Rosas no Inverno

Parte II


Os dias podem ser longos e as noites passarem rápido demais... Especialmente quando tudo o que se tem são intermináveis dias solitários e noites com a única companhia que você já desejou ter.

Desejar a solidão, o isolamento, é algo tão... Estranho. A época em que busquei por essa única coisa, de maneira quase obsessiva, parece tão distante e fugaz que não parece ter acontecido realmente comigo.

Não tenho mais a preocupação de contar os dias. Agora, são apenas uma sucessão de ações que não mudarão meu estado. Tudo o que consigo pensar, ou desejar, é a presença daquela garota estranha, que vez ou outra ainda canta aquela música irritante e mais estranha ainda.

Tudo o que consigo desejar é ter uma chance de fazer da minha vida algo diferente, embora não faça idéia de como mudar. Talvez o que me falte seja apenas coragem...

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- Ayumu?

- Se for perguntar se pode cantar a resposta é não. – O rapaz encostou-se a janela. – Não estou TÃO entediado.

- Não vou perguntar. – ' Se quiser cantar não vou pedir, é claro' Completou em pensamento. – Eu só queria saber como isso aconteceu.

- Você entrou aqui cantarolando aquela maldita música, e eu disse que se continuasse iria—

- Não isso! – Hiyono suspirou exasperada e cruzou os braços recostando-se na cadeira. – Eu quis dizer isso! Você fazendo 'Bu' pelo hospital.

- Eu não 'Bu' pelo hospital. Não posso sair do quarto, como poderia fazer—

- Ayumu! – A garota levantou – Você deveria estar ali. – Apontou para o corpo na cama. – E não está. Como isso aconteceu?

- Eu não sei. – O rapaz deu de ombros. – Apenas acordei com a maior dor de cabeça que consigo lembrar de sentir, levantei da cama e lá estava o médico tentando... – Deu de ombros, sentindo a voz desaparecer. – Apenas aconteceu.

- Lembra de alguma coisa antes de acordar aqui?

- Não.

- Sabe como veio parar aqui?

- Ouvi Madoka dizer que foi um acidente de carro. – O rapaz sorriu. – Não acha que tive sorte? Poderia ser pior...

- Claro, sorte.. – Hiyono girou os olhos, voltando a sentar. – está em coma por dois meses.

- Poderia ser pior!

- Você tem que lembrar de algo! – Ela enfatizou. – Não pode ficar para sempre vegetando enquanto me faz perder noites de sono aqui.

- Se acha tão ruim passar seu tempo comigo porque não—

- Estou aqui há quase um mês, Ayumu, não acha que eu teria voltado para minha vida normal se você não fosse importante para mim?

- Você é uma idiota! – O rapaz falou depois de alguns minutos em silencio. – Não me conhece, nunca me viu antes que isso acontecesse e diz que sou importante?

- Perdoe-me por não falar com todo fantasma que habita esse lugar! – Hiyono ergueu-se novamente, pegando a mala que estava a seus pés. – Se quer tanto ficar sozinho como um ermitão – colocou a alça no ombro e caminhou para a porta. - Eu só queria que você ficasse bom porque assim—

- Poderia me abandonar. – Ayumu falou calmamente, sem perceber que a garota parara no meio do caminho para a porta. – Não muito diferente do que está fazendo agora, devo dizer.

- Ayumu... – Hiyono começou sem se virar – Onde estão seus amigos?

- Não tenho amigos.

- Você deve ter amigos no lugar em que trabalha.

- Trabalho em casa.

- O que exatamente você faz? – A garota tirou a mala do ombro e a depositou na mesa perto da porta.

- Escrevo.

- Jornalista?

- Escritor. – O rapaz suspirou. – Você não estava partindo?

- O que você escreve? – A garota perguntou, ignorando-o.

- Romances policiais?

- Existe romance em suas histórias?

- Por que deveria ter?

Hiyono suspirou, aproximando-se da cama novamente.

- Família?

- Por que eu deveria falar da família dos personagens?

- Você tem família? – Ela reformulou a pergunta pacientemente. Podia ver pela maneira que ele se movia que estava desconfortável com o questionário.

- Apenas Madoka.

- Ela não parece com você.

- Porque não temos o mesmo sangue. – Ayumu falou entre dentes. – Ela é... Era casada com meu irmão. – Observou-a abrir a boca e completou – Ele desapareceu há dois anos.

- Namorada?

- Não. – O rapaz afastou-se da cama.

- Namorado?

- É claro que não! – O rapaz explodiu. – Existe alguma razão para esse monte de perguntas ou está apenas tentando me torturar?

- Apenas curiosidade. – Hiyono puxou a cadeira para perto da cama e sentou-se lentamente. – Só queria saber a razão de ninguém vir visitá-lo.

- Não existe ninguém na minha vida. – A voz soou irritada, atraindo a atenção da garota. – Não existem amigos, família ou namorada.

- Por quê?

- Porque eu não quero. – Ele deu de ombros. – Pessoas não são confiáveis, dizem que sempre ficarão a seu lado e quando não consegue viver sem elas, te abandonam!

- Dói, não é mesmo? – Hiyono recostou-se na cadeira fechando os olhos. – Dói quando você não pode contar com ninguém.

- Muito mais do que você pode imaginar.

- Eu sabia que essa dor era sua.

- O que? – Ayumu virou-se, arregalando os olhos ao sentir a garota abraçá-lo com força, afundando o rosto em seu peito. – Hiyono...

- Meu peito dói e eu não consigo respirar... – Ela murmurou, a voz abafada – Sempre que me aproximo de você é como se toda a luz parasse de existir, e tudo o que posso pensar é que não posso partir... – Um soluço abafado escapou dos lábios dela e ele a abraçou mesmo sem notar - Eu não posso abandonar você também.

- Você deveria se afastar se minha presença te faz tão mal.

- Eu não posso... – Hiyono o abraçou mais forte, aquecendo-o – Porque se eu fizesse isso seria apenas mais uma pessoa a sair da sua vida quando você precisa... Eu não quero ser apenas mais uma.

- Hiyono, você tem que me abandonar. – Ayumu fechou os olhos, desejando ter forças para afastá-la de si. – Não percebe que não sei como voltar? Como acordar? – Sentiu os braços delicados abraça-lo com mais força. – Quanto tempo acha que isso vai durar? Quanto tempo até que comecem a pensar que devem desligar os aparelhos?

- Pare! Não fale isso!

- Sabe que é verdade.

- Eu não vou deixar! – Hiyono apoiou as mãos no peito dele, tentando se afastar.

- E vai dizer o que? – O rapaz sorriu. – Que não podem fazer isso porque sabe que estou vendo tudo?

- Você tem que voltar.

- Hiyono... Eu não sei como.

- Você tem que voltar ou será como as pessoas que o abandonaram.

Ayumu piscou, sentindo o corpo dela desaparecer de seus braços. Fechou os olhos, deixando os braços caírem ao lado do corpo, experimentando aquela aura gelada envolve-lo novamente.

- Vou para casa. – A garota levantou-se lentamente e pegou a bolsa que deixara sobre a mesa.

- Boa noite.

Ayumu continuou com os olhos fechados, ouvindo apenas os sons de passos, o leve ranger da porta abrindo e fechando, e finalmente... Os leves passos se afastando. 'Você não entende, Hiyono...' Sentou-se novamente no batente da janela, os olhos fixos no pátio onde sabia que ela passaria em poucos minutos. 'Eu não quero ser como os outros... Especialmente para você'

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Hiyono suspirou, enrolando-se na manta com mais força. Afastar-se do hospital não havia feito com que se sentisse melhor. Por que ele tinha que parecer tão gentil quando pedia para que se afastasse?

- Por que ele pensa em morrer ao invés de se concentrar em acordar? - Suspirou, deitando-se enrolada na manta no pequeno sofá. Como ele podia forçar a entrada em sua vida e depois pedir para que se afastasse? Como ele podia fugir como se... – Fugir...

'Não existe ninguém na minha vida. Não existe família, amigos ou namorada!'

- Ele está fugindo...

' Pessoas não são confiáveis, dizem que sempre ficarão a seu lado e no momento que não consegue mais viver sem elas te abandonam!'

- Maldito egoísta. – Ela abraçou uma das almofadas, afundando o rosto no tecido macio. – É você quem está me abandonado agora.

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Ayumu passou o dia em silencio, sentado no mesmo lugar à janela em que estivera na noite anterior quando a garota deixara o hospital. Estava cansado demais para fazer qualquer coisa que não fosse permanecer ali, observando o vai e vem de pessoas na rua.

Vira Hiyono chegar assim que sol nascera e desejara que ela aparecesse ali nem que fosse para torturá-lo com aquela música idiota, mas ela não viera.

Passou a tarde inteira tentando se convencer de que isso era o melhor, mas uma parte irritante continuava dizendo que ele estava apenas fugindo de seus problemas... Assim como fizera durante toda a vida.

'Evitar que as pessoas se aproximem para não sofrer quando se afastam... Sim, me tornei especialista nisso' Suspirou, observando o sol se pôr. O céu lentamente tingindo-se de vermelho e escurecendo aos poucos. As coisas eram tão mais fáceis quando as pessoas o encaravam com desprezo e não com olhos cheios de lágrimas. 'É muito mais fácil quando elas não dizem que você as está abandonando.'

- Sabe... – Ayumu virou rapidamente, quase caindo de seu acento na janela ao ouvir a voz feminina. – Se alguém pudesse vê-lo, estaria cheio de policiais aqui tentando impedir o suicida de pular.

- Se outra pessoa pudesse me ver eu não estaria aqui.

- Já tentou sair?

- Não, apenas fico aqui, contando as aranhas passeando no teto enquanto espero por você.

- Tem aranhas aqui? – A garota perguntou dando um passo para trás e abraçando a mala contra o corpo como se fosse um escudo.

- Não... – O rapaz girou os olhos. – Meu sarcasmo é totalmente desperdiçado quando você se preocupa com mentiras tolas.

- Eu detesto aranhas!

- Não tem aranhas aqui! –Ayumu explodiu. – Inferno, garota, estamos em um hospital, não em uma casa assombrada.

- Pare de gritar comigo ou vou embora. – Hiyono relaxou os ombros e se aproximou da cama, colocando a cadeira perto da mesma.

- Por que voltou?

- Preciso terminar de ler o livro para você.

- Não quero saber o que acontece com Ceres e Tooya.

- Eu quero. – Ela disse calmamente, abrindo o livro e procurando o local em que tinha parado a leitura.

- Faça isso na sua casa.

- Não é tão divertido quando você não está fazendo caretas a cada cena romântica. – Hiyono disfarçou um sorriso, ajeitando-se na cadeira. – Achei.

- Você veio aqui para me torturar?

- Ceres olhou para o lugar vazio na cama a seu lado, Tooya havia partido enquanto estava dormindo, deixando-a--

- Por que a cama está vazia? – Ayumu a interrompeu. – Espera aí, você pulou uma parte! Eles tinham saído para jantar!

- Não importa para o contexto da história. – Hiyono protestou, escondendo o rosto atrás do livro. – Deixando-a sozinha novamente e—

- O que aconteceu na parte que 'não importa para o contexto da história'?

- Eles... Jogaram volley até desmaiarem de cansaço?

- Você podia ao menos inventar algo melhor... – Ayumu girou os olhos. – Está corando?

- Quero terminar o livro, Ayumu!

- Por favor, está com vergonha? – Ele sorriu. – Não é uma enfermeira?

- Disse bem, enfermeira. Não atendente de tele-sexo.

- Oh, então houve sexo.

- Ayumu! – A garota fechou o livro, fitando-o irritada. – Quer parar com os comentários constrangedores?

- É irresistível quando você cora por uma simples cena de—

- Chega, vou embora! – Hiyono levantou, abraçando livro contra o peito.

- Você já leu esse livro, não leu? – O rapaz perguntou divertido. – Sabia exatamente onde estava a cena que deveria pular.

- Você deveria estar fazendo caretas para as cenas e não realmente prestando atenção ao que acontece!

- Você já leu o livro, não leu? – Ele repetiu a pergunta.

- Sim, eu já li a droga do livro!

- E por que disse que queria saber o final?

- Eu queria ficar aqui com você e precisava de uma desculpa para não ter que ouvir o sermão 'Vá embora antes que eu morra'.

- Hiyono...

- Não importa. – Ela o interrompeu. – Não importa quanto tempo temos ou se você está acordado... Droga, Ayumu, eu só quero ficar com você enquanto for possível!

- Hiyono... – Ele começou lentamente, esperando que ela o interrompesse novamente, mas isso não aconteceu. – Eu não quero que fique triste quando eu partir.

- Você não precisa partir! – As palavras soaram estranguladas e ele se calou, observando-a jogar o livro contra a parede. – Não precisa fugir ou se esconder, pode apenas voltar para sua droga de corpo, acordar e ficar com—

- Com você?

- Com quem quer que seja.

- Não tenho motivos para voltar. Hiyono. – Ayumu sorriu tristemente – Eu já lhe disse que não há ninguém esperando por mim.

- Eu não conto para você?

- Hiyono...

- Sou tão insignificante que está ansioso por morrer apenas para se livrar da minha presença?

- Pare com isso, sabe que não posso escolher.

- Sim, você pode. – A garota respirou fundo, contendo as lágrimas. – Só é covarde demais para encarar a vida que você mesmo escolheu, então fica inventando essas malditas desculpas que ninguém sentirá sua falta.

- Não pensei que uma garota tola como você fosse capaz de praguejar.

- Eu... Estou cansada.

- Tudo o que quero é que se afaste antes que tudo que reste seja você chorando por algo que não existe.

- Tarde demais para isso, Ayumu. – A garota abriu a porta rapidamente. – Mas você não precisa se preocupar, não vai ver minhas lágrimas.

A porta bateu com força o suficiente para chamar a atenção das pessoas próximas. Ayumu piscou, surpreso ao sentir o peito apertado com o som abafado dos soluços da garota.

'Sim, acho que agora é tarde demais.'

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Ayumu estava sentado no canto do quarto, as costas apoiadas na parede, os olhos perdidos na penumbra. Estava se sentindo esquisito desde a ultima vez que conversara com a garota estranha. Não, isso tinha começado antes... Talvez no momento em que a vira tocar seu corpo na cama, cuidar dele como se fosse importante... Ou quando sentira seu toque pela primeira... Talvez antes, quando voltara naquele quarto depois de ter visto... Aquela coisa que se tornara.

Fitou a garota adormecida na cadeira. Sim, ela ainda voltava a cada noite. Entrava no quarto escuro, sentava na cadeira ao lado da cama sem lhe dirigir sequer um olhar. Tocava o rosto adormecido na cama, os olhos sem aquele brilho usual.

Dor, ela estava perdida naquilo que ele passara toda a vida fugindo. 'Não tenho sua força.' Gostaria de poder se aproximar e abraçá-la, consolá-la... Dizer que tudo acabaria bem... 'Dor, como pode enfrentar toda essa dor por uma batalha perdida?'

Fechou os olhos, cansado demais para fazer qualquer outra coisa além de ficar ali parado. Era quase doloroso poder vê-la, ouvi-la e não tocá-la a cada minuto. Patético. Era isso que chamavam de amor? Estar apaixonado? Preferia a vida estéril que levava antes do acidente... Mas não se achava mais capaz de viver sem aquele sentimento cálido. 'Estou tentando enganar a mim mesmo novamente.' Mentira. Estava mentindo para si mesmo novamente.

'Pare de fugir', essas eram as palavras implícitas naquela ultima conversa com Hiyono. 'Não é tão fácil mudar o hábito de uma vida inteira...' Apoiou os braços sobre os joelhos dobrados, encostando a testa sobre eles. Por que ela não conseguia entender?

'Não sou tão corajoso para arriscar, Hiyono... Tentar voltar é incerto. Eu posso morrer. Eu posso esquecer de você, de tudo que passamos juntos... Eu posso voltar apenas perceber que nada disso é real... Para perceber que tudo que tenho é aquela fria e solitária existência.' Apertou os olhos com força. Poucas lembranças frágeis, sonhos... 'Eu posso voltar e perder você'.

Ayumu ergueu a cabeça, sentindo o corpo quente a seu lado. Fitou a garota em silencio, sentindo o peito apertar com aquela fagulha de esperança que ainda havia nos olhos castanhos.

- Estou com frio. – Ela falou simplesmente, aconchegando-se nele.

- Eu também. – As palavras saíram naturalmente, assim como seu braço a enlaçou sem que percebesse, puxando-a lentamente para seu colo. – É sempre frio quando você não está comigo.

- Estou com medo, Ayumu. – A garota murmurou, abraçando-o com força. – Por que... – Parou de falar ao senti-lo pousar a mão em seu rosto.

- Não vamos falar disso agora.

- Viver apenas o agora?

- Sim... – Ele deslizou os dedos pelas mechas castanhas, um pequeno sorriso no rosto. – Se você agüentar isso.

Hiyono concordou com um aceno antes de esconder o rosto em seu pescoço. O rapaz a abraçou mais forte, fechando os olhos com força. 'Como pode um sonho parecer tão real?'

- Eu nunca vou esquecer você.

- Você não sabe mesmo ficar calada, não é? – Ayumu sorriu quando ela ergueu a cabeça, o cenho levemente franzido naquela expressão irritada que ele achava tão adorável.

- Não posso ficar calada quando você está sendo tão gentil comigo.

- Se eu for grosseiro você fica quieta?

- É claro que não!

- Droga.

- Ora seu... Seu... – Hiyono bufou quando ele riu. – Se quer que eu fique calada vai ter que ser mais criativo, seus truques não funcionam mais... – Ela parou de falar quando os lábios dele tocaram os seus, frios e cautelosos a principio, era quase como se ele tivesse medo de que ela se afastasse ou desaparecesse.

Ayumu a abraçou com mais força ao senti-la retribuir o beijo. Os braços delicados envolvendo seu pescoço, o toque cálido dos lábios. Era quase como estar vivo novamente... Não, era como estar vivo pela primeira vez. Ouviu a voz suave murmurando seu nome quando se separaram, os orbes castanhos transmitindo aquele sentimento cálido, aquecendo-o.

'Se ao menos fosse real...' Ayumu fechou os olhos, sentindo-a aninhar-se contra seu corpo.

- Ayumu...

- Agora não, Hiyono. – Murmurou, acariciando as costas dela suavemente. – Não me faça racionalizar tudo.

Hiyono concordou com um aceno, sentindo as mãos dele segurarem-na fortemente contra si. Era quase real demais, doloroso demais pensar que quando acordasse na manhã seguinte ele ainda estaria 'dormindo' naquele frio quarto de hospital. Fechou os olhos, ajeitando-se contra ele. 'Vou ficar com você enquanto puder...'

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- O que ela está fazendo aqui?

Hiyono piscou, acordando lentamente. Ergueu a cabeça, esfregando os olhos enquanto a voz zangada continuava fazendo perguntas.

- Responda, doutor, o que essa garota está fazendo aqui?

- Também gostaria de saber. – Kanone respondeu calmamente. – Hiyono?

- O senhor a conhece?

- É uma das enfermeiras que cuidam de seu irmão.

- Eu... – A garota pulou da cadeira, encarando o médico. – Sinto muito, eu...

- Adormeceu novamente enquanto lia para o paciente? – Ele ofereceu calmamente.

- Sim, mil perdões, doutor. – A garota abaixou-se depressa, pegando o livro caído ao lado da cama. – Senhora, eu—

- Está tudo bem, Hiyono. – Kanone falou antes que a mulher a seu lado tivesse a chance de abrir a boca. – Sayoko estava procurando por você.

- Obrigada, doutor. – Hiyono abraçou o livro com força, tentando esconder o rosto que sabia estar corado. – Eu vou... – Parou de falar, dando meia volta ao notar a expressão da mulher. - Sinto muito novamente. – Murmurou, sentindo a mão do médico em seu ombro, empurrando-a gentilmente para fora do quarto.

- Acho que você precisa de uma xícara de café. – O médico falou, o mesmo sorriso calmo nos lábios.

- Eu sinto tanto, senhor. – Hiyono murmurou ainda confusa. – Sei que não deveria ficar no hospital quando—

- Seria uma novidade se você tivesse obedecido. – Ele deu de ombros, guiando-a para o elevador. – Agora, se não se importa, também estou ansioso por aquela xícara de café.

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Ayumu observava em silencio a mulher parada ao lado da cama. Madoka era normalmente controlada e gentil com as pessoas, mesmo quando não gostava delas. Sempre imaginara que os anos na policia a haviam ensinado a manter o controle não importava a situação que estivesse... Fora assim quando seu irmão morrera. Fora assim nos meses de buscas infrutíferas... Fora assim quando finalmente o declararam... Balançou a cabeça afastando aquele pensamento.

Aquela Madoka parecia diferente. Triste, amargurada, quase ansiosa por despejar toda a culpa que sentia na primeira pessoa que encontrasse.

- Como pôde, Ayumu?

O rapaz franziu o cenho, sem conseguir entender a revolta da cunhada. Não era como se tivesse se envolvido em um acidente e acabado ali propositalmente. Madoka tinha se afastado, perdendo qualquer esperança de que ele fosse acordar... Deixando-o completamente sozinho. Ela acima de qualquer pessoa deveria entender o que era ser abandonada, então como podia tê-lo deixado ali e agora voltar para culpá-lo?

- Seu maldito egoísta. – Madoka murmurou entre dentes, fechando as mãos com força como se estivesse a ponto de agredi-lo.

- Estranho, eu poderia dizer o mesmo de você.

- Como pôde inserir aquela maldita clausula em segredo? – A mulher se aproximou da cama, desferindo um tapa no rosto do rapaz deitado na cama. – Como pôde desejar morrer tão facilmente?

- Não sei do que está falando.

- Sabe o que passei nesses últimos meses? – Madoka fechou os olhos, afastando a mão do rapaz deitado na cama - Desejando que acordasse e voltasse a ser o mesmo idiota recluso de sempre?

- Sim, imagino como deve ser difícil continuar vivendo, ignorando por completo minha existência.

- Apenas para saber por seu maldito advogado que incluiu aquela droga de clausula, dizendo que não deveria ser mantido vivo se algo assim acontecesse. – Madoka deu um passo para trás, escondendo o rosto nas mãos. – Por que alguém tão jovem faz um testamento?

- Parecia a coisa mais lógica a fazer. – Ayumu aproximou-se da cama, observando seu próprio rosto adormecido. Pálido, imóvel... Estranho como aquilo não parecia muito diferente de quando estava fora do hospital.

- Você disse que não me abandonaria, Ayumu.

- Lembro-me de ter ouvido a mesma promessa de você, irmã. – O rapaz sorriu sem humor. - E você a quebrou tão facilmente na primeira oportunidade...

- Passei a ultima semana tentando ignorar esse papel estúpido... Tentando me convencer que você tinha enlouquecido quando fez isso...

- Se eu soubesse que permanecer nesse estado mudaria meu modo de pensar, eu...

- Mas não posso. – Madoka completou, atraindo a atenção do rapaz. – Não posso mais ficar esperando que você acorde milagrosamente... – Respirou fundo, enxugando as lágrimas antes de continuar. – Se desejava tanto se livrar de todas as pessoas a sua volta, de sua vida inútil... Vou atender seu desejo.

- O que?

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- Obrigada pelo café, Doutor. – Hiyono sorriu, saindo do elevador.

- Tente não ser pega novamente.

A garota sorriu sem graça.

- Acha que a Senhora Narumi já partiu? – Hiyono lançou um olhar para a porta do quarto. – Preciso me trocar e deixei minha mala lá dentro.

- A que horas começa seu turno hoje?

- Em dez minutos. – A garota baixou os olhos para as próprias roupas. – Talvez Sayoko pudesse me emprestar...

- Bata na porta, e veja se ela foi embora. – O médico deu de ombros. – Ela não gosta de hospitais, talvez deva ser lembrada do fato.

- Não fale assim, Doutor! – Hiyono o repreendeu. – Eu acho bom que ela finalmente tenha vindo visitá-lo.

- Se você soubesse... – O rapaz sorriu, aproximando-se do balcão da recepção. – Você escolhe se quer pegar sua mala ou pedir um uniforme a Sayoko, tenho que fazer minha ronda.

Hiyono ficou parada em silencio, fitando a porta como se algo terrível a aguardasse lá dentro. Olhou em volta, tentando localizar a amiga e suspirou quando não a encontrou. 'Acho que não existe outra opção...'

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- Conversei com o médico... Espero que esteja feliz com sua escolha.

- Madoka... Escute! – Ayumu tentou se aproximar da mulher, ignorando o fato que ela não podia vê-lo ou ouvi-lo não importa o que fizesse.

- Se a sua covardia é tão grande, não vou impedi-lo. – A mulher colocou a bolsa no ombro, dando meia volta. – Os aparelhos serão desligados assim como você desejou.

A porta se abriu depois de leves batidas.

- Desculpe-me, senhora, eu não queria interromper, mas—

- Fique a vontade, terminei o que vim fazer aqui. – Madoka passou pela garota, sem olhar uma segunda vez para o rapaz na cama. – Adeus, Ayumu.

- Senhora... – Hiyono piscou confusa quando a mulher bateu a porta com força, ignorando-a. – Ayumu?

- Está atrasada para o seu turno.

- Eu... – A garota piscou, confusa com o tom ríspido. – Sinto muito, só preciso pegar minha mala.

Ayumu continuou em silencio, ignorando o olhar da garota. Fechou os olhos, deixando-se cair na cadeira no momento que ela deixou o quarto.

- E mais uma vez cometi um engano... – Deixou a cabeça cair para trás e encarou o teto branco como havia feito milhares de vezes. – Acho que nosso tempo acabou, Hiyono.

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Ayumu passara o dia observando as cores que o céu adquiria com o passar das horas, a maneira quase mágica com as construções eram tingidas de vários tons conforme o sol se movia no céu. Ironicamente, no dia que se sentia mais sufocado pela escuridão, a natureza escolhera para que nenhuma nuvem encobrisse o azul do céu.

Ignorou a entrada de Hiyono no quarto, mais falante e feliz do que nunca, provavelmente pensando que a visita da irmã o alegrara... E pensar que se ela tivesse entrado no quarto apenas alguns segundos antes pela manhã, descobriria a verdadeira razão da visita de Madoka.

- Dareka ga mahou no tsue wo futtano.

O rapaz fechou os olhos, ouvindo a voz melodiosa cantarolando a musiquinha alegremente. Apertou as mãos, pensando como aquela poderia ser a ultima vez que ouviria aquelas palavras estúpidas que aprendera a gostar.

- Sore wa koi no mahou.

- Hiyono...

- Yume iro no jikan.

- Pare de cantar essa droga!

A garota parou, a boca ligeiramente aberta, fitando o rapaz assustada. Piscou confusa, tentando não deixar transparecer o quanto aquilo a deixara angustiada... Muito mais do que se sentia desde aquela manhã.

- Fale algo e pararei de cantar.

- Não estou com vontade de falar ou ouvir essa coisa estúpida. – O rapaz levantou-se do seu lugar a janela. – Vá embora.

- Não vou sair daqui.

- Sua presença me irrita.

Hiyono piscou novamente, apertou o livro com força até sentir os dedos ficarem dormentes. Engoliu em seco, tentando sufocar as lágrimas que queimavam seus olhos.

- Por que está sendo tão mau comigo?

- Estou cansado de você tagarelando sem parar, narrando essa história idiota ou cantando essa música estúpida.

- Pare! – A garota baixou a cabeça, deixando que as mechas quase douradas escondessem seu rosto. Apertou o livro com mais força, ignorando a dormência.

- Você é apenas uma garotinha mimada... – Ele continuou, com esforço, sentindo cada palavra como uma lamina fria perfurando seu peito. Por que ela não podia tornar as coisas mais fáceis e simplesmente partir? – Estou cansado de ter você perto de mim--

- PARE COM ISSO! – A garota gritou, atirando o livro com força em sua direção.

Ayumu piscou, ouvindo os passos apressados se aproximarem da porta. Não pensara que ela se descontrolaria a ponto de esquecer-se de onde estavam ou gritar no meio da noite. Balançou a cabeça, dando-lhe as costas no momento em que a porta se abriu.

- O que aconteceu aqui? – A enfermeira morena perguntou, analisando o quarto cuidadosamente. – Hiyono?

- Perdão, Ryoko, acho que tive um pesadelo. – A garota falou séria, respirou fundo tentando se acalmar, ignorando o olhar da mulher sobre si.

- Talvez devesse descansar um pouco, pode usar o quarto—

- Não, obrigada. – Hiyono forçou um sorriso. – Vou ficar bem agora, Ryoko

- Se fizer barulho novamente vou ter que pedir para sair, Hiyono. – A enfermeira morena falou dura. – Não posso permitir que perturbe os outros pacientes por um capricho.

- Eu já disse que não vai se repetir, Ryoko. – Hiyono desligou a luz, sentando-se novamente sem encarar a mulher.

A enfermeira bufou, fechando a porta suavemente e se afastando.

- Por que não partiu? – Ayumu perguntou, sentado no mesmo canto que estivera na noite anterior.

- Eu disse que não iria embora. – Hiyono falou calmamente.

- Por que tem que ser tão teimosa?

- Porque se eu fosse obediente não estaria aqui com você.

- Droga, Hiyono, apenas vá embora. – Ele fechou os olhos, encostando a cabeça na parede. – Não me obrigue a continuar falando coisas que—

- Vai se arrepender?

- Não vou ter tempo de me arrepender. – O rapaz murmurou ainda com os olhos fechados. Pode ouvir o leve som da cadeira sendo afastada e os passos leves se aproximando. Quase pode sentir o perfume de flores quando a garota se ajoelhou a sua frente.

- O que isso quer dizer?

- Apenas vá embora.

- Não, explique!

- Não, vá embora!

- Ayumu... – Ela parou, respirando fundo antes de continuar. – Eu realmente não quero ser obrigada a bater naquela insuportável Ryoko, mas se você me fizer gritar novamente, juro que o farei se ela tentar me tirar daqui!

- Você nunca se cala.

-...

- Nunca pára de fazer essas malditas perguntas.

- Isso não é novidade.

- É tão difícil protegê-la... – O rapaz abriu os olhos lentamente, um sorriso triste curvando seus lábios. – Por que não age como uma garota normal e vai embora, magoada demais para pensar que há uma razão para tudo?

- Porque eu nunca me calo. Você mesmo acabou de dizer. – Hiyono sorriu. – E sempre há uma razão para tudo.

- Você não sabe... – Ayumu murmurou, erguendo a mão lentamente. – Como eu gostaria de poder tocar você nesse momento. – A garota piscou sem entender, podia sentir a mão dele a poucos centímetros de seu rosto, ver a dor nos olhos castanhos, sentir o aperto familiar no peito que parecia sufocá-la.

- Você está me assustando.

- Estou assustado também. – Ele admitiu, baixando a mão.

- O que sua irmã lhe disse hoje de manhã?

- Ah, a adorável Madoka. – Ayumu continuou sorrindo, sua voz se tornando amarga. – Ela apenas veio me lembrar de um detalhe do testamento... É obvio que não me ouviu... É obvio que veio apenas despejar sua própria amargura pela vida sobre alguém que não poderia responder a altura...

- Qual é o detalhe?

- Antes que meu irmão desaparecesse, inclui uma clausula no testamento. – Ele deu de ombros. – Eles haviam se casado há pouco menos de um ano, e achei que aquilo era a coisa certa a fazer.

- Por que alguém tão jovem faz um testamento?

- Madoka fez a mesma pergunta. – Ayumu sorriu. – Apenas pareceu lógico na época.

- Qual é a clausula?

- Ah, você sabe... Eles tinham acabado de se casar, pareciam felizes e eu pensei, em toda minha razão, que se por acaso algo acontecesse comigo, seria um peso desnecessário estragar a vida do jovem casal... – O rapaz passou a mão pelos cabelos, virando o rosto para o céu noturno onde as estrelas continuavam brilhando – Então, coloquei no testamento que não deveria ser mantido vivo com ajuda de aparelhos.

- Você...

- Assinei minha própria sentença de morte.

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Hiyono piscou, erguendo a cabeça pelo que devia ser a vigésima vez naquela manhã. Depois daquela conversa com Ayumu não conseguira dormir durante o resto da noite... Nem a perspectiva de que aquela poderia ser a ultima noite que passariam juntos, ou o desejo de senti-lo abraçá-la pela ultima vez, tinham feito com que conseguisse fechar os olhos e adormecer. Apenas sentara a seu lado, encarando a escuridão parcial.

- Acho que precisa mais disso do que eu. – O médico sorriu, estendendo o copo de café - Está parecendo um zumbi.

- Bom dia, Doutor Kanone. - Hiyono piscou, encarando o médico a sua frente como se ele não estivesse ali.

- Já falou isso hoje, Hiyono. – Ele empurrou o copo para as mãos da garota. – Tome o café. – A garota concordou com um aceno, levando o copo aos lábios automaticamente sob o olhar atento do médico. – Quem lhe contou?

- O que? – A enfermeira perguntou, tomando mais um gole da bebida.

- Sobre a razão da irmã do Senhor Narumi visitá-lo ontem.

- Não sei do que está falando, doutor. – Ela falou maquinalmente, terminando o café e amassando o copo antes de atirá-lo no lixo.

- Tire o dia de folga.

- Não! – Hiyono cobriu os lábios, percebendo que sua voz soara mais alta do que imaginara quando as pessoas pararam o que estavam fazendo e olharam em sua direção. – Não posso sair daqui.

- Pode cuidar dele se assim o desejar.

- Não posso. – Hiyono baixou a cabeça. 'Ayumu não quer que eu fique por perto para vê-lo...' Balançou a cabeça, tentando clarear o pensamento. – Ficarei bem, Doutor.

- Hiyono... – O médico se aproximou, baixando o tom de voz. – Eu acho que você deve ficar com ele hoje, ir para casa e tirar alguns dias de folga.

- Não... – Ela balançou a cabeça, enfatizando a palavra. – Por favor, Doutor, eu não... – Baixou a cabeça, escondendo o rosto nas mãos.

- Faça como desejar.

A garota fechou os olhos com força, sentindo as lágrimas escaparem de seus olhos. Pulou quando sentiu a mão em seu ombro. Olhou para Sayoko, balançando a cabeça lentamente antes de se afastar correndo.

- Hiyono, espere...

- Deixe-a em paz, Sayoko. – Kanone parou na frente da garota loura, impedindo sua passagem. – Procure a ficha do paciente do quarto 412.

- Mas, ela—

- Ficará bem se você não correr atrás dela. – O médico fez um sinal para o arquivo atrás da garota. – Agora, procure a ficha que pedi.

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Hiyono estava trancada no banheiro feminino, abraçando o próprio corpo enquanto as lágrimas deslizavam por seu rosto sem que ela conseguisse pará-las. Nunca antes sentira-se tão sozinha, desamparada... Abandonada. Podia sentir o peito apertado, quase dolorido, tornando o simples ato de respirar difícil demais.

Toda sua vida parecia um emaranhado de acidentes que ela conseguira superar com um sorriso no rosto. A humilhação das outras crianças chamando-a por nomes apenas porque não conseguiam fazê-la chorar. A mudança dos pais para o norte do país, deixando-a completamente sozinha na capital... Nada fora tão difícil de superar. Nada a abalara daquela forma.

Esfregou os braços, tentando se livrar daquela odiosa sensação gélida enquanto a escuridão ameaçava engolfá-la. Por que tinha que ser assim? Por que tinha que se apaixonar por alguém que estava destinado a morrer?

' - Você é estranha.

- Eu sei.'

Curvou-se sobre as pernas, as mãos tentando abafar os soluços que escapavam de seus lábios. Respirando sofregamente, tentando inutilmente acabar com aquela terrível sensação de derrota.

'- Assinei minha própria sentença de morte.

- Não fale assim, ainda não está morto!

- Eu queria ter sua força, Hiyono...'

- Não... – A palavra saiu distorcida, a voz rouca soou estranha a seus ouvidos. – Por favor, não... – Fechou os olhos, voltando a esfregar os braços – Eu não vou suportar...

' - Pessoas não são confiáveis, elas sempre vão te abandonar quando você estiver dependente demais para viver sem sua presença.'

- Pare, não é assim. – Balançou a cabeça, tentando parar as vozes.

' - Não percebe que não sei como voltar?'

- Você nem ao menos tentou... – Apertou os olhos com força, deixando que as lágrimas deslizassem por seu rosto.

' - Quanto tempo acha que isso vai durar? Quanto tempo até que comecem a pensar que devem desligar os aparelhos?'

' - Assinei minha própria sentença de morte.'

- Droga, Ayumu...

' - Você não sabe como eu gostaria de poder tocar você nesse momento.'

- Eu preciso de você... – Baixou a cabeça, enxugando as lágrimas que não paravam. – Eu daria tudo para poder tocá-lo também...

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Ayumu fitava o próprio corpo, uma expressão decidida no rosto, mascarando sua indecisão. Era tão difícil enfrentar a solidão depois de passar uma vida inteira desejando por ela... Irônico. A vida era irônica. Sempre arrumando uma maneira de atender seus desejos, distorcendo cada palavra até não restar nada do original.

Estendeu a mão para o próprio rosto. A expressão dura, a suave marca entre os olhos das várias vezes que franzira o cenho quando algo o irritava, a mascara de indiferença ainda estava ali. Tão diferente de como seu rosto deveria estar naquele momento... As lembranças eram a única coisa que o faziam ter certeza de que aquele deitado era o verdadeiro Ayumu Narumi.

- Estúpido, fui tão estúpido... – Um riso irônico escapou de seus lábios. Passara a manhã toda observando aquele rosto conhecido, tentando de alguma forma voltar a ser o idiota petulante que se afastava de tudo e todos por medo de sofrer. – E acabei não me permitindo ser feliz.

Fechou os olhos, cansado de encarar a si mesmo daquela forma. Cansado demais de encarar uma realidade que em muito se distanciava do sonho que desejava.

'- Por que alguém tão jovem faz um testamento?

- Pareceu a coisa lógica a fazer.'

- Aprendi tão bem a mentir... Acabei mentindo até mesmo para mim.

' - Se deseja tanto se livrar de todas as pessoas a sua volta, de sua vida inútil... Vou atender seu desejo.'

- Esse não é mais meu desejo... Não agora quando finalmente tenho alguém esperando por mim. Lutando por mim... Com mais força e coragem do que eu mesmo.

O rosto de Hiyono apareceu a sua frente. O sorriso franco, os brilhantes olhos castanhos cheio de vida e esperança.

'- Pare de fugir!

- Não sou tão forte quanto você, Hiyono, não tenho sua coragem.'

Fugir seria tão fácil. Apenas sentar ali, e esperar que viessem desligar as maquinas. O som do monitor cardíaco quando seu coração parasse de bater... Seria tão mais fácil fugir se a lembrança daquele rosto não o perseguisse. Os orbes castanhos antes cheios de vida, mostrando apenas uma sombra naquela manhã, emoldurado pelas olheiras da noite insone... Aquele odioso silencio, quando tudo o que desejava era ouvir a voz feminina.

' - Seu maldito egoísta! Como pode incluir aquela clausula? Como pode desejar morrer?'

- Eu tive tanto medo... – A voz não passou de um murmúrio fraco. – Eu tive tanto medo da felicidade de vocês... Tanto medo que esquecessem de mim... – Balançou a cabeça suavemente, o sorriso ainda insistindo em permanecer em seus lábios. – Tive tanto medo de ficar sozinho.

'Eu nunca vou esquecer de você.'

Maldita garota tagarela, sempre complicando as coisas. Entrando em sua vida sem que desejasse, descobrindo coisas que gostaria que continuassem ocultas, fazendo com que... Desejasse viver ao invés de fugir.

'Está tão frio, Ayumu.'

- É sempre frio quando você não está aqui, Hiyono.

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Sayoko entrou no quarto silencioso, lançando um olhar preocupado para a garota encolhida na cama. Quase na hora do almoço, quando finalmente conseguira se livrar do olhar atento do médico, seguira Hiyono e a encontrara no banheiro. Fora um choque ver o rosto sempre radiante manchado pelas lágrimas. Depois de algum tempo, conseguira tirá-la do cubículo afastado e escondê-la no quarto vazio no fim do corredor.

- Está se sentindo melhor? - A garota loira aproximou-se da cama, observando o rosto da colega atentamente. As olheiras pareciam mais profundas, acentuadas pela palidez. – Nosso turno terminou.

Hiyono sentou na cama lentamente, sem dizer uma palavra.

- Eu distraio Ryoko para que você possa—

- Não é necessário.

Sayoko piscou, confusa com o aparente desanimo na voz da garota. Ouvira o médico dizer o que aconteceria com o paciente em coma na manhã seguinte, e sabia como Hiyono se preocupava com ele, mas... Não era motivo para ficar daquele modo. Não era como se o conhecesse... Quão próximo você pode ficar de alguém que não responde?

- Meu irmão vem me buscar. – Sayoko começou lentamente. – Se quiser podemos deixá-la em casa.

- Não quero incomodar. – Hiyono sorriu fracamente, deslizando para o chão. – Vou ficar bem depois de uma noite de sono.

- O que só vai fazer depois que chegar em casa. – Sayoko franziu o cenho. – Deixe de ser teimosa.

- Tudo bem. – Hiyono vestiu o casaco sobre o uniforme.

- Deve estar uns trinta graus lá fora, Hiyono,– Sayoko encostou a mão na testa da outra garota, sentindo a pele fria. – Está com febre? – A garota apenas sorriu, negando com um aceno – Está sentindo alguma coisa?

- Nada. – Hiyono afastou-se do toque da garota, passando por ela na direção da porta. – Seu irmão vai demorar?

- Não muito. – Sayoko a seguiu. – Vou pegar minhas coisas e poderemos ir.

- Sim, também tenho que pegar minhas coisas. – Hiyono murmurou, apertando o passo e deixando a outra garota para trás.

- Espero você no saguão. – Sayoko deu de ombros

Hiyono continuou caminhando, sentindo as pernas amolecerem ao se aproximar do quarto. Parou na frente da porta, sentindo a coragem desaparecer. 'Frio.' Fechou os olhos, respirando fundo antes de abrir a porta e entrar rapidamente.

- Eu sei que você disse que eu deveria me afastar... – A garota se aproximou da cama, não via o vulto do rapaz em lugar nenhum, provavelmente estava escondido. – E eu vou, mas precisava me despedir. – Segurou a mão dele, sentindo-a mais quente que a sua. – Vou sentir sua falta. – Inclinou-se, beijando sua testa suavemente – Por favor, volte para mim. – Murmurou, pegando a pequena mala ao lado da cama e saindo do quarto rapidamente antes que as lágrimas deixassem seus olhos novamente.

A porta se fechou delicadamente, deixando o quarto no completo silencio novamente. Os passos da garota ficaram cada vez mais baixos, enquanto se afastavam e, mais uma vez, por alguns segundos, Hiyono deixou de presenciar um pequeno detalhe. A mão que segurara ao se despedir fechando lentamente.

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Estranho. Parecia tão estranho estar finalmente em casa. A sala parecia grande demais. A cozinha clara demais. O quarto... Silencioso demais. Era quase como não pertencer àquele lugar. Entrara em cada cômodo da casa desde que chegara, em silencio, o olhar vazio, quase automaticamente. Estava procurando pela parte que faltava.

Aquela noite passara dolorosamente rápido, sem que ela conseguisse adormecer novamente. O sol nasceu e a encontrou sentada à janela do quarto, a visão embaçada pelas lágrimas. Tudo parecia ter perdido o sentido, a razão de existir... Ela mesma já não tinha mais coragem o suficiente para trocar de roupa e voltar ao hospital... Não conseguiria estar no hospital quando desligassem as máquinas que mantinham Ayumu vivo... Não conseguiria apenas assistir enquanto ele a deixava.

Vazia. Estava se sentindo tão vazia. Pela primeira vez não tinha forças para continuar a sorrir. 'Não se preocupe, você nunca vai ver minhas lágrimas.' Já não sabia se conseguiria manter sua promessa.

Levantou-se lentamente e caminhou pela casa novamente, parando em cada cômodo, buscando inutilmente por aquilo que estava perdendo. Não estava em casa. Aquela não era mais sua casa... 'Porque você não está comigo.'

Finalmente, parou na sala. Seu corpo recusava-se a continuar se movendo. Encolheu-se mais embaixo da manta que enrolara no corpo assim que chegara. Pensar que afastar-se do hospital acabaria com aquela horrível sensação gélida fora outro engano que cometera.

Cruzou as pernas embaixo das cobertas, torcendo os dedos nervosamente. Aquilo estava errado, não deveria ter concordado em se afastar. Fechou os olhos, esfregando os braços. Estava com tanto frio, era quase insuportável.

'É sempre frio quando você não está aqui.'

A garota deixou-se cair no sofá, encolhendo-se ainda mais sob as cobertas, tentando inutilmente parar aquela sensação... Tentando inutilmente afastar a escuridão que a acompanhava.

- Eu não quero ficar sozinha. – Fechou os olhos, cansada demais para lutar contra aquilo. – Eu nunca parei de acreditar em você... Por que não fez o mesmo? – Murmurou deixando que a escuridão a envolve-se..

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Hiyono abriu os olhos lentamente, piscando quando a luz intensa atingiu seus olhos. Sentou-se lentamente, espreguiçando-se enquanto sentia-se aquecer.

- Você parece péssima.

A garota piscou, procurando pela fonte daquela voz. Esfregou os olhos, tentando clarear a visão. A luz pareceu diminuir para algo normal e ela pode ver a espécie de jardim em que se encontrava.

- Se começar a cantar, vou ter que te bater. – A voz soou novamente, mais próxima dessa vez, e, apesar das palavras, o tom era quase divertido.

- Ayumu? - A garota perguntou, passando as mãos pelas roupas lentamente.

O rapaz sentou-se a seu lado.

- Você sempre foi assim lenta?

- Grosso! – Ela levantou, sentindo a mão segurar seu braço, impedindo-a de se afastar.

- Pensei que não queria ficar sozinha.

- Não quero ser ofendida sem motivo também. – Tentou libertar o braço, mas ele apenas a puxou, forçando-a a sentar a seu lado.

- Não quero ficar sozinho.

A garota relaxou um pouco, deixando-o abraçá-la. Observou o jardim bem cuidado que os cercava calmamente.

- Onde estamos?

- A casa da família Narumi. – Ele sorriu, puxando-a para mais perto de si. – Minha mãe adorava flores, principalmente lírios.

- É onde você mora?

- Não, sai daqui há muito tempo. – Ayumu fechou os olhos, inspirando profundamente. – Esse o foi o primeiro lugar que me senti seguro... E o primeiro lugar em que...

- Foi abandonado.

- Sim.

- Por que voltar a esse lugar depois de fugir por tanto tempo?

- Algumas coisas valem à pena ser lembradas... Eu realmente gostava daqui.

- Você parece confuso.

- Cansei de fugir, Hiyono. Só isso. – Ele a puxou gentilmente para seu colo. – Descobri que existem coisas pelas quais vale a pena lutar... – Roçou os lábios no rosto dela suavemente. – E qual o melhor lugar para começar do que aqui? – Fechou os olhos, inspirando o perfume da garota com um sorriso. – Eu sabia que você cheirava a flores.

- Rosas. – Ela murmurou, enlaçando-o pelo pescoço. – Gosto do cheiro de rosas.

- Rosas não sobrevivem ao inverno. – Ele ergueu a mão, tocando o rosto delicado carinhosamente. Observou-a fechar os olhos enquanto deslizava um dedo por sua face, quase como se quisesse decorar seus traços.

- Nenhuma flor sobrevive... – Hiyono murmurou, aproximando o rosto do dele. – Mas isso não quer dizer que não voltarão a nascer.

- Então a aparência frágil é uma mentira?

- Não, a aparência frágil é para que alguém as proteja.

Ayumu sorriu, colando os lábios aos dela delicadamente. Quase podia ouvir o coração dela batendo mais rápido enquanto ela o abraçava mais forte, entreabrindo os lábios para corresponder ao beijo. Deslizou as mãos por suas costas, puxando-a contra si, enquanto continuava a beijá-la.

Hiyono sorriu, sentindo os lábios dele deslizarem por seu rosto, espalhando leves beijos por sua pele, afundou os dedos nas mechas curtas, puxando-o contra si. Uma pequena parte no fundo de sua mente dizia que aquilo estava errado, mas ela não se importava. Como algo que desejara podia ser errado?

Ouviu-o murmurar seu nome, apertando-a com mais força enquanto seu toque parecia desaparecer. Abriu os olhos, fitando o rosto do rapaz. Ele sorria, a expressão relaxada pela primeira vez.

- Ayumu...

O alarme soou mais alto em sua mente, fazendo a imagem a sua frente se apagar lentamente enquanto o irritante som do telefone se tornava mais alto.

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Hiyono estendeu a mão para o telefone, empurrando as cobertas para o chão. Sentou-se no sofá, sentindo o corpo aquecido, enquanto murmurava 'Alô' mal humorada.

- Hiyono Yuizaki! – A voz feminina soou zangada do outro lado da linha, despertando por completo a garota. – Imagino que estivesse cansada, mas ao menos podia ter a decência de avisar quando vai faltar ao trabalho.

- Sayoko? – A garota perguntou, apoiando o telefone no ombro enquanto tirava o casaco que estivera usando desde que deixara o hospital.

- Quem mais poderia ser? – Sayoko suspirou. – É bom que saia de casa e venha para cá imediatamente,

- Estou atrasada! – Hiyono piscou para o sol forte do meio dia. - Acho que dormi demais, vou tomar um banho e—

- Dormiu demais, ela diz. – Sayoko a interrompeu e Hiyono quase pode vê-la girar os olhos impacientemente. – Realmente, garota, quarenta e oito horas é dormir demais.

- O que disse? – Hiyono perguntou, passando os dedos pelos cabelos para afastá-los do rosto.

- Você sumiu por três dias.

- Impossível, hoje é terça.

- Não, querida, hoje é sábado! – Sayoko riu quando a garota resmungou algo do outro lado da linha, - Eu disse aquele Doutor sabe tudo que deveríamos ligar para saber como você estava, mas quem disse que ele ouviu? E a cada vez que eu pegava o telefone, aquele desocupado aparecia e gritava comigo. – Suspirou com a lembrança, podia ouvi-la tropeçar em coisas enquanto corria pela sala. – Você nem sabe o que aconteceu por aqui na sua ausência, sabe aquele... – Sayoko parou de falar, afastou o telefone do rosto e o olhou antes de aproximá-lo do ouvido novamente – Hiyono? – Tudo o que pode ouvir foi o som característico de que a ligação fora cortada. – Ingrata, nem me deixou—

- Sayoko! – A garota pulou com a voz zangada do médico as suas costas. – Largue esse maldito telefone e volte ao trabalho!

- Claro, Doutor, eu estava apenas—

- Não me importa o que você estava fazendo, volte ao trabalho. – Ele a cortou, suspirando impaciente. – Caso não se lembre estamos em um hospital, mulher!

- Sim, senhor. – Ela colocou o aparelho no gancho e afastou-se procurando se ocupar com algo. 'Deus, homens são tão impacientes.'

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Hiyono entrou no hospital correndo, meio ofegante por aquela ser sua atividade na ultima hora. Ignorou cada um dos cumprimentos que lhe lançaram e entrou no elevador, apertando o botão do andar impacientemente. Pode ouvir algumas pessoas xingando-a quando as portas metálicas fecharam sem que tivessem a chance de entrar.

Assim que o alarme soou, anunciando a chegada ao décimo segundo andar, a garota parou em frente à porta, empurrando as pessoas que tentavam entrar antes que pudesse sair, e correu para o quarto de Ayumu.

- Bom dia, Hiyono. – Kanone falou distraidamente para a garota que passou correndo. – Parece bem disposta.

Hiyono abriu a porta com força, entrando no quarto iluminado. Piscou, deixando a bolsa cair no chão enquanto adentrava o cômodo, evitando olhar para a cama vazia enquanto buscava freneticamente por algum sinal de Ayumu. Fechou os olhos, sentindo o corpo amolecer enquanto respirava sofregamente. Podia sentir a garganta fechando enquanto as lágrimas deixavam seus olhos sem que pudesse controlá-las.

- Você disse que estava cansado de fugir, seu mentiroso. – Escondeu o rosto nas mãos, enquanto seu corpo estremecia com os soluços. – Você disse... Droga, Ayumu! – Ignorou os passos lentos entrando no quarto e os braços fortes que a fizeram se virar antes de enlaçá-la em um abraço apertado. Estava cansada demais pela corrida até o hospital para se importar com quem a estava consolando, só não desejava ficar sozinha naquele momento. – Por que não tentou? – Murmurou, afundando o rosto no peito masculino, sem se importar de molhar a camisa do homem que a segurava.

- Você quebrou sua promessa.

A garota arregalou os olhos, tentando se afastar inutilmente. Os braços a seguraram com mais força e tudo o que pode fazer foi levantar a cabeça e encarar o rosto que não passava de um borrão por causa das lágrimas.

- Disse que eu nunca a veria chorar. – Ayumu sorriu quando ela o abraçou com mais força, afundando o rosto em seu peito novamente, e molhando a camisa de seu pijama. – Pensei que tinha mais fé em mim e... Ei! – Ele a soltou, esfregando as costelas onde ela o tinha beliscado. – Enlouqueceu?

- Eu queria saber se era um sonho... Ai! – Hiyono franziu o cenho, esfregando o braço no local que ele beliscara.

- Por que diabo me beliscou se achou que estava sonhando? – O rapaz franziu o cenho, ignorando quando a garota sorriu e o abraçou novamente. – Você é mesmo a pessoa mais irritante e tola que conheço... A gente se belisca quando quer saber se está sonhando e não—

- Ayumu? - Hiyono ergueu a cabeça e tocou o rosto dele quase com medo que alguém a acordasse novamente.

- Sim? – Ayumu murmurou mal humorado.

- Você fala demais. – Ela sorriu quando ele bufou e o abraçou com força, colando os lábios aos dele antes que tivesse a chance de retrucar.

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Sayoko parou, observando o médico encostado a porta do quarto que estava vazio nos últimos dias. Aproximou-se, parando a sua frente, cruzando os braços e arqueando a sobrancelha direita.

- Algum problema, Sayoko?

- Não está na hora da sua ronda?

- Daqui a dez minutos.

- Volte ao trabalho, preguiçoso. – A garota falou, imitando o que o tinha ouvido dizer à uma hora atrás. – Caso não tenha notado, estamos em um hospital.

- Vá tomar café, Sayoko, acho que ainda está dormindo. – O médico sorriu amavelmente e voltou a atenção para a prancheta em suas mãos.

- Por que você pode ficar a toa e eu não?

- Não estou à toa, vá fazer o que falei.

Kanone sorriu enquanto a garota se afastava resmungando algo sobre todos os homens serem resmungões folgados. Colocou a caneta no bolso e bateu na porta.

- Você tem cinco minutos, Narumi.

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Oito meses depois...

Ayumu Narumi saiu do elevador, cumprimentando as duas recepcionistas que acenavam para ele com sorrisos assustadoramente grandes. Continuou caminhando, pensando como sua vida mudara no ultimo ano.

Madoka decidira pedir transferência para uma cidade do interior, dizendo estar cansada da agitação da capital, mas ele sabia que esta era apenas uma desculpa. A cunhada ainda estava magoada pelo tempo que passara no hospital. Era quase engraçado pensar como ela esperava que ele se desculpasse por ficar doente.

Hiyono mudara para seu apartamento, apenas para cuidar dele enquanto se recuperava, é claro. Quando ele se recuperou completamente, parecia tão natural tê-la por perto que se separarem e começar lentamente parecia fora de questão. Como se ele fosse dar a garota a chance de pensar que viver com alguém recluso era uma má idéia.

'Mesmo que eu não seja mais tão recluso...'

- Ayumu! Estou a um passo de descobrir o ladrão de pudim!

- Usando minha comida como isca novamente? - O rapaz sorriu, abraçando a garota que pulara em seu pescoço. Sim, aquilo era natural demais para que fosse necessário começarem do zero. O tempo para ficarem separados havia sido longo demais.

- Sim, ele nunca resiste a sua comida.

- Está pronta? – Lançou um rápido olhar para o relógio de parede. O sorriso sendo substituído pela expressão preocupada. – Não quero me atrasar.

- Sim! – Ela sorriu, pousando os pés no chão. – Até já tirei o uniforme.

- Temos meia hora para chegar ao restaurante. – Ayumu beijou o rosto da garota suavemente, apertando sua mão enquanto começava a andar para o elevador..

- É tempo de sobra. – Caminhou a seu lado em direção ao elevador.

- Coisa banais, como trânsito e congestionamento, não acontecem no seu mundo, acontecem?

- Ayumu! Que maldade... – Hiyono estreitou os olhos. – Prometeu ser bonzinho hoje.

- Você e as promessas estúpidas que me obriga a fazer. – Ele girou os olhos, apertando o botão do elevador.

- É nosso aniversário.

- Eu sei. – Ele respondeu simplesmente, arrancando um sorriso da garota.

- Hiyono? – A garota virou-se para o médico. – Sei que está de saída, mas acabaram de avisar que um paciente está subindo, importa-se de nos ajudar a acomodá-lo no quarto?

Ayumu piscou, observando desconfiado o médico que sorria inocentemente.

- Nós temos reserva... Ayumu não gosta de atrasos... – A garota falou indecisa. – Mas acho que se for rápido...

- Sei que o Senhor Narumi vai compreender seu atraso, o paciente está em coma e—

- Na verdade ele não vai. – Ayumu segurou a garota pelo braço puxando-a para dentro do elevador que acabara de abrir as portas. – Vamos, Hiyono.

- Mas, Ayumu! – A voz da garota foi ouvida ecoando mesmo depois que as portas metálicas voltaram a se fechar.

- Você deve ter perdido seu juízo completamente se acha que vou arriscar que você cuide de outro paciente em coma.

- Que bobagem é essa?

- Na verdade, acho que deve se aposentar.

- Você enlouqueceu!

- Caso você tenha esquecido, lembro-me perfeitamente bem de como nos conhecemos. – O rapaz cruzou os braços, fechando a cara. – Não vou arriscar que aconteça novamente e você se apaixone por outro.

Hiyono piscou, o significado das palavras lentamente fazendo sentido. Sorriu, soltando um gritinho alegre, e pulou no pescoço do namorado novamente.

- Pare, vai quebrar o elevador. – O rapaz a abraçou, levantando-a do chão. O elevador parou entre dois andares e o alarme soou. Ayumu franziu o cenho, repreendendo-a com o olhar. – Olhe o que fez, sua maluca.

- Também amo você, Ayumu. – Hiyono falou, colando os lábios aos dele.

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Kanone sorriu quando o alarme do elevador soou. Deu de ombros, voltando para a recepção. Pegou a prancheta tranquilamente, analisando a lista de pacientes.

- Você não tem jeito.

- Não faço idéia do que está falando, Sayoko.

- Não tem nenhum paciente em coma subindo.

- Eu sei. - O médico sorriu, fazendo algumas anotações na folha antes de guardar a caneta no bolso. – Hora de voltar ao trabalho...