Disclaimer: Este é um fan work, feito totalmente sem fins lucrativos. Os direitos de Saint Seiya, Saint Seiya Episódio G e de todos os seus personagens pertencem à Toei Animation e Masami Kurumada. A exploração comercial do presente texto por qualquer pessoa não autorizada pelos detentores dos direitos é considerada violação legal.


Informação para o leitor:
Yaoi (contém relacionamento amoroso entre homens).
Avaliação etária: M/NC-17 (situações adultas, violência, sangue)
Par citado: Saga X ?

Texto concluído em 5 de fevereiro de 2006


A CASA DOS ESPELHOS PARTIDOS

Por: Deneb Rhode
VI

Esperou a noite inteira por Ganimedes.

Por fim, cansado e com sede, achou melhor dormir um pouco. Sua fuga àquelas horas já devia ser mais que óbvia para os habitantes do vilarejo, mas parecia estar seguro. Ao que parecia, os aldeões evitavam mesmo a moenda, com medo das histórias de peste. Acomodou-se coberto com a capa, dormiu sentindo o cheiro de benjoim e mar crespo.

Estava de novo na praia de Uranos. Mas agora a muito tempo antes, num dia em que ainda não ocupava o trono de Mestre, nem corria atrás de remorsos presos em grades. Uma figura ao seu lado, jovem, altiva e de olhos azuis faiscantes lhe estendeu uma taça dourada com vinho.

—E então?

Por um instante olhou para ele, estendeu a mão sem tocar a taça, algo lhe dizia para recusar o vinho. Lembrou que havia comido o queijo, o pão, bebido a água, tudo estava bom, Ganimedes não estava tentando envenená-lo...

Ganimedes? Não...

Kanon, com certeza.

—Eu...eu não posso...Não posso...

—Não pode?—e Kanon tomou um farto gole do vinho—Então me diga como você acha que as coisas vão ser daqui para frente, já que você sabe do que precisa ser feito, já conhece toda a realidade, sabe as soluções? Você abriu os olhos e viu tudo. Agora não dá mais para fechar.

Sentia-se incomodado, ameaçado. O outro mais uma vez lhe estendeu a taça, convidando-o a beber:

—A decisão é sua. Mas eu acho que é um caminho sem volta. A realidade é cruel com a ética, mas acaba se impondo, cedo ou tarde. É bem mais fácil se você não mentir para si mesmo.

Aquilo o irritou profundamente. Era como se o irmão estivesse lhe oferecendo um pacto com o diabo ou algo assim. Furioso, estapeou a taça das mãos de Kanon, jogou o líquido vermelho na areia.

—EU NÃO SOU IGUAL A VOCÊ!

Kanon sorriu, se aproximou bem dele, segurou gentilmente seus cabelos, o forçando a olhá-lo no rosto, seu hálito de vinho próximo a seus lábios.

—Não é? Então, o que você vê?

Fechou os olhos, desesperado. Tentou se soltar, empurrou o irmão, sentiu por um segundo os lábios de vinho o assaltando num beijo forçado, quase indecente, uma língua insolente violando a entrada, o gosto da bebida invadindo sua boca. Finalmente se desvencilhou, num solavanco.

"Quem é você?"

Kanon não estava mais lá.

"Quem é você?"

A taça, antes virada na areia, estava cheia, seu líquido brilhando intocado, sedutor.

"Quem é você?"

Se aproximou dela, temeroso. O cheiro e o gosto do vinho ainda estavam em sua boca, a taça repousava ali, convidando-o a provar mais.

"Quem é você?"

As palavras sobre decisões, sobre verdades descobertas, o gosto do vinho, a sede que sentia. A idéia da realidade, que se impõe cedo ou tarde. Garganta seca. Vinho. Tomou da taça sem mais hesitar, cheirou o líquido, o aroma doce o trouxe para perto, sua boca implorou um alívio. Serviu-se ávido de um gole.

"Você..."

Sentiu um sabor acre, salobro, o líquido era grosso. Jogou tudo no chão, querendo vomitar. Sangue, a bebida era sangue! Deixou-a cair das mãos, acompanhou com os olhos, cheio de horror, um pequenino braço desmembrado de recém-nascido se arrastando para fora da taça, movendo os dedos como se quisesse alcançá-lo.

"Você é..."

Acordou sobressaltado, o gosto de sangue ainda vivo em sua boca. Passou as mãos nos lábios, as viu voltar manchadas de úmido vermelho, por uns instantes imaginou que aquilo não era sonho. Olhou desesperado ao redor tentando achar sinal da taça, de Kanon ou da Enseada de Uranos: estava na moenda. Tocou novamente os lábios sentindo as rachaduras de sede e exaustão ainda doloridas, feridas novas, recém-abertas. Suspirou fundo, tentando achar o fôlego que seu delírio noturno lhe tirou.

Num canto, achou um barrilzinho com água, mais pão, queijo, coalhada e azeite, uns poucos tomates mirrados e batata assada: Ganimedes não havia se esquecido dele, isso era bom. Provavelmente o achou adormecido e resolveu não perder tempo, deixando as provisões ali e voltando para a vila sem se demorar, para não levantar suspeitas. Se levantou ainda trêmulo, abalado pelo sonho ruim, se serviu fartamente da água lavando a boca machucada e bebendo um tanto mais. Agradecia de coração ao garoto, pegou alguns tomates, abriu-os e untou-os de azeite, consolando o estômago da fome noturna.

A brisa da noite levou-o para fora. Sabia que era arriscado deixar a moenda, mas precisava de ar fresco. Era bem tarde, provavelmente ninguém iria estar acordado àquelas horas, teria uns instantes de sossego antes de voltar para o esconderijo. O canto monótono dos grilos e aves noturnas parecia dar-lhe crédito, não havia ninguém ali para invadir-lhes o território, nenhum ser humano vivo.

Deixou a construção torta, espreguiçando-se, pensando como retribuir a Ganimedes por tudo que ele tinha feito. Ou quem sabe deixar de pensar nele de modo tão bizarro, confundindo-o de modo inconsciente com o irmão desaparecido. Tinha certeza de ter olhado-o muito estranhamente mais de uma vez. Talvez fosse bom explicar tudo, contar toda a história desde o início assim que o encontrasse.

E logo encontrou Ganimedes. Os cabelos revoltos, longos, caídos sobre os ombros, o porte vigoroso, totalmente exposto, o sorriso generoso e franco parado numa eternidade, os olhos azuis intensos, fixos, vazios, a pele exalando o cheiro de benjoim, vento marinho e carne cortada, pulsos das mãos vigorosas atravessados por cravos, mantendo-o preso, suspenso de braços abertos em uma árvore vizinha, gelado, inerte, sem vida. No corpo, as marcas de incontáveis sevícias distintas, mordidas nos ombros, peito, virilha, arranhões, hematomas, os genitais esfolados, uma trilha grossa de sangue que escorreu entre suas coxas, fazendo uma poça vermelha no chão sob seus pés.

Estarrecido, viu no peito do rapaz morto, o símbolo de Gemini cortado à faca. E achou amarrado aos dedos dos pés de Ganimedes um retalho de pele arrancada de seu próprio corpo. Um bilhete, onde caprichosamente se escreveu com pena e tinta, em caligrafia elegante:

"Istmo dos dentes de pedra, estrada sul".


continua...