3ª Entrada – Homem e Mulher

Arrependi-me de estar ali. Queria voltar! Dirigi-me ao local onde aterrara da primeira vez que pisara aquela terra odiosa. Ergui as mãos ao céu e estava a preparar-me para prenunciar a oração que me deixaria regressar quando o vi.

Não podia acreditar! Aquele homem que vira de lá de cima, e agora que o observava de perto, via que não passava de um jovem, tal como eu. Estava debruçado sobre o precipício e fitava insistentemente o mar que marulhava bem lá no fundo. Ainda tinha a mesma expressão nos seus olhos de ódio e de sofrimento. Lembrei-me que tinha desejado poder tirar-lhe aquela dor, mas agora com a experiência que eu tinha, sabia já ser impossível. Aquilo nascia com eles e com eles morreria.

Voltei a erguer as minhas mãos mas não consegui dizer a oração. Deixei cair os meus braços e pensei que ainda me poderia demorar mais um pouco, afinal não cumprira a minha missão. Observei-o delicadamente e passado pouco tempo ele desviou o seu olhar do precipício e devolveu-mo. Fitamo-nos insistentemente. Ele era um bicho curioso, aquela expressão que ainda não encontrara em mais nenhuma face. Parecia que o mundo o abandonara, que lhe caíra aos pés.

Aproximamo-nos sem nos apercebemos e ouvi a minha voz dizer:

- Porque sofres assim tanto?

Ele fitou-me carrancudamente, o que me assustou bastante. A sua voz respondeu-me roucamente:

- O que fazes tu aqui?

- Queria voltar para casa!

Não acreditava que lhe tinha dito isto. Era segredo! Nunca revelar a minha verdadeira natureza era uma das regras e ali estava eu a quebrá-la, mas ele virou-me as costas sem acreditar.

- Devias voltar para casa, este lugar não é muito agradável de se estar. É raro vir aqui alguém, portanto se caíres ninguém te poderá socorrer.

- Porque sofres assim? Que te aconteceu? Nunca houve um momento em que te visse sorrir…

O rapaz virou-se bruscamente e só aí percebi que fora longe demais, dissera coisas proibidas, revelara-me.

- Como sabes isso? Tens-me observado?

- Não… é que…

Os anjos não mentem, era outro dos aspectos da natureza ser anjo mas também não encontrei palavras para lhe explicar e remediar o assunto.

- Não me vais dizer que és um anjo! Assim tão resplandecente e bonita que és… apostaria que só te faltavam as asas.

Fora apanhada, pelo menos era o que eu pensava. Agora era uma questão de segundos para que um raio me fulminasse e tudo acabasse para mim, mas não… esse raio nunca chegou a cair e ali continuei. Ele não sabia quem eu era, aquilo era uma forma de sarcasmo dos homens que eu ainda não conhecia.

- Quem és tu?

Fiquei de novo embaraçada e nada lhe disse. Talvez fosse melhor nem responder, mas ele apenas queria saber o meu nome.

- Como te chamas?

Nome? Os anjos não possuem nomes, todos nós nos conhecemos e não precisamos disso, mas apenas senti os meus lábios a movimentarem-se e uma palavra tornou-se audível: - Maylene!

Também me disse uma palavra, um nome estranho para mim, não o percebi. Apenas notei que era um bonito nome…

- Kai!

Tão simples, tão natural, tão fácil de prenunciar e de memorizar. E Maylene! Onde teria eu ido buscar tal nome? Não sei nem nunca o soube, talvez o tivesse ouvido em algum lado, talvez até já o tivesse prenunciado mas surgira agora de repente.

Ele voltou-se a aproximar de mim e estendeu-me a sua mão. Eu tinha de evitar o contacto mas a minha mão não conseguia ficar longe da dele e as duas tocaram-se. Esperei de novo que acabasse a minha vida, mas ali continuei imune. O toque de um humano era fantástico. A sua mão era quente, áspera mas agradável de tocar. Então aquela era a diferença entre o calor e o frio. O calor humano contra a vida aparente de um anjo. Não! Afastei a minha mão da dele. Estava a pôr em causa a minha espécie, estava prestes a acreditar que os seres humanos eram os únicos que viviam realmente apesar da sua vida ser tão curta.

Ele deixou que me afastasse uns escassos centímetros e olhou para o horizonte.

- Hoje está uma noite calma e agradável, apesar de estar frio. Ficarei aqui hoje. Se me quiseres fazer companhia terei todo o gosto.

Dei por mim a concordar e a sentar-me ao seu lado. Estava de facto frio, mas eu não o conseguia sentir. Os anjos não sentem o frio nem o calor. Não sentem sono, não ficam deprimidos e só raramente ficam tristes.

Ele aproximou-se ainda mais de mim e envolveu-me nos seus braços. Pensava que eu tinha frio e para ele até estava fria. Deitou-se no chão a olhar para as estrelas. Deitei-me a seu lado ainda com a sua mão agarrada ao meu ombro e repousei a minha cabeça sobre o peito dele. Também olhei para aquelas estrelas que agora pareciam que estavam a iluminar apenas aqueles que as queriam ver.

E eu ao menos pudesse ajudá-lo. Se eu pudesse tirar-lhe aquela expressão da sua bonita face.

- Dizem que as estrelas são anjos que estão lá em cima a velarem por nós! Creio que a minha mãe é um deles, nunca a conheci.

Então era essa a cultura deles! Os anjos serem estrelas, que ignorância, mas apenas naquela frase apercebi-me da necessidade que eles tinham de se apoiarem em algo para que pudessem viver o pouco tempo que tinham.

- As estrelas são apenas estrelas, e os anjos já nascem anjos. Nenhum ser humano pode-se tornar num… – dei por mim a falar sem pensar, a falar sobre mim, a violar as regras. – O tal céu em que vocês acreditam, não existe. Estão todos condenados ao…

- Inferno! – completou ele. – Eu já o sabia! Neste mundo é impossível que alguém mereça realmente o céu! Cada um de nós já fez coisas tão horríveis para se tornar luz.

- Porque vivem vocês assim?

- Não sei! É a nossa natureza… Vivemos para sofrer e é só!

Compreendi que ele tinha cometido coisas horríveis no seu passado e era isso que o incomodava agora, era a verdadeira causa da sua expressão dolorida.

Levantei-me e sorri-lhe, quis com este sorriso mostrar-lhe que nem tudo estava mal, eu estava ali e isso já era bom em si. Ele percebeu o que lhe quis dizer pois abraçou-me e disse-me ao ouvido:

- És um anjo sem dúvida! Já tinha perdido a esperança de algum dia ver um. Sou tão impuro que nem devias estar comigo. Não mereço a tua compreensão e companhia. Devias partir enquanto podes, antes que tudo também acabe mal para ti, antes que também estejas condenada ao meu mundo.

Fora descoberta! Ele sabia quem eu era, mas como era possível? Mas naquele abraço, eu lembrei-me de algo que tinha esquecido durante este tempo todo. Tinha escolhido ser mulher por causa dele. Eu amava-o desde que o olhara lá de cima!