Aquela era mais uma das manhãs, típicas de outono, nas ruas sujas e estreitas de Cokeworth. Ainda se reconstruindo sobre os escombros da Segunda Guerra, o distrito de Birmigham, nada mais era do que um cenário sombrio de seu apogeu na época da Revolução Industrial.

Fábricas fechadas, operários desempregados andando pelas esquinas, gangues de ciganos com suas navalhas esperando por uma briga, prostitutas, bêbados, drogados, adolescentes sem futuro... uma massa de rostos sem identidade que se misturavam à fumaça das chaminés e a neblina constante.

Em outras palavras, não era nada mais do que um lugar pobre e abandonado pelas autoridades. Um lugar em que as esperanças eram, constantemente, soterradas pelo desalento.

Caminhando a passos lentos, dobrando as esquinas sem qualquer pressa, observava o céu cinzento. Parecia que até o sol se escondia e não desejava ser obrigado a iluminar aquele lugar fétido, em que a falta de saneamento destruíra e corrompera a pequena vertente de água.

Ao ver que algumas pessoas reparavam na sua presença, voltando seus olhares curiosos para descobrir quem se tratava, sua postura mudou. Se esgueirando pelas ruas, como um vampiro evitando os feixes de luz, o homem de vestes e cabelos negros acelerara os seus passos... enquanto, uma certeza, se restabelecia em sua mente: caminhar no Spinner`s End era viver em uma verdadeira montanha-russa.

Os perigos se escondiam nos lugares mais improváveis e era necessário olhar para todos os cantos. Ninguém que transitava por aquela região estava seguro e todo o cuidado era pouco.

A qualquer momento, naquelas ruas, qualquer um podia ser baleado ou levar uma facada pelas costas sem o menor motivo. Principalmente, quando à espreita estavam todos os tipos de tentações disponíveis a quem quisesse se entregar. Tudo parecia ser bem mais interessante do que a dura realidade que os seus moradores enfrentavam... era difícil viver uma vida miserável e sem esperanças.

Respirando fundo, pensou que, ocultamente, deveria existir alguma espécie de romantismo em viver perdido em erros. Observando o seu entorno antes de prosseguir, refletiu por alguns instantes sobre a sua própria vida. Em qualquer momento de sua existência, sempre odiaria aquele lugar. Detestava as pessoas e as lembranças que se formavam a cada passo dado.

O problema de não poder fugir dali e fingir que seu passado não existia mais, era o fato de que o tempo o matava aos poucos... não existiam alternativas para resolver o seu maior problema. Não teria como escapar de sua obrigação de estar ali e mudar tudo o que lhe incomodava.

Não havia outra forma de refazer tudo sem encontrar o menino. Precisava conversar com ele, antes que tudo se perdesse e a sua existência se tornasse nada... antes de sucumbir por completo. Antes que o tempo o torturasse, o lembrando que não era nada mais do que um mero mortal, uma vítima de suas próprias fraquezas. Os deuses rolariam os dados lançados e o matariam.

Flashbacks rondavam a sua memória vertiginosamente, o fazendo parar na última esquina e respirar fundo. Ao virar a última esquina avistara a casa em que vivera durante toda a sua vida. O lugar onde se acostumou a sofrer pela tristeza constante e ser perseguido por demônios em noites agitadas.

Era muito mais difícil enfrentar os seus próprios medos do que imaginava ser... aquela era a sua casa, mas nunca havia sido o seu verdadeiro lar. Nunca se sentira bem-vindo ali e sempre se percebera como um intruso.

Segundos, minutos, horas, dias, meses e anos. Tudo completamente perdido para o receio, as incertezas e a tristeza. Um tempo precioso. Tão rápido e único, em que vira a sua juventude se perdendo injustamente como areia entre os dedos.

Fechando os olhos, refletira que a vida sempre fora algo muito maior do que apenas destruir, rebaixar, brigar... sequer lembrava quando havia sido ensinado a odiar com tanta força. Quando se transformara em uma espécie de monstro?

Estar ali deveria ser os primeiros passos para um recomeço... se houvesse tempo suficiente para uma segunda chance. Talvez, o rancor e a mágoa profunda desaparecessem. Talvez o ódio que o consumia, o engolisse definitivamente e o destruísse internamente. Talvez, os seus piores pesadelos se desfizessem ao sabor do vento.

Sempre teria em seus pensamentos inúmeras perguntas sem qualquer resposta... sempre seria alguém confuso por conta da insegurança. Quem sabe um dia venceria a si mesmo?

Reorganizando as suas ideias, encarou novamente a casa. A construção parecia muito mais velha do que recordava. A arquitetura vitoriana destruída pelo tempo e a ausência de reparos, cercada pela miséria e pela solidão, traziam à tona o pior de suas memórias.

Um eterno cenário de fome, de sofrimentos incontáveis e, principalmente, de violência e de noites intermináveis no mais puro terror. Tudo o que mais desejava era esquecer dos traumas e sofrimentos vivenciados ali.

Mais alguns minutos pensando no que faria caminhou em direção à casa. Ainda incerto do que e de quem encontraria, bateu à porta e aguardou para ver se alguém lhe atendia.

Foi então que recordou de sua mãe, de seus longos cabelos pretos e olhos castanhos. Olhos tão escuros e profundos que, facilmente, poderiam ser confundidos com dois schorls redondos e brilhantes. Como gostaria de ter dito que a amava...

Jamais compreenderia como uma mulher inteligente e forte se submetera àquele horror... àquele casamento falido e fadado à violência e as constantes humilhações. Tudo o que mais queria era salvá-la da morte cruel nas mãos daquele monstro. Levá-la para longe, para que pudesse viver em algum lugar digno.

Mas, o destino dela, estava muito além de suas próprias vontades. Uma mudança daquelas alteraria coisas inimagináveis. Quem se tornaria se mudasse tudo definitivamente? O que fazer?

Com o tempo se arrastando, sem obter nenhuma resposta, decidiu entrar cautelosamente. Era necessário manter a calma e não se abalar por tão pouco. Os corredores vazios deixavam o ambiente pesado, parecendo que a casa estava desabitada há anos e seus moradores haviam desaparecido como se tivessem sido alvo ou usado o Evanescet. Aquilo o preocupava... a ausência sempre significava um péssimo sinal.

O silêncio mórbido e a ausência de presença humana, longe de ser parte dos contos de fadas com suas idas para reinos distantes, significava morte. Na melhor das hipóteses, agressões, medo ou abandono eram os motivos para a estranha quietude que se projetava por aquelas paredes.

Em qualquer uma dessas possibilidades, sua cabeça doía e sua mente girava em busca de uma maior concentração no que faria. Mesmo que não quisesse admitir, sentia um pouco de medo e receio do que ainda teria de enfrentar.

Discretamente, movendo a ponta dos dedos, optou por não usar a varinha. Não arriscaria que alguém estranho o visse fazendo magia... só o faria quando tivesse certeza de que não estava sendo alvo de bisbilhoteiros.

Entrando no último corredor, do andar inferior, olhou para os lados atento. Buscando por algum ruído que denunciasse a presença de alguém.

Percorrendo cada um dos cômodos, com passos largos, analisava atentamente cada detalhe até ouvir o barulho de algo caindo nos fundos... era o sinal que tanto esperava. Lá estava sentado quem procurava.

Quieto e sério, o pequeno Severus Snape, o encarava... queria entender o que aquele estranho fazia ali. Por que motivos ousara invadir a sua casa, quando não era segredo que seu pai era um homem perigoso?

Cuidadosamente, cruzando a porta, entrou no minúsculo pátio. Semelhante a um depósito de lixo, móveis quebrados, cacos de vidro e outras coisas se acumulavam pelos cantos e os ratos corriam livremente. Sem tirar os olhos do menino, prosseguiu, calmamente em sua direção.

Desviando os olhos, Severus ficou observando o muro, pensativo. Havia nele um misto de curiosidade e aversão. Um sentimento forte de raiva prestes a explodir... era uma pequena fera acuada, esperando o instante certo para que pudesse se defender do invasor.

Dando meio sorriso, ao ver aquele semblante contrariado, parou como se nada estivesse acontecendo. Conhecia bem aquele olhar e aquelas expressões de fúria.

O significado indescritível do ódio em expansão eterna... até nas suas mais remotas lembranças, se recordava de encarar as pessoas daquela forma. Nunca deixaria de agir exatamente daquele jeito. Devia estar no seu sangue. Quem sabe amasse ser um animal perigoso?

Mesmo que negasse, por orgulho, sempre se vira como um verdadeiro cachorro vira-lata. Constantemente chutado por alguns, responsabilizava o mundo inteiro pela selvageria a qual era exposto. Na verdade, tamanha violência, apenas o ajudara na aquisição do prazer de morder os outros com palavras ácidas. Machucaria quem ousassem lhe estender a mão.

Sempre desconfiara daqueles que apresentassem boas intenções e afastava os que se aproximavam... perto demais, poderiam colocar em risco as proteções dos muros que construiu em torno de si. Se fechar o deixava mais seguro e, por mais estranho que parecesse, sua desconfiança era o que o mantinha vivo.

- Dia... os seus pais estão em casa? Você saberia me dizer a que horas eles voltam? – cruzou os braços junto ao peito o olhando do alto.

Fingindo indiferença, mantinha uma postura grave, arrogante e fria. Tentando impor o máximo de respeito possível, criava a expectativa de que Severus percebesse, rapidamente, o que estava acontecendo.

Mesmo ainda sendo pequeno, já poderia ser considerado inteligente e capaz, o suficiente, para compreender com quem estava falando. Era apenas uma questão de tempo e de fazê-lo reparar nos detalhes.

- Eles não estão e eu não sei quando voltam! O senhor pode ir embora – respondeu emburrado e ríspido.

Também cruzando os braços e encarando o homem parado à sua frente, evitava ao máximo demonstrar o receio que sentia naquele momento. Estava sério e preocupado. Não sabia o que esperar daquele estanho que se empenhava tanto em o deixar amedrontado... o pior era saber que estava obtendo êxito. Sobretudo, por não conseguir entender as razões que o faziam se parecer tanto com o seu pai.

- Interessante... eu não me lembrava de ser um menino com a língua tão afiada aos 7 anos. Embora, eu apenas o veja como uma criança chorona e medrosa – Snape ergueu uma das sobrancelhas, sarcasticamente.

Renovando o sorriso irônico, que não lhe retirava qualquer traço soturno, se divertia com a situação. Particularmente, estava começando a achar tudo aquilo muito interessante e gostava de impor medo aos outros.

Na arte da guerra, reis deveriam optar pelo medo e não pelo amor... embora estivesse buscando fazer o contrário. De qualquer forma, a reação daqueles que se viam incapazes de se defender sempre lhe chamara a atenção... um dia esteve nessa situação de impotência profunda e se revoltara.

Foi assim que descobriu um dos maiores segredos da vida: as pessoas tendiam sempre a revelar o seu pior, ou o seu melhor, nos momentos de desespero. Tudo dependeria da índole da vítima.

- Como disse? – Severus perguntou se enchendo de coragem.

- É isso mesmo que escutou. Tenho certeza de que seus ouvidos funcionam bem e você não é tolo – rosnou o puxando pelo braço para que se levantasse do chão imediatamente.

Aquilo deixou Severus confuso e um pouco perturbado. Sua coragem de afrontá-lo se desfez, enquanto tentava se soltar a todo o custo. Sentindo que as coisas ficavam cada vez mais estranhas e perigosas, a cada minuto que passava, já temia pelo pior.

Morreria ali sem saber por quais motivos... certamente, Tobias arrumara alguma briga em um bar e estavam em busca de vingança. Como saber exatamente o que tudo aquilo se tratava? Absolutamente nada era claro naquele momento.

- Me solta... eu não fiz nada – sussurrou.

- Pare de choramingar e de agir como um completo imbecil! Você tem uma compreensão excelente para a sua idade e já deve saber muito bem quem eu sou – enfatizou.

Com o seu timbre de voz ainda mais carregado, sua expressão foi ficando cada vez mais sisuda. Não tinha paciência para aquilo e não suportava a ideia de ver a si mesmo sendo fraco.

O sacudindo um pouco para que parasse de se debater tanto, Snape se abaixou para falar com Severus o olhando nos olhos. Evitaria que ele se machucasse agindo daquele jeito e não permitiria que esgotasse a sua já tão escassa paciência. Sobretudo, quando existia uma determinação silenciosa e obscura operando em ambos os lados.

- Quem é o senhor? O que faz aqui? Vai embora e me deixe em paz! – com lágrimas se formando nos olhos, tentou se afastar, mais uma vez, em vão.

Inexplicavelmente, a sua magia parecia não funcionar. Nada do que tentasse repelia aquele homem de perto. Tudo falhava e não teria como sair dali.

Quanto mais os minutos se passavam e se via aprisionado, mais considerava que se tratava de alguém bastante perigoso e hostil. Talvez algum bruxo que odiasse mestiços, pensou. Como se salvar? Precisava de um bom plano se ainda quisesse permanecer vivo e se libertar definitivamente.

- Na maior parte do tempo, eu sou o seu pior inimigo. Também posso ser o seu pior pesadelo e o seu juiz mais cruel. Em todo o caso, como você não tem amigos, eu sou uma das pessoas mais sinceras que vai conhecer... por isso, decidi vir até aqui e falar com você antes que comece a fazer besteiras com a sua vida – Snape explicou o soltando para que pudesse pensar no que acabara de escutar.

Caminhando para perto do muro, Severus pensava nas mais inúmeras hipóteses possíveis. Nada era claro e sua mente ficava ainda mais confusa. Ao mesmo tempo, Snape o examinava com uma expressão de desgosto. Se questionava a respeito de quando se tornara observador e perspicaz. Uma quase repulsa, que notava ser recíproca, se apoderou de suas ponderações. Não conseguia explicar as suas razões, mas, por diferentes motivos se via incomodado com toda aquela situação em que se encontrava.

No mais absoluto silêncio, numa atitude quase sepulcral, ambos permaneceram por minutos se encarando. Sem medir quanto tempo se passara, se mantiveram assim, até que os olhos de Severus brilharam com uma luminosidade intensa de assimilação.

Seu rosto expressava surpresa e incredulidade com o que acabara de imaginar. Definitivamente, não seria possível que estivesse acontecendo... não com ele que pedira tanto por respostas.

Piscando algumas vezes, como se reorganizasse as suas ideias, deu alguns poucos passos para frente. Encostando no braço de Snape como se o investigasse e quisesse ter certeza de que era real, ficou ali parado.

Mesmo que a dormência em seu pulso lhe desse algumas respostas, ainda achava que tudo não passava de um sonho. Era difícil de acreditar... mesmo que não fosse impossível de acontecer no mundo bruxo. Aquele era um dos mais estranhos acontecimentos em sua vida e o pegara completamente de surpresa.

- Não sabia que eu seria tão alto e parecido com ele – Severus comentou baixinho.

Ainda um pouco desnorteado com tudo aquilo, olhava novamente para a expressão soturna de Snape que agora, o encarava com um sorriso quase maquiavélico. Era o que precisava para começar a revelar a verdade. Não toda e nem imediatamente. Mas, o essencial para apresentar quais eram os seus propósitos para estar ali. Nada era por acaso e precisava dizer com certa urgência.

- Vejo que, finalmente, entendeu. Sinceramente, não lembrava de ser tão burro e lerdo... é uma vergonha você parecer com aquele chorão do Black, sempre obtuso para compreender as coisas – bufou.

Revirando os olhos com um ar de completa reprovação, deixou o menino ainda mais perdido. Não fazia a menor ideia de com quem estava sendo comparado naquele momento e, muito menos, porque toda aquela censura. Não era tão simples quanto queria que fosse... quem imaginaria vivenciar uma loucura daquelas?

- O senhor me desculpe, mas isso não é possível! Só acontece nos quadrinhos e nos filmes – exclamou incrédulo com o que constatara e o que reprimia naquele instante.

Aquilo não fazia qualquer sentido e era, terminantemente, assustador. Nem mesmo em suas maiores ilusões, em que se enxergava como um bruxo poderosíssimo, era possível vivenciar uma situação como aquela. Era algo surpreendente e ia muito além do que imaginava ser capaz.

Transpondo todos os seus dons e talentos mágicos, desafiava as leis do tempo e o seu natural poder imaginativo. Devia ter algum motivo muito sério por trás de sua atitude. Sua enorme sagacidade o impediria de fazer qualquer bobagem ou agir impensadamente. Pelo menos, era o que queria acreditar.

- Você já é capaz de assimilar que bruxos podem fazer isso. Pois bem, creio que já possua a precisão que eu procuro para colocar todos os meus planos em prática – falou desdenhosamente.

Dando de ombros e sendo o mais arrogante possível, gesticulou displicente para dar início as suas explicações. Aquela tarde seria bastante longa... e dela dependia muitas coisas que ainda estavam por vir. Estava sendo levado de volta ao começo ou ao que acreditava ser o melhor ponto para a sua nova partida.