Capítulo dois - A biblioteca de Halcyon

A governanta, Dieina, guiou os garotos a um enorme e bem equipado quarto com uma varanda que dava vista para o pátio. Ele era ocupado por uma única cama enorme com quatro postes e com um pesado dossel, e cheia de acolchoados e peles. Duo deu um baixo assobio ao vê-la e se preparava para jogar-se nela. Heero o segurou com graça experiente e dirigiu um olhar à mulher que sugeria que não podia levá-lo a lugar nenhum.

A governanta, como havia sido apresentada a eles, usava um vestido preto simples de gola alta com uma corrente prateada que contornava seus seios, servindo de cintura para sua vestimenta. Ela possuía longo cabelo negro liso e solto por suas costas, mas sua pele era de cor dourada aquecida pela luz do fogo, e mais pálida que a de Heero; seus olhos eram grandes e em forma de amêndoas, puxadinhos nos cantos; sua boca era larga de lábios carnudos como se houvessem sido desenhados para serem beijados. Havia algo nela que sugeria, entretanto, que era melhor nem tocar no assunto.

"Ei," Duo disse olhando a mobília vermelho escuro e a madeira pesada, a lareira era maior que alguns dos abrigos em que haviam estado, "só tem uma cama."

A expressão de Dieina não se alterou. "O inverno em Dathyl é muito frio," ela disse calmamente, "é comum que hóspedes durmam na mesma cama, mas se houver algum problema posso providenciar outro quarto." Muito embora seu tom tenha sido sereno, havia algo em seu jeito de falar que sugeria que providenciar outro quarto seria um problema com o qual eles não gostariam de incomodá-la.

"Não faz mal," Heero disse educadamente.

"Cá entre nós," Duo disse por trás de sua mão a Dieina, "o Heero ronca."

"Não cabe a mim julgar, senhor." Dieina disse baixinho. "Se precisarem de algo mais, apenas toquem o sino, alguém os atenderá. Agora irei me retirar, a menos que precisem de mais alguma coisa."

"Aquela cama parece perigosamente confortável," Duo disse com um brilho malicioso em seu olhar.

"Não cabe a mim dizer, senhor." O tom de voz de Dieina sugeria que a mera sugestão de que a cama pudesse não ser confortável a ofendia. Ela tinha o raro dom de dizer muito ao dizer absolutamente nada.

Duo tomou isso como uma oportunidade se de jogar na cama. "Hee-chan, é super confortável, esse é um colchão baixo?" Ele olhou cautelosamente para a governanta.

"Sim, senhor. Se isto é tudo?" Embora a pergunta fosse carregada tudo nela sugeria que era melhor ser tudo.

"Sim, obrigado." Heero disse acompanhando a mulher de preto à porta e fechando-a atrás dela. Ele olhou para onde Duo estava deitado esparramado na cama em meio às peles parecendo quase devasso e fez um fez um som de 'hn'.

"Ah, que isso," Duo disse se espalhando sobre as peles, "com que freqüência a gente tem a chance de viver como reis?"

"Não temos certeza de nossa posição aqui, deveríamos começar com o reconhecimento, essa pode ser uma prisão da Oz." Ele começou a abrir os guarda-roupas e portas ao redor do quarto para revelar um quartinho particular com uma banheira de cobre e uma lareira menor.

"Se for, temos que elogiar quem fez essas celas, isto é fabuloso. É como um hotel cinco estrelas na Europa medieval."

"Ao General Treize Kushrenada." Heero corrigiu automaticamente.

Duo apenas sorriu a ele. "Olha, se isso é um truque da Oz pra conseguir informação de nós eles estão sendo bastante maldosos, quer dizer, o diretor de cenário deles não esqueceu nenhum detalhe, esse castelo tá decorado como se tivesse sido tirado de um livro de imagens, não consigo nem ouvir o barulhinho de fios elétricos, e eu não vi nenhuma tomada. O que eles podem conseguir?" Heero empalideceu ao que Duo falou. "Como nós pilotamos os gundams." Heero respondeu baixinho.

"A gente tá preso aqui, não sabemos nada sobre nossos anfitriões que dizem que estamos livres pra ir embora, podemos pelo menos aproveitar isso ao máximo."

"Vou dormir no sofá," Heero disse olhando pelo quarto, havia um pequeno otomano acomodado na cama.

A biblioteca em Halcyon era a maravilha de Dathyl e do império ao norte, os livros que G tinha eram poucos e esparsos, boa parte de sua biblioteca arquivada em computador então Duo não estava preparado para aquilo. Do chão ao teto havia livros, eles estavam empilhados em prateleiras, em montes aleatórios pelo chão, em mesas e cadeiras, mas não foram eles que o deixaram paralisado. No centro do cômodo, como se a biblioteca fosse um moldura, havia um vitral que o deslumbrou. A princípio ele pensou que a figura iluminada pela lua fosse um fantasma, um cavaleiro nas torres de guerra que olhava para fora do vidro com tamanha tristeza que sentia o ímpeto de chorar enquanto matava o dragão a seus pés.

"Quem é ele?" Ele perguntou ao guia, achando que Heero estaria tão deslumbrado quanto ele, que Heero iria apreciar isso. Havia sido idéia de Heero, afinal, subornar um criado para que os levasse até lá.

"Aquele é Menelaus." O garoto respondeu como se aquilo respondesse a tudo, ou como se ele fosse um idiota por não reconhecer a figura.

Menelaus o maravilhou de um modo que nunca esperara ser maravilhado. A beleza dele era como a de Heero, ele era alto e esguio de um modo que disfarçava sua força, com pele branca pálida e cabelo negro. Seus olhos eram verdes e estreitos. Ele usava uma malha de prata com três longos arranhões nela por onde o sinuoso dragão roxo perolado passava suas garras. Mesmo assim, Menelaus não olhava para o dragão a seus pés, ele olhava para dentro do cômodo, diretamente para Duo, um pé na garra erguida do dragão, o outro em seu corpo, sua espada negra na boca do dragão, sua capa vermelha rasgada em pedaços, mas um filete de sangue escorria por seu nariz da testa até abaixo de seu olho, uma cicatriz que não o desfigurava de modo algum. Era o tipo de homem pelo qual um garoto poderia se apaixonar, mesmo que fosse apenas um retrato em vidro. Era o melhor tipo de herói, Duo pensou, um que nunca desapontaria ninguém.

"Quem era Menelaus?" Ele perguntou ao ignorante criado que o havia levado até lá.

"É o personagem de algum livro." O homem deu de ombros. "Isso é tudo?"

"Sim, tá ótimo." Ele se virou para dizer ao homem que se retirasse e parou novamente, fixo ao lugar por outra coisa, agora. O quadro de uma mulher em um longo vestido branco com seus longos cabelos brancos se afastavam de seu rosto conforme ela ria. A mulher era mais bela que qualquer coisa que Duo tivesse visto antes na vida, em seu pescoço ela usava um colar de diamantes, e o retrato era animado e amado. Quem quer tivesse pintado o quadro, devia ter amado aquela mulher, ele podia ver isso. Ele não perguntaria ao criado quem era ela, ele ou ficaria sem saber ou seria rude com ele, mas ele iria mostrar esse cômodo cheio de maravilhas a Heero, e se isso fosse um truque da Oz eles estavam presos no castelo de Treize como Heero não parava de dizer, mas então o general era muito sortudo por ser abençoado com aquele cômodo.

"Ele é assombroso, não?" Uma mulher disse atrás de Duo, seu cabelo era de um pálido loiro avermelhado preso por uma coroa de folhas douradas, e seu vestido era feito de camadas e camadas de seda leve e fina. Ela parecia pertencer mais a uma floresta que a essa biblioteca, mas, conforme Duo olhava mais de perto, ele podia ver leves cicatrizes que as pulseiras em seus pulsos não conseguiam esconder completamente, e uma estranha mancha em volta de sua garganta. "Há muitos anos tenta-se descobrir o que passava pela cabeça do artista quando o quadro foi criado. Conhecendo a tragédia de Menelaus melhor que a maioria fico imaginando se não é apenas sombreamento." Ela olhou para Duo, "do que acha que ele se arrepende tão vividamente, senhor?"

"Da guerra," Ele respondeu sem pensar, "ele se arrepende de ter que matar algo tão magnífico." O herói sobre dragão lembrava-o de Heero, ele fazia o que tinha que fazer mesmo que o dilacerasse por dentro.

"A mulher pelo qual ele matou o dragão acabou por traí-lo." A mulher disse, sentando-se em uma das cadeiras almofadadas. "Isso não dá cor à sua visão de um matador de dragões?"

"Não," Duo respondeu, ainda encarando o vidro como se ele estivesse vivo. "Ele faz o que tem que fazer, mesmo que isso o magoe muito."

"Tem lindos cabelos, senhor, me permite?" Ela esticou o braço para tocar a trança, mas se segurou até que ele desse permissão.

Ele afastou seu cabelo dela. "Sinto muito, mas significa muito pra mim." Ele disse, e abaixou seus olhos timidamente ante aquela mulher. Ele nunca havia conhecia alguém como ela, ela o maravilhava e assustava. "Minha guardiã," ele parou, mal acreditando que quase contara a ela sobre Irmã Helen.

"Tudo bem," ela disse pacientemente com um cálido e gentil sorriso, um sorriso como o de Irmã Helen. "Eu simplesmente estou acostumada a ter tudo a meu modo, as pessoas acatam minha vontades, é revigorante encontrar alguém que não o faça, e não simplesmente por desrespeito. Sou Aeka, me agraciaria com seu nome?"

"Duo," ele gaguejou.

Ela sorriu novamente, ciente do efeito que estava causando sobre ele. Não havia como ela não saber o efeito que estava causando. "Você deve ser um dos demônios de Adam, e me foi dito que vocês dois eram terrivelmente perigosos e que eu deveria ficar atenta, ao invés disso descubro que você é apenas um garoto, embora o modo como se move me diga que você já viu horrores que ninguém aqui poderia compreender."

Duo fechou a cara ao ouvir aquilo. "Eu vi mundos serem destruídos." Ele disse com firmeza, "Eu destruí mundos."

Aeka tocou a estranha descoloração ao redor de sua garganta. "Isso eu compreendo, mestre Duo." Ela sorriu novamente, mas o sorriso não pareceu natural em sua bela face, "Saiba que é bem-vindo em Halcyon, e se alguém questioná-lo ou a seus propósitos diga que Lady Aeka deu-lhe permissão."

"Então você é uma dama?" Ele perguntou.

O largo sorriso que ela deu em resposta o surpreendeu, era o sorriso de um conspirador. "Não, querido Duo, não sou uma dama, sou uma rainha." Ela se recostou à cadeira almofadada que estava atrás dela, "Sou a rainha de Dathyl, portanto me foi dito que ficasse longe dos demônios caso eles estivessem tramando um plano para matar a mim ou a meu marido."

"O Heero acha que isso aqui é uma armadilha da Oz." Duo disse, "ele acha que se ignorarmos eles ficarão entediados e nos colocarão em uma prisão normal e nós poderemos fugir."

"Vocês fazem muito isso?" Ela perguntou, "digo, fugir da prisão."

Ele deu um de seus sorrisos mais travessos, "apenas quando somos capturados." Ele disse.