2ª Entrada – Mundo imperfeito
Pude, finalmente, descer à terra. Era um dos poucos anjos que aceitara tal missão e segundo o que me tinham dito, nenhum dos outros voltara, mas eu havia de voltar. Nada me tiraria aquele lugar no mundo perfeito onde eu pertencia. Era ali a minha casa, o sítio que eu mais amava e onde estava a minha alma e o meu destino. Foi-me pedido para adoptar uma forma humana para que me pudesse passar despercebido. Ao que percebi, teria de optar entre ser homem ou ser mulher. Foi o meu primeiro desafio mas a escolha foi exactamente automática, escolhi ser mulher sem perceber porquê, mas um desejo recalcado já se estava a manifestar nessa escolha.
Foram-me ocultadas as asas, fui envolvido por um traje branco que me cobria o corpo quase na totalidade, apenas os braços escaparam. O meu cabelo negro comprido não se alterou, apenas ficou mais liso do que alguma vez tinha sido. As minhas feições continuaram as mesmas e poucas mudanças senti no corpo. Ainda continuava a ser o mesmo anjo que sempre fora.
Quando poisei pela primeira vez naquele mundo, percebi logo o que queria dizer a palavra impuro. Foi como se o meu brilho desaparece-se para sempre e eu ficasse condenada. Vi homens, mulheres e crianças caminharem pelas ruas, uns tristes, outros a chorar e uns poucos alegres e a sorrirem. Perguntei-me como poderiam viver assim? A vida que lhes era concedida era demasiado curta para a desperdiçarem a chorar e o fim que os esperava era tão horrível para sorrirem. Não queria ficar ali, queria voltar para o meu mundo!
Caminhei também por essas ruas procurando o que me tinham pedido – um objecto sagrado que eles possuíam! Nada me parecia ser assim tão maravilhoso, tudo o que eu tocava era demasiado repugnante para ser muito cobiçado pelos anjos.
Deambulei dia e noite. Finalmente vi as famosas estrelas brilharem bem alto no céu que eu sabia ser a minha casa e a lua que eu nunca tinha imaginado existir, ali a sorrir para mim, até parecia dizer: "Boa noite menino anjo que pisastes a terra!"
Menino! Agora era uma menina, era uma experiência incrível e impossível de explicar. Continuei o meu caminho vários dias, várias noites sem encontrar o mais pequeno objecto capaz de agradar aos meus companheiros. Eles tinham-me dito que eu saberia assim que o encontrasse, então isso só significava que eu ainda não o tinha encontrado.
E durante este tempo todo o que vi foi repugnante. Lixo, miséria enquanto outros apodreciam de uma coisa horrenda a que chamavam de dinheiro, com o qual podiam possuir tudo até a vida uns dos outros. Vi crianças abandonadas, pessoas tremerem e dormirem na rua, uns a matarem-se aos outros, violações, mutilações, coisas mesmo horríveis. Agora entendia o porquê de mais nenhum anjo querer descer à terra. Nada era maravilhoso ali, era impossível existir naquele mundo algo que nós quiséssemos. Apenas uma coisa pareceu-me ser agradável, os bebés. Eram tão pequenos e delicados e a forma como eles nasciam!
Aprendi muita coisa nesta minha viagem e uma delas era que anjos e humanos eram concebidos de maneira muito diferente. Um homem e uma mulher relacionavam-se corporalmente e passado algum tempo nascia um ser minúsculo mas que crescia rapidamente. Com os da minha espécie era completamente diferente. Vários anjos relacionavam-se mentalmente e todos juntos desejavam que surgisse um novo anjo e passado momentos ali estava ele, um ser branco com asas mas que ainda teria de aprender a voar.
Muitas vezes senti o desespero de estar ali e supliquei para regressar. Como poderia eu alguma vez ter desejado conhecer aquele horror?
