Eu não sou um bom exemplo. Nós nos conhecemos há pouco tempo...
- Você faz parte de "todos", certo? - Sirius interrompeu.
Remus respirou fundo. Não conseguia compreender como todas as conversas que tinha com aquele vampiro invariavelmente terminavam numa discussão como essa. Decidiu mudar de assunto:
- Sirius... Amanhã é lua cheia...
- É, eu sei. - Sirius respondeu, demonstrando pouco interesse.
- Então... - Remus de repente sentiu que deveria escolher bem as palavras - Precisamos fazer alguma coisa a respeito...
- Como o quê? - O desinteresse de Sirius era crescente.
- Bem, é que eu fico um pouco mais... irritado durante a lua cheia.
- Ora, ora. - De repente o interesse de Sirius reapareceu como num passe de mágica - Quer dizer que amanhã vamos conhecer o verdadeiro Remus Lupin?
- Não é nada disso. - Remus procurou explicar - O verdadeiro Remus Lupin está falando com você agora. Eu só...
- Eu só tava brincando... não leve tão a sério. - Sirius o interrompeu antes que se desmanchasse em explicações - Não se preocupe com a Lua cheia. A menos que você não pule na minha jugular, não teremos problemas.
- E se por acaso eu pular na sua jugular? - Remus perguntou tentando demonstrar que não estava preocupado sem motivo, ao contrário do que o outro poderia pensar.
- Bem... - e Sirius olhou para as próprias garras, divertido - Aí as coisas vão ficar um pouquinho mais interessantes.
Remus não achou palavras pra demonstrar a indignação que sentiu frente ao descaso daquele vampiro enervante. Será que ninguém tinha contado pra ele que não era nada esperto brincar com lupinos?
- Muito bem, que seja... - Remus finalmente falou. Se Sirius queria tanto morrer, ele não iria mais perder tempo tentando impedir.
Somente quando Remus deixou a sala, disposto a preparar alguma coisa pro jantar, o Gangrel olhou de soslaio pra trás, para logo depois dar de ombros.
Harry se olhou no espelho durante longos minutos, satisfeito por não encontrar nenhum vestígio do que nos últimos anos havia reconhecido como sua aparência. Se agora parecia um rapaz normal, no auge da juventude de meros dezessete anos, idade em que tinha sofrido o abraço e deixado dolorosamente o mundo dos vivos, olhos verdes ainda escravos da miopia mesmo depois de ter passado a fazer parte do mundo vampírico, cabelos pretos curtos e sem corte, pele branca, mas com aparência humana graças à Vicissitude, nem sempre as coisas foram assim.
Fechou os olhos ao ser invadido por um violento flash onde se viu deformado como uma mera massa de carne, a dor ultrapassando a própria percepção de seus sentidos, deixado sozinho por seu mestre para que aprendesse a se reconstruir por conta própria.
O método de aprendizado apesar de violento tinha dado certo e, depois de muitos anos de sofrimento, Harry aprendera a esculpir sua própria aparência da maneira que desejasse. Mas apesar de ser capaz de fazer de si mesmo a criatura mais bela do mundo, o vampiro apenas recriara aquele rosto. O mesmo rosto que tinha no dia em que fora abraçado, debaixo de uma chuva de sangue.
A única marca física que havia sobrevivido a toda a deformidade provocada por seu mestre foi uma cicatriz em forma de raio desenhada na testa. Mas esta Harry cuidaria de apagar no momento certo.
Batidas na porta interromperam seus devaneios e Harry deu uma última olhada no espelho antes de permitir que quem quer que fosse entrasse. A porta abriu apenas o suficiente para que uma cabecinha ruiva surgisse:
- Bom dia. - Ron cumprimentou.
- Boa noite. - Harry retribuiu o cumprimento torto.
- Oh, sim. Verdade... Já é noite... - ponderou - O tempo passa rápido, não?
Harry ia responder alguma coisa, mas teve que se calar quando viu o Malkavian ser empurrado pra dentro do quarto, sem deixar de se agarrar ao batente da porta como se sua vida dependesse disso.
- Não fique no caminho, Ron. - Hermione falou mal humorada, fazendo o garoto retribuir com uma careta.
- Como vai, Hermione? - Harry cumprimentou a Caitiff.
- Bem. Vimos aqui te avisar que não teremos aula hoje. A Srta. Mcgonagall não está na cidade.
- Isso é ótimo. - Harry respondeu, sinceramente aliviado - Já que não vamos passar o resto da noite repetindo os mesmos exercícios chatos, o que pensam em fazer?
- Eu pretendo estudar um pouco na biblioteca do castelo. - Hermione respondeu, parecendo estar empolgada com a idéia. E o Ron acabou de ser chamado pelo mestre dele pra voltar pra casa.
- Eu não quero ir... - Ron resmungou e logo depois abaixou o tom de voz como se estivesse contando um grande segredo - Não gosto de lá, são todos loucos.
Harry não tinha dúvida alguma a esse respeito.
- Você tem que ir. - Hermione insistiu - Já é o terceiro chamado seguido que você ignora. Se continuar assim, seu mestre Arthur ficará furioso com você.
Ron não parecia estar prestando atenção. Para azar de Hermione seus olhos tinham encontrado uma mosca e desde então Ron dedicava toda a força de seu ser a acompanhar o vôo do inseto de um lado pro outro do quarto. Harry matou o bicho antes que sua amiga matasse o ruivo.
- E você, Harry? - Hermione intensificou um pouco o tom do seu nome, com a intenção de deixar bem claro que não se interessava mais por Ron - O que pretende fazer?
- Não sei ainda... - desconversou - Ler um pouco, talvez?
- Se quiser, eu tenho algumas ótimas sugestões. - Mione falou, empolgada - Eu li um na semana passada que...
- Não precisa, eu já estou no meio de um, obrigado. - Harry cortou a empolgação da moça sem piedade.
- Sendo assim... - Hermione respondeu, tentando esconder uma ponta de insatisfação - Eu vou indo. E acho melhor você ir também, Ron, ou o Sol vai te pegar no meio do caminho.
- Cuidado pra não ser devorada pela traça mutante. - Ron gritou mal humorado quando Hermione já tinha virado para o corredor.
Voldemort olhou para o Lasombra que se inclinava diante de si numa reverência e então perguntou:
- Espero que você tenha alguma notícia para me dar, Severus.
- Naturalmente, senhor. - O vampiro respondeu prontamente e preferiu ir direto ao assunto, ao adivinhar um ligeiro traço de impaciência no rosto inumano do Arcebispo - Localizei Sirius Black.
O rosto frio foi imediatamente tomado por uma expressão de deleite.
- Onde? E por que não o recapturou?
- Quanto a isso... receio que haja um complicador...
- Que espécie de complicador? - os olhos do Tzimisce se estreitaram.
- No momento Sirius Black está cercado de lupinos por todos os lados.
- Não me diga que ele está... - Voldemort perguntou, evidentemente contrariado.
- Exatamente... - Snape confirmou suas suspeitas, adivinhando facilmente a que ele se referia.
- Aquele desgraçado... Outra vez se metendo onde não deve... - Voldemort resmungou. - Bem, não importa. Potter está ou não com ele?
- Infelizmente não.
- Então deixe aquele cachorro vira-lata em paz por enquanto. Não podemos nos aproximar por agora, mas você cuidará dele no momento adequado.
- Sim, senhor.
- Muito bem. Você fez um bom trabalho. Entre em contato comigo assim que souber notícias da minha cria.
Snape repetiu a reverência que havia feito ao entrar e se retirou calmamente do salão.
Harry não podia contar pros seus novos amigos o que realmente desejava fazer com o seu tempo livre, afinal de contas, Dumbledore havia sido incisivo o bastante ao recomendar que não deixasse os muros de seu castelo. E por mais que apreciasse a companhia daqueles dois, ainda não estava totalmente convencido de que eles não tinham se aproximado de si com a intenção de acompanhar suas ações mais de perto.
Não que ele tivesse a intenção de fazer nada errado. Só não agüentava mais ficar encarcerado no belo castelo de Hogwarts, onde Dumbledore vivia e gostava de reunir a casta vampírica de sua cidade. Tanto que às vezes sentia como se tivesse simplesmente trocado uma prisão por outra. Tudo que queria era caminhar um pouco pela cidade, ver pessoas vivas e beber sangue do modo clássico, sem a taça de cristal.
Sorrateiramente, desceu pelas escadarias laterais do castelo, a procura de uma saída mais discreta que o permitisse escapar dali. Não demorou muito para encontrar o que procurava. Como todo castelo antigo, aquele parecia estar cheio de saídas secretas e Harry, acostumado como era com o velho castelo de seu mestre, sabia bem onde poderia encontrá-las.
Agilmente, abriu a porta que o separava do mundo real e deu alguns passos em direção a liberdade, sendo abraçado pelo frio e a escuridão da noite. Sorriu, o frio na barriga que sentira desde que tomara a decisão de desobedecer às ordens de Dumbledore dera lugar a uma imensa satisfação.
Harry deu mais alguns passos em direção à rua e já ia começar a correr quando uma voz arrogante se fez ouviu bem às suas costas:
- Onde pensa que vai, seu maldito Sabá?
Continua...
(1) Máscara - É a principal lei da Camarilla. Manter a Máscara é esconder dos humanos a existência dos vampiros no mundo. Quebrar a Máscara só é permitido em situações de extremo perigo, como por exemplo, um ataque Sabá.
(2) Ordem de Hermes - Assim como os vampiros se dividem em clãs, os Magos seguem tradições. A Ordem de Hermes é uma das mais antigas e ricas tradições, formadas por Magos extremamente dedicados aos estudos e experimentos mágikos, baseados na Matemática, na Lógica e na Ciência em geral.
(3) Carniçais - São os escravos humanos dos vampiros.
(4) Diablerie - É o crime mais monstruoso que pode ser cometido entre os vampiros. Consiste em sugar o sangue de um vampiro até drenar e incorporar sua alma. A Camarilla pune com a morte o criminoso mesmo quando ele pratica Diablerie contra um vampiro do Sabá. Por outro lado, se o vampiro "diableriezado" tiver geração mais baixa, o diabolista passa a ter a geração desse vampiro. Em suma, vampiros fazem isso pra ganhar poder.
