Disclaimer: Este é um fan work, feito totalmente sem fins lucrativos. Os direitos de Saint Seiya, Saint Seiya Episódio G e de todos os seus personagens pertencem à Toei Animation e Masami Kurumada. A exploração comercial do presente texto por qualquer pessoa não autorizada pelos detentores dos direitos é considerada violação legal.


Informação para o leitor:
Yaoi (contém relacionamento amoroso entre homens).
Avaliação etária: M/NC-17 (situações adultas, violência, sangue)
Par citado: Saga X ?

Texto concluído em 5 de fevereiro de 2006


A CASA DOS ESPELHOS PARTIDOS
Por: Deneb Rhode
VIII

Acordou numa ilha minúscula, quase uma ponta de terra saindo do mar, um pedacinho de chão com um mato baixo, pedregulhos e caranguejos. Ainda sentia as dores no corpo, as costelas pareciam quebradas, tossiu sal e sangue. Se levantou olhando para o céu: agora não mais o tom azul claro de antes, mas um cinza plúmbeo, sinal de que uma tempestade se aproximava. O vento forte uivava em seus ouvidos, um rangido de madeira se fez ouvir, chamando sua atenção. Ali, preso a uma argola de ferro, um pequeno barco à vela corcoveava nas ondas bravas.

"Pegue o barco na ilha, enfune as velas e vá embora"

Era desse barco que seu gêmeo falava, um jeito fácil de ir embora daquele lugar macabro, buscar segurança em algum outro porto, longe dos crimes. Crimes feitos pelo outro, e que jogaram o peso dos atos sobre seus ombros. Muito contraditório. Se havia feito tudo aquilo, tido tanto trabalho de incriminá-lo, por que agora queria que ele fugisse?

O barco estava ali. Os ventos confusos pareciam empurrá-lo em todas as direções mesmo com a vela arriada, sabe-se lá para onde iria caso fosse içada. Na distância podia ver a praia, o lugar onde havia chegado após cair no mar da Enseada de Uranos. Tinha a chance de ir para lá de novo, ou de se afastar, provavelmente se afastaria, deixando para trás aquele pesadelo. E deixando para trás Kanon.

Quem seria a próxima vítima? Quem mais ele iria matar? Talvez desistisse sem Saga por perto: não teria mais a quem responsabilizar por seus atos. Ou talvez não. Hebe, a serva do Santuário foi morta quando ele não estava lá. A idéia de que ele iria parar se esmaecia ante o ódio profundo e incansável do pai da moça, a fama sinistra que ganhara entre os aldeões, até ante as convicções bondosas de Ganimedes. Foram coisas construídas por algo mais que dias, talvez até por meses.

Nesse caso, ir embora não era uma opção. Tinha que voltar. Tinha que deter Kanon.

Deixou o barco, se lançou ao mar fazendo o corpo dolorido enfrentar ondas e correnteza. Tinha que chegar na praia de novo. Após vários minutos lutando contra as águas, estava novamente em pé na praia, correndo, buscando a estrada e seu caminho norte. Achar a casa da velha, o caminho para a vila, ia retornar mesmo com a cabeça à prêmio. Tinha que avisar alguém do que estava acontecendo, qualquer pessoa, mesmo que fosse preso de novo ou até queimado vivo, antes precisava convencer alguém, alguém ia ter que acreditar nele.

O vento arrastava mais e mais nuvens escuras, as preces do diácono por chuvas pareciam estar sendo atendidas. Enquanto corria entre espinheiros e árvores tortas na estreita estradinha que ia para a vila lembrou-se dele: o vigário envolto em negro que estava encompridando os cânticos da missa para ajudá-lo a fugir. Ele talvez o ouvisse. Mesmo com a morte brutal de seu auxiliar, tinha que correr o risco: não tinha nenhuma outra esperança, seria sua melhor tentativa, a única pessoa que poderia acreditar nele.

A vila estava deserta mais uma vez, uma luz anêmica brotava das janelas da igreja ressaltando tênue sob o céu encarvoado, no centro da praça a imensa pira improvisada ainda estava lá, o poste ressaltando em meio à lenha. As argolas de ferro se agitavam na ventania, o som de rangidos metálicos fazendo coro com o troar da borrasca.

Os ladrilhos do chão estavam pichados de vermelho.

No poste em meio à lenha, pendendo das argolas o sinistro adorno de três cabeças cortadas: a gorda e encarnada do velho Agenor, a de um homem mais novo, o mesmo que lhe havia conduzido ao cárcere e finalmente a de uma criança, a menina pequena de olhos arregalados, agora congelados no último pavor da morte. Achou os corpos dos homens jogados ali perto, nus e mutilados. E mais uma vez inscrições, desta vez com sangue, no chão da praça inteira: as palavras "Justiça", "Finalidade" e "Misericórdia".

E o símbolo de Gemini, enorme, ali no piso, desenhado também com sangue, dominando toda a frente da igreja. Junto ao desenho, o corpo da garotinha igualmente mutilado e nu, sentado na porta do templo como se descansasse. Um ícone de matança.

Por um instante ficou travado ali, em choque, sem conseguir se mexer, as vozes de cânticos vindos da igreja fazendo sua cabeça girar. Estrondos começavam a se ouvir ao longe, o vento soprou mais forte, levando o cheiro dos cadáveres. Pensamentos se atropelavam, pensava em sair dali o mais rápido que conseguisse, pegar o barco, se afastar daquele lugar horrível, pensava no tamanho da atrocidade que havia acontecido, num crime daqueles largado sem punição ou justiça, em uma trilha de mortes que parecia não ter fim. A imagem dos olhos de Kanon lhe veio à mente, as palavras ditas com tanta calma: "Você não entendeu nada".

Um ruído do outro lado da praça o assustou, imaginou ter visto a sombra de pessoas deixando as casas, tratou de correr. Se escondeu atrás da igreja. Achou a porta dos fundos fechada, não podia entrar, ali ao descoberto estava para ser apanhado: tinha certeza de que o povo não lhe daria perdão. Pensou depressa em algum esconderijo, olhou para cima, talvez se subisse no muro e ficasse atrás da laje de cobertura da igreja, atrás da abóbada, poderia ter menos chances de ser visto. Subiu nas pilastras velhas, apoiando os pés nos buracos carcomidos da argamassa de palha e barro. Conseguiu alcançar a laje, afundou os pés em algo que parecia molhado, o cheiro forte de azeite de oliva invadiu suas narinas.

Estava na laje, de frente à abóbada com o cruzeiro de metal. E afundado em azeite de oliva até os tornozelos, o líquido dourado se infiltrando nas paredes de argamassa. Olhou em volta sem entender o que tanto azeite fazia num lugar daqueles, acabou achando um buraco quadrado estreito coberto com uma tábua em um dos cantos do prédio. Bem em cima de um degrau da laje, um dos poucos lugares que se via sem azeite, talvez o quadro de uma antiga clarabóia.

Olhou pelo buraco, viu o escritório particular do diácono, vazio. O vigário devia estar rezando com os fiéis. Notou que a porta de ferro trancada nos fundos da igreja dava passagem para esse aposento, uma sala bastante simples, repleta de utensílios litúrgicos, um armário velho, uma escrivaninha, vários potes fechados e outra porta de ferro que devia se comunicar com o salão da igreja. Ouviu novamente sons que não sabia serem do vento forte ou de pessoas saindo à praça., se assustou, não conseguia saber de onde vinha o ruído. O escritório vazio parecia ser um esconderijo melhor que a laje: as missas eram muito longas, e o diácono era a única pessoa com a qual talvez pudesse contar. Com cuidado esgueirou-se pelo buraco estreito.

A sala era iluminada por janelinhas na parede, mesmo estando seca, tinha um cheiro de azeite de oliva ainda mais forte que a própria laje. Nenhum dos castiçais para velas estava sendo usado, algo incomum numa igreja ortodoxa, mesmo que fosse no escritório. Sobre a escrivaninha achou alguns papéis que pareciam incompatíveis com aquele lugar: fotos muito antigas de crianças e uma pasta com folhas impressas por computador, modernas, cheias de gráficos e números.

As fotos, amarelecidas, algumas quase totalmente desbotadas mostravam duas meninas gêmeas, vestidas igual, sempre de mãos dadas. A única diferença que tinham era letras bordadas em suas saias: um "P" na garota que aparecia à esquerda e um "E" na garota que estava à direita. Nunca mudavam a ordem.

Revirou mais fotos, as meninas sempre na mesma pose, sem alterar. Por fim achou uma foto diferente, as duas sorrindo, acenando para o fotógrafo, com as mãos envolvidas em bandagens. No verso a nota: "Minhas Pemfi e Eni, agradecimento pela graça alcançada, separação das siamesas, julho..."

Eni?

"Eni se perdeu, mas é que ela tinha um olho muito bom."

O que a velha disse. A bandagem nas mãos das meninas. A mão mutilada da velha cega. "Eni tinha um olho muito bom". Eni.

E mais um lampejo, do dia confuso em que acharam a velha no tonel: só deu para ver um braço com a mão disforme e a cabeça branca, tudo coberto de óleo. Lembrou da velha apontando para o fundo da casa, com a mão disforme, esquerda. E da velha sendo tirada de dentro do tonel, o braço aleijado pendendo para fora, inerte.

Não podia garantir...mas parecia mais um braço direito. Com o contrário exato da mutilação que viu apontando para o fundo da casa. Voltou a olhar as fotos, com mais atenção, confirmou suas suspeitas:

Gêmeas siamesas unidas por uma mesma mão. Por isso pareciam de mãos dadas, na verdade não estavam, apenas compartilhavam os mesmos ossos e carne. Por isso sempre na mesma ordem nas fotos. Por isso não se largavam. Eni. Fotos muito antigas. "Eni se perdeu".

Sentiu um arrepio na espinha. O que essas fotos faziam lá na igreja? Olhou rapidamente os papéis da pasta, um texto técnico dificílimo, não entendeu muita coisa. Apenas identificou o timbre do Departamento de Meteorologia de Atenas, e as palavras "previsão do tempo", "tempestade de raios", "seca" e "incêndios", realçadas em amarelo.

Ouviu um barulho na porta de acesso ao salão, alarmado subiu novamente pela clarabóia o mais rápido que pôde, largou manchas de azeite no assoalho e rezou para que ninguém notasse. Na pressa, soltou a pasta com os papéis de computador e as fotos caídas de qualquer jeito, espalhadas na mesa. Viu o diácono entrar calmamente. A porta ficou aberta por alguns segundos: pode notar o lume alaranjado de inúmeras velas acesas, uma reza cantada subindo, como de pessoas em êxtase. Muita gente lá dentro, provavelmente a vila inteira.

O religioso fechou bem a porta, trancou-a com chave, pisou sobre as marcas de azeite sem dar maior importância. Abriu alguns potes, jogou de dentro deles um pó escuro muito parecido com terra fina no chão da sala e sobre a escrivaninha. Pegou velas longas de dentro do armário e as acendeu no castiçal. Recolheu as fotos e papéis espalhados, guardou uma imagem das gêmeas dentro das vestes sacerdotais. Abriu a gaveta da mesa e tirou de dentro um par de cadeados enormes. Olhou para a clarabóia, as vestes escuras descobriram um queixo sorridente, lábios que não lhe pareceram nada estranhos. Seria possível? O diácono saiu da igreja, trancou a porta do fundo e fechou com uma imensa trave de madeira os portões da frente, arrematando com os dois cadeados. Lacrou totalmente a igreja por fora.

O vento na praça já havia se convertido quase em um tufão, os pedaços de madeira da pira começando a se espalhar por todos os cantos, uma grossa nuvem de pó voando, as cabeças caindo do poste, rolando como bolas de jogo nos ladrilhos manchados. Saga acompanhava o vigário de cima do telhado, quase caindo, viu um pedaço de argamassa da abóbada se soltar e desabar sobre a clarabóia, fechando o acesso. No fundo, abafadas pelos sons da tempestade, seguiam as vozes das pessoas, cânticos e rezas que continuavam mesmo sem ministro. O diácono foi se afastando, e antes de sumir no meio da poeira, tirou a parte da veste que lhe cobria a cabeça. Acenou, sorrindo.

—Kanon?

No céu, relâmpagos e trovões já anunciavam o que estava por vir. Um raio caiu num canto da praça, explodindo em chamas uma oliveira seca.


continua...