Capítulo 3 – A manhã diferente
Harry entrou em sua cozinha de manhã cedinho e colocou a chaleira com água no fogo para um chá antes de ir à botica de Severus. Aquela era a melhor hora do dia para ele. Religiosamente, ele saía de dentro da opressiva mansão da extinta Família Black, ia à botica, depois andava disfarçado por Diagon Alley (mesmo com dificuldade por causa da bengala) e comprava o Profeta Diário na Floreios e Borrões. A moça da caixa sempre deixava separado o exemplar dele e o atendia com um sorriso e um polido "Bom dia, Mr. Harris".
Eventualmente, ele ia a Gringotts retirar algum dinheiro, e invariavelmente via que o montante tinha crescido. Até aquele dia, anos depois da derrota de Voldemort, muitas pessoas agradecidas mandavam dinheiro em nome de Harry Potter, direto para sua conta. Ele redirecionava a maior parte desses fundos para instituições de caridade, orfanatos, bolsas para estudantes carentes em Hogwarts, e atividades afins.
Talvez ele não se sentisse tão só se não morasse sozinho naquela casa enorme. Kreacher tinha morrido durante a guerra ao tentar proteger sua adorada Narcissa Malfoy de uma batida de Aurores na Mansão Malfoy, e Harry certamente não iria contratar um elfo só para ter com quem conversar. A casa era, portanto, quieta. Nem o retrato de Walburga Black, mãe de Sirius, tinha sido preservado, e seus gritos se calaram há anos.
Harry só mantivera a grande tapeçaria com a Árvore da Família Black. Ele gostava de encarar todos os buracos no tapete, imaginando que aquelas pessoas teriam lutado a seu lado contra Voldemort se pudessem. Seus dias eram solitários, sim. Ele tinha as lembranças terríveis, e uma ocasional visita de Ron e Hermione, ou Ginny e Neville – todos com seus filhos.
Mas aquela hora da manhã, a que passava com Severus, na quietude da salinha de trás da botica, era sagrada para Harry. A melhor hora do dia. Ele podia ser espontâneo, conversar sem cobranças sociais, sem reservas, sem censuras.
Então ouviu sons de alguém descendo a escada. Imediatamente ele sacou a varinha, ficando em guarda para receber o invasor. Relaxou, porém, quando viu Remus entrando na cozinha.
– Bom dia, Harry. Desculpe se o assustei. Usei a antiga chave extra que Sirius me deu para dormir no quarto de cima.
– Bom dia. Você dormiu aqui? Por quê?
– Severus e eu tivemos uma briga – disse ele, evitando olhar Harry. – Ele me expulsou de casa. Espero que ele me deixe entrar para pegar minhas roupas, eu só trouxe a que tenho no corpo.
– O quê? Mas por que, o que houve?
– Oh, bem, Harry, eu esperava que você ficasse fora disso. Foi uma briga de amantes, dessas que todo o casal tem.
– Desculpe, eu não quis me intrometer. Mas Severus estava tão feliz outro dia, muito orgulhoso de você estar trabalhando para aquele esnobe do Malfoy e agora você me diz que ele o expulsou de casa. Fiquei chocado, só isso. Não quis ser curioso.
– Na verdade, Harry, ele até teve motivos para isso. E se quer mesmo saber o que houve, ele me pegou com Draco.
A princípio, Harry não entendeu.
– Pegou? Como assim? – Lupin finalmente o encarou e Harry arregalou os olhos verdes, finalmente entendendo. – Não! Remus, não! Não! Como você pôde?
– Tenha calma, Harry. Não é nenhum desastre.
A chaleira apitou nesse instante. Remus despejou a água quente no bule, enquanto Harry se agitava:
– Não é? Severus nunca vai perdoá-lo, sabia?
O lobisomem fez uma careta:
– É, você provavelmente tem razão. Mas o que você queria que eu fizesse?
Harry ficou ainda mais indignado, erguendo a voz:
– O que eu queria que você fizesse? Que diabo de pergunta é essa? Você tinha que ter resistido aos avanços de Malfoy, ora! Não trair a pessoa que você ama!
Remus pegou duas xícaras de porcelana do armário e colocou sobre a mesa, erguendo as sobrancelhas e ensaiando um sorriso antes de indagar:
– E quem disse que os avanços vieram de Draco, Harry?
Por mais que Harry pensasse ser impossível que seus olhos ficassem mais arregalados, eles ficaram. O Garoto-Que-Sobreviveu mal podia acreditar no que ouvia:
– Você traiu Severus? Há quanto tempo isso vem acontecendo? E por quê?
– Ah, isso não vem ao caso. E não é como se fosse a primeira vez. Ah, eu sabia que ia dar nisso. Mas Draco insistiu que seria emocionante me ter na mesma cama de Severus e então eu sabia que não ia dar certo.
Harry estava cada vez mais horrorizado com o que ouvia:
– Na mesma cam... Quem... Quem diabos é você? Eu não estou reconhecendo você! Não é o meu ex-professor, e certamente não pode ser a mesma pessoa que disse a Wormtail, no Shrieking Shack, que preferia morrer antes de trair seus amigos!
- Tecnicamente, foi Sirius quem disse. – corrigiu.
- Mas você concordou! E terminou fazendo exatamente a mesma coisa. Não, não foi a mesma coisa! Porque o que você fez foi muito pior! Ninguém ameaçou você, Remus, ninguém o coagiu a nada. Wormtail, pelo menos, foi ameaçado por Voldemort! Você traiu Severus sem razão!
– Harry, você parece não entender que a vida para pessoas como eu e Severus é diferente dos demais. Somos marcados, Harry, condenados a sempre sermos aturados por gente "de bem", como você e Sirius. Mas Severus e eu somos párias. Não temos direito a amor. Severus não me ama, eu não o amo – era questão de tempo até uma coisa assim acontecer.
Harry respirou fundo, tentando se controlar. Aquele homem era amigo de seu padrinho, praticamente sua última ligação com algo que se parecesse a uma família, pensou Harry. As palavras dele revelavam uma baixíssima auto-estima e o rapaz não entendia o motivo. Tentando se acalmar e pensar mais friamente, ele refutou:
– Isso é bobagem e você sabe. Remus, não sei de onde tirou essas idéias, mas você tinha a seu lado um homem que era muito afetuoso com você. Só Severus pode lhe dizer se ele o ama ou não, mas qualquer um podia ver que ele nunca deixou de ser carinhoso e atencioso com você. Claro, ninguém esperava que Severus virasse um homem apaixonado, caído aos pés de alguém. Mas ele não tratava você como um qualquer, Remus. Ele nunca foi indiferente. Ele lhe deu um presente de atenção e dedicação, e você jogou isso na lama, uma lama com a cara e o cheiro de Malfoy. Eu não sei se ele vai perdoar você algum dia.
Remus virou o rosto, e qualquer um poderia achar que era por vergonha, mas não era verdade. Harry ficou mais dolorido ao notar que o lobisomem não conseguiu esconder o fato de que ele não queria ser perdoado. Remus não desejava mais nada com Severus, e parecia aliviado que tudo tivesse terminado.
A mente de Harry entrou em ação. Ele continuou, quase raciocinando em voz alta:
– Pior do que isso, eu não sei se ele vai se perdoar. Remus, já foi tão difícil ele se abrir e aceitar você em sua vida, agora ele pode se fechar completamente.
– Desde quando você se preocupa com o Snape? – Remus indagou jocosamente. – Foi quando ele virou Severus?
– Ele é meu amigo.
– Desde quando? Eu me lembro do espanto quando eu comecei a sair com ele. Ron quase teve uma síncope: era "sebosão" para cá, "nojento" para lá. Você mesmo, Harry, ficou com uma cara que eu nunca tinha visto na vida. Acho até que ficou em estado de choque durante dias!
– É, foi um choque a princípio – admitiu Harry, desviando o olhar. – Vocês dois não pareciam ter nada em comum. E eu fiquei preocupado com as conseqüências se não desse certo. Sabe, alguém poderia se magoar profundamente. Mas depois vocês pareceram ter se acertado muito bem, e eu achei que... bom, achei que fosse virar uma coisa séria. Eu achava que era para valer.
– Harry, fico tocado que você estivesse preocupado que aquele bastardo sem coração do Snape pudesse me magoar. – Harry desviou o olhar: ele estava a um passo de lembrar a Remus que ele é quem terminara se revelando um bastardo sem coração. – Mas, como você viu, não foi nada importante.
– Talvez não para você. Mas tenho a impressão de que Severus pensa diferente. Acho melhor eu ir até lá e ver como ele está.
– Se fosse você, não me preocuparia tanto. Está exagerando.
– Remus, ele é meu amigo. Eu faria o mesmo por você. Mas há um problema. Eu adoro você, Remus, e isso é difícil para mim. Porque por mais que você tente se explicar, nada justifica o que você fez com Severus. Eu gostaria de poder deixar que ficasse aqui, mas isso não seria justo com ele. Talvez Draco tenha um quarto para você naquela mansão imensa. – Ele se levantou e pegou sua bengala. – Agora tenho que ir.
– Vai correr para Severus? – desdenhoso.
– Não. Eu tenho um compromisso com ele todas as manhãs, como você sabe muito bem. Agora, se me der licença, perdi meu apetite. Mas pode tomar seu café tranqüilamente. E agradeceria se, ao sair, deixasse sua antiga chave na mesinha de correspondência no hall de entrada.
Sem dar tempo a Remus de responder, Harry pegou sua bengala e saiu de sua casa, sabendo muito bem que, assim que retornasse, trocaria todas as fechaduras da casa.
