Capítulo 04 – Clube da Luta.
Os idosos e os desocupados que estavam sentados nos bancos daquela praça mal podiam imaginar qual era a real natureza dos animais que alimentavam. Os pombos, com o seu andar engraçado, fingiam interesse nas migalhas de pão enquanto aguardavam ordens externas. Um deles se destacou do bando e voou alto sobre a cidade. Ninguém deu importância a ele, afinal era só um entre tantos. A ave foi pra bem longe, pousando na janela aberta de um armazém. Dividindo espaço com algumas estantes com caixas de produtos, um número considerável de pessoas abria espaço para dois guerreiros brigarem. Os lutadores e os espectadores, na sua maioria, não davam para ser considerados humanos. A ave também não.
Os olhos do pássaro eram, na verdade, lentes de câmeras. Equipados com zoom, filmadora e transmissão via rede. Seu corpo, que imitava carne e penas, era inteiramente sintético. Naquele instante, alguns bons quilômetros dali, o controlador daquela máquina discreta acompanhava o seu desempenho através de telas de computador. - Encontrei a localização do clube ilegal de lutas. Vou passá-la para os seus celulares. - Disse Gael.
- Monstros brigando com monstros? - Perguntou Bruno em uma van da Polícia Dark. Ele estava na companhia de sua equipe da missão, bem longe da localização de Gael. - Por mim deixava eles se acabarem.
- Não é tão simples assim. - Respondeu Gael. - Eles sequestram e forçam humanos a participar das lutas também.
A porrada comia solta enquanto a equipe de Bruno não chegava ao local. Naquele instante uma nova disputa se iniciava. Em um lado da arena improvisada havia um homem que mudava de forma para algo similar a um minotauro. O nome de sua raça era taureus-armenta. Seu rival era um jovem humano viciado em acadêmia. Seu corpo bem trabalhado estava sendo usado como hospedeiro para uma criatura sem forma definida, um gás sapiente.
O jovem possuído não sentia dor, por isso ele golpeava o rosto do taureus sem ter dó das próprias mãos ensanguentadas. Mesmo com a determinação do seu rival, o homem touro conseguiu resistir aos seus golpes. A luta foi encerrada com uma chifrada do monstro no estômago do rapaz. Percebendo que seu hospedeiro morreria, o gás inteligente o descartou, saindo pela boca. Assim que o jovem que foi usado recobrou a consciência, um carniçal mordeu o seu ombro, causando-lhe muita dor. O cheiro de sangue e carne fresca fez com que os monstros carnívoros se aproximassem pra disputar por um pedaço do que se tornou a nova iguaria.
A van estacionou o mais perto possível do armazém para não chamar a atenção. Bruno tentava se preparar mentalmente, mas não conseguia se desligar do fato de que os seus companheiros de missão eram os piores possíveis. Não Bento, que era até solicito em excesso. O problema era o casal que Bruno considerava esquisitão (até para os padrões da agência). Um se autointitulava de Meia Noite. Vestido dos pés a cabeça com uma roupa de couro e kevlar preta. Não havia um centímetro de sua pele que era exposta. Só o diretor sabia qual era a sua real aparência e, por algum motivo, não a revelava a ninguém.
A agente Condessa entraria na lista de mulheres mais belas que Bruno já tinha visto na vida com facilidade. O encanto, porém, sumiu quando ele percebeu que ela não envelhecia e que, por mais que se ferisse, nunca ficava machucada por muito tempo. Quando se luta contra entidades sobrenaturais por muito tempo, a pessoa ganha certas desconfianças. - Ela deve ser uma tentadora ou uma succubus. - Pensou Bruno.
- Lembrem-se da missão. - Disse Gael através dos comunicadores auriculares. - Entrem, salvem o maior número de vítimas possível e saiam. Não precisamos de lutas desnecessárias. - O quarteto respondeu um sonoro "afirmativo" quase que em uníssono.
O quarteto foi se esgueirando até o armazém. A princípio nada parecia errado. Mas, de repente, se fez ouvir passos largos e rosnados. - Como a gente caiu num erro tão óbvio? - Perguntou Bruno. Havia um segurança rondando o perímetro do clube da luta. Um inumano. O monstro tinha a aparência de um lobo feroz e o tamanho de um cavalo. Sem esperar ouvir nenhuma ordem, Bento olhou fixamente para o colosso e disparou uma de suas rajadas lasers do seu olho protético. A criatura recuou, mas não foi derrotada.
Como segundo alvo, o lobo gigante escolheu Bruno. Por algum motivo a fera acreditou que ele seria o mais fácil de ser eliminado. A bocarra do animal quase se fechou na cabeça do agente, mas ele conseguiu segurar a mandíbula aberta da criatura. Meia Noite providenciou um golpe de ombro na barriga do lobo e isso fez com que ele recuasse novamente.
- Meninos sempre preferem brincar em vez de serem práticos. - A perícia de Condessa era o uso de armas brancas. Para a missão ela trouxe consigo uma espada modificada. A empunhadura era europeia, comum na prática de esgrima. A lâmina foi baseada no estilo das espadas sarracenas. A guerreira imortal correu para pegar impulso e deslizou na grama pra debaixo do animal. Quando chegou na medida certa, Condessa estripou a fera, dando fim àquela luta. A guerreira, sem querer, acabou se banhando no sangue do lobo. Ser coberta de sangue não a chateou, pelo contrário, a fez lembrar de um passado feliz.
- Se esse warg não tivesse tentado nos matar, eu até que poderia sentir pena dele. - Confessou Meia Noite.
O quarteto se aproximou do armazém e, através de uma janela alta, conseguiram verificar o perímetro. Haviam pelo menos quinze reféns humanos. A quantidade de monstros ali presente ultrapassava a casa da centena. Para a sorte dos agentes a barulheira das disputas e o odor de tanta criatura reunida fez com que eles não fossem detectados pelos monstros de melhor faro e audição. - Tem muito bicho aqui. - Falou Bento a Gael pelo comunicador. - Não tem como a gente entrar sem ser percebido.
- O que vocês precisam é de uma distração. - Falou Gael. - Aguardem o sinal.
- Que sinal? - Perguntou Condessa.
- Vocês perceberão. - Poucos minutos depois, um gralhar ensurdecedor se fez presente. Em seguida, uma revoada de pombos apareceu agindo de maneira antinatural. Coordenados, eles invadiram o armazém e, como se fossem abelhas enfurecidas, atacaram os monstros competidores. Muitos monstros fortes e capazes conheceram seu fim quando alguns pombos teleguiados invadiram orifícios como boca, olhos e nariz.
- É a nossa deixa! - Disse Bruno sem precisão. Todos já tinham entendido o que era para ser feito. Aproveitando que as criaturas estavam ocupadas, os quatro libertaram os prisioneiros de suas correntes (as rajadas ópticas de Bento vieram a calhar nesse momento). A van tecnicamente não suportaria tanta gente assim. Mas, em tempo de desespero, todos seriam levados dali nem que fossem entulhados.
Só quando todos os agentes e todas as vítimas se acomodaram na van, foi que Bruno decidiu entrar. Seu pé direito já estava dentro do veículo quando alguma coisa que ele não soube o que era se enrolou em seu pescoço e o puxou para trás. - A missão é o que mais importa! Vão! - Disse Bruno com dificuldade, rouco de engasgo. Meia Noite, que estava na direção da van, atendeu ao pedido do líder da missão e pisou fundo no acelerador. Sobre protesto de Bento, mas com a concordância de Condessa.
O que puxava Bruno para trás era a língua de um humanoide com características anfíbias. Não demorou muito para o agente se desvencilhar e puxar a língua para o seu sentido. Ao vencer o "cabo de guerra", ele fez com que o monstro sapo ficasse perto dele. Um soco violento na cara resolveu a questão. Pareceu que a criatura havia sido atingida por um muro de concreto. Logo ela teve afundamento craniano e morreu.
Um grupo de monstros sobreviventes se reuniu onde Bruno eliminou o homem sapo. Mesmo estando sozinho contra tantos, o agente não titubeou, e preparou sua base pugilista. - Um humano aprimorado. - Disse o taureus que se destacou da multidão. - Sempre quis testar minha força contra um policial Dark. - Não importa quantas melhorias seu corpo possa ter, você ainda é apenas um humano. - O homem touro tentou acertar o rosto de Bruno três vezes com seus pesados socos, mas o agente desviou. Sem paciência, o taureus resolveu finalizar a disputa com uma das suas chifradas. Para o seu desespero, o golpe foi frustrado, Bruno pegou o monstro pelos chifres e colocou tanta pressão neles que eles foram arrancados.
O monstro touro não teve muito tempo para ficar desesperado, dando um fim a sua agonia, Bruno enfiou as pontas dos chifres nas têmporas da criatura. Uma bestialidade havia sido derrotada, o agente então passou a se preocupar com as outras. Talvez eles haviam chegado a conclusão de que a batalha não valia mais a pena ou a cena da morte do líder deles os desencorajou. O fato é que os monstros restantes ignoraram Bruno e simplesmente foram embora. Sem querer mais confusão, o agente deixou por isso mesmo.
XXX Doze anos atrás XXX
Bruno havia recebido um presente dos seus pais e amigos, mas, sem saber, eles cometeram um erro quase fatal. Aproveitando um descuido do seu cuidador, o rapaz guiou sua cadeira de rodas rumo à piscina. Não era a mais pacifica das mortes, mas Bruno acreditava que ela seria um preço baixo a pagar para se livrar de sua deficiência. Sem pensar duas vezes, o cuidador se atirou na água e puxou Bruno para fora. Aquela noite foi de vergonha para o jovem. Ele não esperava que pudesse provocar tanta dor nos seus familiares. Sua mãe praticamente passou a madrugada aos prantos.
A paralisia de Bruno o acometeu em uma festa, alguns anos antes dessa tentativa de se afogar. O praticante de jiu-jitsu teve a impressão de que um homem estava flertando com sua namorada. Mesmo sem ter certeza, Bruno agrediu o homem inconveniente. O que ele não havia percebido é que o outro estava armado. Os fatos que se seguiram depois dos disparos, não ficaram claros na mente de Bruno. O mais impactante foi a noite em que ele percebeu que não conseguia se mover da cintura para baixo. Essa também foi a última noite que ele viu sua namorada.
- Eu conheço um pessoal que pode consertar sua coluna. - Disse o cuidador a Bruno em segredo. - Mas eles cobram um preço alto.
- Está de brincadeira comigo?! Eu pago o preço que for! Vendo meu carro, meus imóveis… O que for preciso!
- Essa gente não está atrás de dinheiro. Se quiser aceitar, tenha em mente que não vai poder voltar atrás. Do contrário eles são capazes de tomarem sua coluna nova de volta. - Bruno ficou um pouco temeroso, aquela conversa mais parecia papo de mafioso. Porém, mesmo assim, Bruno estava disposto a arriscar. No dia seguinte o cuidador trouxe um contrato que foi logo assinado pelo rapaz.
O lugar parecia um castelo medieval. Na portaria, quem os recebeu, disse que ali era a sede da Polícia Dark. O cuidador particular entregou Bruno nas mãos de um funcionário da instituição e foi embora. O jovem ficou desconfortável por estar sob responsabilidade de estranhos, mas não reclamou. Ele não criou caso nem quando, em uma parte do subsolo da construção, o colocaram no que parecia ser uma banheira metálica.
- Você tem um propósito que o motiva a fazer parte disso tudo aqui? - O laboratório encheu de profissionais de saúde rapidamente. Uma das enfermeiras, que parecia ser adolescente, foi a única pessoa que se preocupou em tratar Bruno como gente. - Se apegue a ele, vai precisar quando a dor começar.
Alguém ligou um botão e já era tarde demais para Bruno ir embora. Seus ossos foram preenchidos por um metal duro e maleável em pouco tempo. A pele natural substituída por polímeros sintéticos. Ao fim do processo, Bruno já era mais ciborgue do que homem.
XXX Bestiário XXX
*Pombos: criados para passarem despercebidos pelo cidadão comum, os pombos são máquinas desenvolvidas para infiltração e espionagem pela CIA nos anos da Guerra Fria. Histórias de pombos correios sendo usados na idade média são falaciosas. Não passam de uma tática usada pelas empresas de investigação para reforçar a ideia de que essas "aves" são inofensivas.
*Taureus-armenta: apesar de similar a um minotauro, eles têm uma diferença crucial. Podem transitar entre uma forma humana e uma com características bovinas. Sua metamorfose é similar a relação entre lobo e homem de um lobisomem. Possuem um intelecto próximo ao humano e, quando transformados, adquirem grande força. Tem tendência a serem corajosos, por isso é comum vê-los em profissões de perigo como as de segurança ou as militares.
*Gás sapiente: originários de áreas vulcânicas de altíssima temperatura, essas criaturas gasosas conseguiram desenvolver consciência através de um longo processo de evolução. Certa vez um membro dessa espécie descobriu que era possível possuir animais e, por causa disso, surgiu entre eles um elevado desejo de parasitar os outros seres, principalmente os humanos.
*Warg: assim como os lobos que se tornaram dóceis e menores quando foram domesticados e se tornaram cachorros, os wargs são lobisomens escravizados que perderam seu raciocínio e força. Presos em sua forma lupina, não são influenciados pela lua e se tornaram imunes à prata.
