Disclaimer: Este é um fan work, feito totalmente sem fins lucrativos. Os direitos de Saint Seiya, Saint Seiya Episódio G e de todos os seus personagens pertencem à Toei Animation e Masami Kurumada. A exploração comercial do presente texto por qualquer pessoa não autorizada pelos detentores dos direitos é considerada violação legal.
Informação para o leitor:
Yaoi (contém relacionamento amoroso entre homens).
Avaliação etária: M/NC-17 (situações adultas, violência, sangue)
Par citado: Saga X ?
Texto concluído em 5 de fevereiro de 2006
A CASA DOS ESPELHOS PARTIDOS
Por: Deneb Rhode
As marcas encontraram a grama da beira de uma estrada, ali desapareciam. O caminho se estendia longamente em direções norte-sul, sem indicar por onde Kanon teria ido. Decidiu na intuição: isso sempre funcionava com eles, desde sempre pareciam saber um o que o outro pensava, as mesmas escolhas, idéias e gostos.
"Somos iguais...iguais em tudo..."
Em tudo?
Sacudiu a cabeça, por alguma razão essa idéia o deixava inquieto. Seguiu pela estrada, quase correndo, até se deparar com uma construção rústica, uma casa muito velha, feita de pedras, baixa e alongada como se ao longo dos anos houvessem sido feitos anexos e mais anexos na medida que a conveniência surgia.
Olhou pelas janelas minúsculas, tudo parecia muito escuro lá dentro, talvez estivesse abandonada. Foi andando ao redor da construção, abrindo caminho entre uma mistura de oliveiras e figueiras murchas, retorcidas de tão velhas, vegetação rasteira, meio queimada de sol e tocos secos. Achou portas que pareciam não ser abertas há séculos, emperradas. Mato e sal de maresia se acumulavam sobre as paredes livremente, com certeza não havia ninguém lá.
—O QUE!
Foi um instante: na janela divisou o vulto de homem alto, cabeleira longa e revolta, agarrando alguma coisa para jogar, uma faca ou outra arma, talvez. Reagiu instintivamente arrancando uma das pedras do muro e jogando no vulto, antes que fosse atacado. Um som de vidro se estilhaçando se ouviu, da outra ponta da casa, uma voz roufenha de mulher soou no ar:
—Quem é?
Estava envergonhado. A casa era habitada, e provavelmente havia se confundido com um vulto no espelho de um quarto. Tinha que prestar explicações aos donos, pedir desculpas e pagar os estragos de qualquer maneira, ainda que não tivesse dinheiro no bolso. Foi até a ponta da casa, achou uma porta grande, entreaberta, exalando um cheiro forte de óleo de oliva. Entrou, ainda buscando palavras, procurando a dona da voz.
Ela estava ali, na sala escura, mal iluminada pelas janelinhas e pela fresta da porta. Uma velha de aparência centenária, rosto ossudo e nariz adunco, sentada em uma cadeira de balanço. Envolta em xales negros comidos de traça, tinha os olhos brancos de catarata, o ar distante das pessoas que não conseguem enxergar.
—Minha senhora...eu...
—Ah, moço, você veio de novo? Tem mais azeite sim, pode buscar lá no armazém dos fundos, o moço pode pegar quanto quiser.
"De novo?"
—Minha senhora...é que eu...—as palavras faltavam. Queria se explicar pelo espelho quebrado, mas agora queria também saber o que ela queria dizer com "de novo"?—eu, bom, eu vi mesmo um vulto aqui, mas eu não estava, eu acabei de chegar...
—Ah, o moço que veio então era seu irmão. Não precisa se preocupar, pode pegar o azeite. Eu entendo de família. Vivo sozinha. Mas eu já tive uma família boa, é lembrança, faz muito tempo. Eu conheço quando alguém é irmão.
Irmão? As idéias começavam a se juntar, seu coração disparou. Kanon talvez houvesse passado mesmo por ali, o vulto que achou que viu no espelho poderia realmente ser ele. O espelho...mas ainda assim...
—Ah, senhora...eu queria muito saber onde o moço...o meu irmão foi, eu estava seguindo ele...eu
—Você se perdeu dele faz tempo?
Engoliu em seco. Que sensação estranha era essa que tinha, falando com aquela velha cega? Ela parecia de algum modo saber dele como se o conhecesse há tempos.
—É. Me...perdi.
—Ah, eu sei como é. É fácil se perder. Eu não me perco, porque fico sempre aqui. Mas é que não enxergo. Se eu enxergasse, me perderia também. Só se perde quem enxerga. Eni se perdeu, mas é que ela tinha um olho muito bom.
Talvez estivesse assustado por nada: a velha parecia maluca, além de cega. Ainda assim, e mais por isso, precisava reparar os estragos na casa.
—Ai, senhora...eu não sei como dizer...Mas me assustei com um vulto na sua casa, e acabei quebrando seu espelho, sinto muito. Eu vou pagar o conserto, vou comprar um espelho novo, faço o que a senhora me pedir, eu fiz muito mal, eu...
—Não faz mal, moço. Os espelhos são coisa de outras pessoas. Eu não preciso de espelhos. Não são meus.
E desenrolou uma mão esquerda bastante disforme, apenas dois dedos secos e tortos, apontando o fundo da casa.
—O armazém é lá, onde tem o cheiro mais forte. E a vila é seguindo a estrada, pra lá também. O seu irmão deve ter ido para a vila, foi usar o azeite. Lá eles usam azeite. O vigário usa muito azeite.
Era uma pista de Kanon, ainda que dada por uma velha senil. Olhou a casa ao redor de si, lamentou silenciosamente o abandono daquela senhora cega e mutilada, queria poder fazer algo por ela naquela hora, mas não tinha sequer meios. Agradeceu com educação e ia saindo pela porta de entrada. A velha apontou de novo o fundo da casa.
—Não, moço. É por ali, seguindo o cheiro forte.
—Ah, é...eu ia dar a volta e...
—Lá no fundo. Seguindo o cheiro. A vila é para lá também.
Achou melhor não discutir com a velha. Deixou a porta de entrada e seguiu para o fundo, atravessando os arcos internos da casa longa. Logo achou os cacos do espelho que havia quebrado, cada um refletindo sua imagem em um ângulo distinto. Centenas de vezes a sua imagem. Ia recolher os cacos quando olhou para as paredes.
Ali, nos corredores sombrios, podia ver montes de espelhos, talvez algumas centenas, milhares até. Grandes, pequenos, retos, côncavos, convexos, claros, manchados, antigos, novos, com ou sem aros, em todas as paredes, no teto, até mesmo no chão em alguns cantos. Todos, sem exceção alguma, quebrados, como se houvessem sido atingidos por pedras.
Estacou surpreso. A velha disse que não se importava com espelhos, e que eles eram "coisas de outras pessoas". E disse que vivia sozinha. Mas o que era tudo aquilo? Lembranças de família? Como explicar, se alguns pareciam novos? Quebrados, mas novos.
Acompanhou o corredor de espelhos silencioso, olhando as peças, cada uma olhando de volta para ele muitas vezes, milhões de olhos iguais. Logo chegou a uma porta de madeira avermelhada, cheia de manchas de óleo. O armazém ao qual se referia a velha, nada mais que um galpão aberto, alto, com chão batido e paredes de pedra onde se empilhavam vários tonéis de azeite de oliva. Alguns ainda inteiros, outros rachados, muitos sem tampa, dispostos em imensas prateleiras de madeira, espaços grandes onde uma pessoa poderia andar sem dificuldade. O óleo pingava fazendo poças grandes no chão, fluido dourado, aromático se perdendo na terra.
E as pegadas, novamente elas, de pés de homem alto, agora lavadas no azeite. Indo em direção da saída, rumando galpão afora para uma estradinha estreita, não mais o caminho que havia visto quando deixou a praia. Era outro, menor e cercado de árvores tortas, espinheiros mais crescidos, pequenos restos de cercas de madeira e placas quase apagadas, bem dizer só lenha carcomida indicando alguma direção. A tal vila.
continua...
