Independente do fato de que, Severus, fosse o seu passado ou que ele representasse o futuro daquela criança, não deixaria que tentasse enfrentá-lo. Se conhecia bem o suficiente para saber o quanto podia ser ardiloso quando queria alguma coisa. Principalmente, quando estava disposto a usar de toda a sua astúcia até conseguir as respostas que deseja ouvir.

Sua curiosidade sempre estivera interligada com a sua ambição, transformando a própria sabedoria em sua maior destreza para atingir os seus objetivos. Aquele era o lobo que constantemente alimentava dentro de si... e seria o que impediria sua ruína. O motivo que fazia com que sua razão sempre o orientasse a vencer a si mesmo e os seus impulsos destrutivos.

- Senhor? Eu posso fazer uma pergunta? – ansioso, Severus o olhava com certa expectativa.

- Já fez duas em sequência e não disse o que quer saber – respondeu ríspido.

- Eu vou ser um bruxo das trevas? Porque para conseguir fazer o que o senhor fez, só sendo um... isso é ótimo! – sua expressão se modificou para uma profunda admiração de si mesmo.

Estava orgulhoso e maravilhado com as ideias que agora transitavam em sua mente. Principalmente, quando a sua promessa de futuro o levaria para muito longe daquele lugar.

Embora não desejasse que seu coração fosse enterrado longe dos penhascos em Whitby, se distanciaria o máximo que pudesse de Birmingham. Se possível, viveria em algum povoado bruxo ou em Inverness... viver próximo às montanhas era uma ideia agradável de se ter, sobretudo, pelo fato de que respiraria ar puro e andaria livremente.

Ainda pensativo, Severus mantinha o seu olhar fixo em Snape, atento a tudo o que dizia. Compreendendo o tamanho de sua força, começou a ponderar se os seus impulsos e reações seriam um símbolo de coragem perante à fraqueza dos outros.

Quem sabe um dia poderia matar Tobias e viver uma vida feliz? Talvez aprendesse que não poderia fazer muitas coisas... e não existisse nada mais do que aquilo que sempre lhe fora mostrado.

- Sim. Contudo, não se deixe levar pela mágoa e o rancor. Isso só vai servir para que subverta completamente o que de fato deseja – avisou sem demonstrar qualquer ênfase ou emoção naquelas palavras.

Não daria espaço para contestações desnecessárias, principalmente, quando pensava que se conseguira o impossível, poderia ir muito mais longe. Não viajara no tempo para ficar conversando... mudaria a si mesmo. Se transformaria na sua própria fortaleza e reorganizaria todos os seus passos para que nada falhasse.

Focado, seguiria firme rumo aos seus objetivos sem se deixar abalar por coisas pequenas. Quanto tempo perdera com migalhas... por que sempre se deixava dominar por sentimentos que só o enfraqueciam? Finalmente, seria invencível. Nada mais seria capaz de o ferir.

- Por que eu fiz isso? – Severus se mostrava bastante interessado em saber quais eram os motivos para se arriscar tanto.

Estava motivado a compreender e a dominar todos os detalhes, cada particularidade... era fantástico que tudo aquilo fosse real. Sobretudo, quando a sua vida, até então, poderia ser definida como algo soterrado na merda e sem qualquer perspectiva de futuro.

Seu destino se mostrava glorioso e lutaria, chegando até as últimas consequências, por ele. Por que não ir mais além?

- Você quer saber por que se tornou um bruxo das trevas? - Snape o olhou sem entender a que lugar específico queria chegar com aquela pergunta.

Tentando interpretar os silêncios e os não-ditos naquele questionamento, aparentemente inocente, se perturbou um pouco. A sua retidão e capacidade de ficar cego diante das suas próprias ideias era a sua maior fraqueza... porém, como dizer isso para o menino?

Também seria difícil explicar outros detalhes, principalmente, quando não era tão versado quanto as mulheres da família Black para detalhar minuciosamente todos os desdobramentos da magia das trevas. Ainda mais, as que envolviam sangue, suor e sexo... assunto que o deixava bastante desconfortável de falar tão abertamente.

- Não... não é isso, senhor. Não mesmo! O que eu quero saber é porque eu voltei no tempo? – seus olhos de obsidiana pareciam adquirir um brilho esperançoso e maravilhado.

Estava empolgado e criava uma grande expectativa de que ouviria a si próprio afirmar, enfaticamente, que fizera aquilo para tirá-lo dali. Sua vida mudaria... não passaria mais fome, humilhações, espancamentos e frio. Esqueceria da miséria do Spinner`s End completamente e seguiria em frente. Porém, não era aquilo que teria... as coisas não eram tão fáceis.

- Você lembra que, nos quadrinhos, a Lois Lane morre em um acidente de carro? – perguntou, tenso, aguardando pela resposta.

- Quando o Superman gira a Terra ao contrário? Sim, eu lembro. Mas, eu não entendo uma coisa... o que isso tem a ver com o que está acontecendo? – o olhou com dúvida.

- Exato, é quando ele faz com que o tempo volte para salvá-la. Quanto ao que nos diz respeito... – antes que completasse a frase, foi interrompido por Severus que estava extasiado.

- Eu vou voar também? É sério, senhor? – questionava quase pulando de felicidade.

Tentando controlar os seus sentimentos, Severus, sentia que pela primeira vez tudo estava dando certo na sua vida. Se deixando levar pelas emoções, permitiu que as palavras e os questionamentos o abandonassem por alguns segundos. Finalmente, as mudanças começavam a ser reais e estavam muito além dos textos e das frases calculadas... poderia abandonar as suas indecisões para, no futuro, comandar o mundo inteiro.

- Vai! Contudo, eu peço para que não seja idiota o suficiente para usar o S ridículo no peito. Nós nos vestimos de preto, somos maus... na verdade, somos horríveis, desagradáveis e grosseiros. Só temos o mínimo de educação com quem gostamos. Compreendido? – disse massageando as têmporas e soltando a respiração pesada.

Snape sentia que já estava perdendo completamente a paciência com aquela criança que o enchia de perguntas. Queria contar tudo de uma só vez e sair logo dali. Daria um fim a todo aquele sofrimento que sentia e encerraria a própria existência. No entanto o que faria?

Olhando para Severus, ali na sua frente, tão entusiasmado com tudo o que ouvira até aquele instante, ficou confuso. Não se lembrava de ter algum dia sido tão feliz com uma mera possibilidade. Principalmente, quando desde cedo soube que a luz nunca o encontraria.

- E cada passo que dou, eu me fico mais distante do céu – sussurrou pensativo.

Como negar os rasgos de esperança e a promessa de liberdade? Ainda mais, quando aquele menino mal compreendia que além do horizonte não havia nada... a vida não passava de uma sucessão contínua de injustiças e pesares.

Dias de luta dolorosos e constantes, sem que houvesse piedade ou instantes em que pudesse parar e ficar calmo. Viver nada mais era do que se arrepender dos erros, ficando muito distante do que Severus ousava sonhar naqueles minutos.

- Até parece que eu vou agir como um completo imbecil... – revirou os olhos com uma expressão de nojo.

Encarando Snape, cruzou os braços, decidido a mostrar que estava convicto do que dizia. Não passara tanto tempo decifrando enigmas ou se dedicando aos estudos para ser tratado como um tolo. Seu orgulho não admitia que o vissem desse modo tão ofensivo... era um insulto à sua inteligência.

- Não é o que os amigos da ruiva, que você começou a observar, vão pensar a seu respeito. Inclusive, vão chamá-lo de Snivellus, por conta das suas roupas, do seu cabelo sujo e, principalmente, porque você não passa de um menininho arrogante, pobre e metido – ironizou com rancor na voz.

De um jeito insolente e presunçoso, manteve a sua postura, enquanto falava. Detestava recordar aquilo, sobretudo, fazer uma autocrítica daquela forma tão dura. Mas, era necessário.

Severus merecia saber de toda a verdade, por pior e mais dolorosa que fosse. Era jovem demais para se iludir por tão pouco e por alguém que não o merecia.

- Eles são um bando de bostas... e isso não vai ficar assim – afirmou vingativo.

Sentindo raiva, socava as próprias pernas para conter a agressividade e bufava. Precisava controlar a sua magia, evitando que explodisse a qualquer instante e causasse algum tipo de dano. Não poderia se denunciar por conta da instabilidade de seus sentimentos, por maior que fosse o rancor experimentado ao escutar aquelas palavras.

- Lily vai os apoiar e sempre irá o encher de críticas quando você fizer alguma objeção ao que as "pessoas maravilhosas" estiverem fazendo. Entenda que não haverá uma conversa entre vocês dois que não terminará com algum tipo de censura. Para ela tudo o que você fizer ou disser será um horror, será ofensivo ou qualquer merda que ela decidir que for na hora – garantiu.

Diante do silêncio de Severus, Snape decidiu dar continuidade ao que falava. Não permitiria que a história se repetisse e ele se perdesse em um sonho sórdido e sombrio. Uma projeção de que havia encontrado uma grande amizade quando, na verdade, era alguém que estava apenas o usando de escada para benefício próprio.

- Ela irá demonstrar afeto, enquanto o considerar útil aos propósitos dela. Lily é mais ambiciosa do que imagina e, quando o enxergar como obstáculo, o descartará como lixo... o pior é que se utilizará de algo muito baixo para ter a desculpa necessária para fazer isso e sair ilesa – afirmou soltando a respiração pesada.

- O senhor está enganado... ela não é assim! Lily é uma menina bondosa, inteligente e bonita. Ao contrário daquela irmã horrorosa que ela tem – se indignou com o que acabara de escutar.

- É mesmo, gênio? Vou lhe contar mais um segredo... você é especial, Lily é apenas uma menininha boba e comum. Além do mais, meu pequeno Kal-El, não esqueça de que eu sou você no futuro... logo, sei muito bem com quem você quer começar a se relacionar. Lily Evans não será sua amiga por mais que se esforce. Os interesses dela são outros – afirmou em um tom reflexivo, sem querer dar continuidade àquele assunto.

- Se não é ela... quem é a "minha Lois Lane", então? – perguntou, colocando as mãos nos bolsos da calça, enquanto andava de um lado ao outro inconformado.

Na verdade, Severus estava furioso. Tal qual uma pequena raposa aprisionada em uma armadilha, acuado e nervoso, queria acusar a todos por sua desgraça momentânea. Ainda era jovem demais para perceber que era o único capitão de sua alma e, aquela menina, seria apenas uma estrada para a própria tragédia.

- Hermione... eu a conheci como Hermione Granger, no entanto, sei que o seu nome verdadeiro é Hermione Black. É uma história muito longa para que eu conte nesse momento. O importante é como ela será registrada agora e tudo isso será reconstruído – respondeu pensativo.

- É só por causa dela que eu girei o globo terrestre ao contrário, usando um Time-Turner dos Malfoy e voltei a esse maldito ano de 1967 – a dor em seus olhos era perceptível e se sentia como o único responsável por toda a desgraça que sucedera na vida que abandonara.

Pesando muito bem todos os riscos e como as mudanças que faria lhe custariam um alto preço, Snape respirou fundo. Declarara guerra abertamente ao tempo, vendo os ponteiros lhe desafiarem, como um cadáver revidando a injúria sofrida.

Chronos devoraria mais um filho rebelde... o destroçaria aos poucos se divertindo com o seu desespero. O faria se sentir novamente reprimido até se tornar uma sombra do próprio desejo e de sua solidão. Não havia nada que o impedisse de realizar tamanha barbárie.

Snape se viu, mais uma vez, passando uma temporada no inferno. Caminhando por entre as brasas, bebendo da fonte do esquecimento, mesmo sendo um filho da Terra e do Céu... mas, não se abalaria. Faria o que fosse preciso e pouco se importava. O prêmio maior estava em ter a sua rainha de volta.

A sua dor, vergonha e ódio de si mesmo eram sentimentos quase palpáveis de tão nítidos. Era uma culpa que teria de ser apagada como uma chama em meio a um temporal para que pudesse se libertar... no entanto, não sabia se algum dia conseguiria, quando todos se negavam a olhar dentro de seus olhos.

- Dizem que os bruxos enlouquecem, quando mexem com o tempo... pelo menos é o que a minha mãe sempre fala – Severus disse esboçando preocupação.

Mesmo que estivesse tenso e curioso, por conta da última parte narrada, não faria grandes perguntas. Achou melhor que, naquele momento, se mantivesse em silêncio para que Snape pudesse se recompor. Quando fosse mais oportuno, pediria para ver como era essa menina que fez com que, ele mais velho, voltasse no tempo e quisesse alterar tudo. Que tipo de sentimento o impulsionava a cometer tamanha loucura? Seria amor?

Na sua percepção, ainda infantil, aquilo parecia muito mais com um tormento interminável. Uma inexplicável insanidade que projetava para a existência de algo a mais. Já se conhecia para saber que, os impulsos de seu gênio, eram fortes e torturantes o suficiente para o enlouquecer em um momento de fraqueza.

Sentimentos muito opressivos, duros e sufocantes para já começarem a enchê-lo de rancor contra todos aqueles estranhos aos quais, prematuramente, acusava por sua devastação. Mais uma vez, precisava conter toda a raiva que voltava a crescer em seu peito...

Ainda andando de um lado ao outro, pensava em toda a espécie de vingança futura, denotando o seu caráter soturno e a sua natureza infernal. Mesmo que Snape negasse, aquela sabedoria contraditória e destrutiva sempre estivera ali, rondando para aparecer quando houvesse chances de se revelar.

- Eileen está correta... só que, você, eu tenho certeza de que não ficará louco. Não há tempo para esse tipo de bobagem ou para ficarmos conversando feito dois velhos no final da vida. O que importa é que eu irei lhe mostrar tudo o que aconteceu e quem nos tornamos no futuro de onde eu venho – deu um sorriso triste, fazendo um gesto para que o menino se aproximasse.

Com uma saudade profunda lhe apertando o peito, ao lembrar do rosto de Hermione, sentiu que, finalmente, seria capaz do ato sublime de colocá-la antes de si. Lágrimas lhe embaçaram os olhos e nublaram a sua visão, naquele instante. A dor acabou deixando tudo mais claro. Tudo estava acontecendo por conta de sua vergonha em ter falhado e sido tão egoísta... se não fosse fraco, tudo teria sido diferente.

- Penso que, como se trata da minha própria vida, contando tudo a você, eu posso refazê-la. Assim torno as coisas muito melhores no futuro – afirmou com a voz embargada.

A tristeza, por ter perdido quem tanto amava e não ter qualquer garantia que a encontraria novamente, ainda lhe dominava. Novamente, se enxergava envergando o mundo inteiro para escalar novos rochedos.

Outras dificuldades que só o faziam crer que nunca nada seria fácil ou que teria o direito de ter um pouco de paz. Mas, por que ainda se agarrava às esperanças de que superaria o verdadeiro purgatório que era a sua vida e atingiria o Éden? Se fechasse os olhos, só enxergava as paredes lisas em brasas o desafiando a vencê-las.

Aquilo só mostrava o quanto estava enterrado em um buraco escuro, sendo soterrado pouco a pouco... apenas a sua astúcia, suas aspirações, seus truques e desejos mais sinceros poderiam ser capazes de ajudá-lo a pairar como um morcego sobre os fogos corrosivos. Precisava lutar para sobreviver.

Entretanto, parecia que jamais o tirariam do seu exílio particular. Nunca o livrariam dos demônios que já habitavam em sua alma. Do que adiantaria conquistar o mundo inteiro se continuava se sentindo perdido e vivendo em erros? Se já havia perdido em algum momento toda a sua essência?

- De que jeito o senhor vai fazer isso? – perguntou com uma estranha percepção da crescente inquietude e mágoa dentro do seu coração.

Ainda não possuía os seus poderes totalmente desenvolvidos, entretanto, os fortes sentimentos alheios já eram percebidos como se fossem uma parte de si. No caso do padecimento que Snape expressava tão abertamente no olhar, era ainda pior e mais intenso. Era algo que lhe rasgava a alma.

O sufocando, o deixava quase transtornado e sentindo uma vontade imensa de chorar por tamanha tristeza. Via ali que o seu único destino era crescer envolvo ao sofrimento e a desgraça absoluta. Jamais seria completamente feliz... sempre algo importante ficaria pelo caminho e o deixaria incompleto.

Estava irremediavelmente condenado, tal qual um náufrago lutando contra os estrondos do mar tempestuoso e do prazer destruidor, continuava se debatendo. Os seus demônios, travestidos de lobos, não o deixariam em paz. Nunca parariam de uivar em seus ouvidos melodias assustadoras... não o abandonariam, quando o seu maior divertimento era o de destroçá-lo completamente.

- Pare... eu não permiti que fizesse isso! Não tente se fazer de inocente, seu moleque arruaceiro. Acha que é capaz de fazer jogos comigo? Que testaria livremente a sua legi mentis invadindo os meus pensamentos para descobrir se eu digo a verdade ou não? – seus olhos semicerraram encarando Severus indo em sua direção.

- Eu... eu não estava fazendo isso, senhor – disse assustado.

- Quem sabe eu revelo algo que insiste tanto em esconder dos outros? A sua maior vergonha e medo... – continuou o afrontando e o olhando ameaçadoramente.

- O quê? – perguntou, como um tolo que insiste em ser sensato, sem saber o que esperar.

- Que aquele bosta do Tobias é meio cigano, como a maior parte dos canalhas que vivem aqui – argumentou dando mais alguns passos.

Severus, o vendo tão transtornado, se encolheu um pouco. Não se espantaria se levasse um tapa e se ressentia com aquela mera possibilidade.

- Infelizmente, os olhos, os cabelos e essas roupas esfarrapadas denunciam quem é aos mais atentos. Embora você não acredite, creia que somos muito melhores do que esses detalhes e aprenda a aceitar quem é – disse respirando fundo para se acalmar um pouco.

- Sua contradição é a sua força, sua fonte de progresso. Você é confuso por natureza, atrai e repele... ama e odeia, deixa que a razão e a emoção entrem em um atrito constante. Tudo isso são impulsos necessários para a sua existência. Principalmente, quando as suas feições já o denunciam como uma criatura indômita – ressaltou ainda com o mal humor que o regia.

- Qual é a sua idade, senhor? – questionou mudando o rumo da conversa.

- Eu tenho 37 anos – respondeu brevemente.

- E Hermione? Quantos anos ela tinha? Ela se importava com a nossa ausência de pureza de sangue? Como ela era? – foi perguntando inseguro, chutando a terra abaixo dos seus pés.

Coçando a cabeça, confuso, como se buscasse organizar os seus pensamentos, olhava para Snape, esperando que ele lhe ajudasse a entender aquela confusão toda.

Ainda não conseguia assimilar porque a tristeza o dominava também... com tanta força que o obrigava a morder os próprios lábios para que não transbordasse. O que o incomodava mais era ver o quanto ficava perdido e sem saber como reagir cada vez que ouvia o nome dela ser citado.

Pouco a pouco, analisava como os sentimentos dos dois já começavam a ser partilhados tão solidamente... com uma intensidade assustadora. Como se a barreira temporal que ainda os distanciava não existisse mais.

De sua parte, Snape, compreendia o quanto era um fardo pesado para uma criança todas aquelas informações. No entanto, não achava uma alternativa que fosse mais eficaz. Não havia o que fazer... teria de continuar até o fim para que o seu plano desse certo.

- Hermione tinha 18 anos quando morreu. Ela era uma pessoa inteligente e honesta... embora fosse uma peste e muito teimosa, quando criança, ela era uma menina bastante doce. Eu nunca havia conhecido alguém assim e, em outras circunstâncias, certamente teríamos sido apenas amigos – pausou, reflexivamente, olhando para o céu.

- Mas, as coisas foram acontecendo e, quando eu percebi, me vi sendo capaz de me ajoelhar diante dela, se ela assim o quisesse. Eu a amava mais do que tudo... Hermis pouco ligava para a minha ascendência ou para esse lugar horrível, mesmo sendo uma menina rica. Ela era a minha rainha, sabe? Quando eu a via, era como se eu estivesse diante da Polaris e realizasse o meu maior sonho. Tudo parecia, finalmente, funcionar – concluiu em um tom de voz confessional.

Com os olhos novamente marejados, a dor se tornava ainda mais insuportável de carregar. Precisava desabafar, compartilhar aquele sofrimento, para conseguir as forças necessárias e a coragem para prosseguir.

- Entendo... – Severus baixou a cabeça, dando um leve tapa no braço de Snape, como se quisesse consolá-lo.

Estava chateado com o fato de que aquela menina tivesse falecido. Mesmo que não a conhecesse, era angustiante constatar que morrera tão jovem... era alguém com um futuro imenso pela frente para que tudo fosse encerrado de forma tão abrupta. O pior é que tamanho sofrimento indicava que havia sido uma morte bastante cruel.

- Caso queira saber, ela gostava da nossa sobrancelha grossa e dos dois pixies que temos no lugar dos olhos... se eu os fechar agora, eu ainda posso a ver encantada os encarando. Ela parecia sempre analisar como eles se escondiam. Como se espreitavam desconfiados de tudo ao seu redor e como se agarravam para impedir que as janelas da nossa alma se descortinassem para alguém – falou melancolicamente daqueles detalhes.

- A minha Hermis foi a primeira a notar isso e sempre sorria ao dizer que meus pequenos demônios voltavam para espionar cada detalhe, sem se anunciarem – os dois sorriram ao mesmo tempo com aquela constatação sincera.

Como Severus permanecia em silêncio, se mostrando bastante atento ao que ouvia, Snape decidiu dar continuidade ao seu relato. Achava importante apresentar os detalhes mais relevantes, antes de narrar o todo sem esconder nada.

- Eu inventei uma série de apelidos para expor todo o amor que sentia por ela. Embora tenha sido um casamento forçado e que os sentimentos tenham crescido por conta do convívio, eu me sentia extremamente grato por ser digno de afeição. Principalmente, pelo dom que ela possuía de fazer com que os meus pequenos pixies abandonassem o mau humor e se suavizassem um pouco – seu olhar se perdeu em meio às memórias mais íntimas do que relatava.

- A única no mundo que os transformava em seres inocentes e confiantes... roubava essa eterna carranca de vira-lata injustiçado e obscuro. Aos olhos de Hermione, eu não era um homem malvado e indigno. Ela me enxergava como um verdadeiro príncipe e me tratava com respeito – por mais que segurasse, deixou escapar algumas lágrimas de seus olhos.

Com as sobrancelhas caídas pela decepção e o pesar, Severus, o olhava fixamente. Estava mexido de um jeito bastante profundo, ao qual Snape sabia bem o significado... ele queria ser amado.

Permanentemente, sonhava com o dia em que encontraria uma pessoa que o visse como um ser humano e não como um lixo. Hermione era o universo a ser desvendado e ele a perdeu. Como resgatar essa promessa de um caminho bom e justo?

- Hermione... ela o amava e o que aconteceu é muito triste, senhor. Eu sinto muito – soltando a respiração pesada, se sentou ao lado de Snape.

Segurando firmemente as mãos dele, Severus, olhava para o nada como se estivesse ali apenas para passar segurança de que tudo daria certo, ficaram em silêncio por um longo tempo. Na verdade, necessitavam daquela quietude momentânea para que pudessem se estabilizar e dar seguimento ao que conversavam.

Nesses instantes em que buscava dar conforto, naquele momento de absoluta dor, Severus acabou proporcionando a Snape toda a convicção que precisava. Aquele era o instante exato para começar a narrar o que o menino deveria saber. Severus merecia receber o conhecimento sem qualquer restrição, como desejava, e assim o faria.

- Não sei se amor é a palavra certa... era bem mais do que isso. Reflita! Nós nos admirávamos intelectualmente. Foi a Hermis quem me libertou do prazer sinistro que eu sentia ao causar aversão nos outros. Acabou com a minha insistência em me degenerar pelo ressentimento. Ela também me mostrou que eu não preciso ouvir os mortos e caminhar pelo inferno para estar vivo... – reforçou.

- Embora eu acredite que ela estava profundamente enganada quanto a este ponto específico. Eu preciso escutar os mortos... Quem, além deles, pode dizer para onde estamos indo, não é? Quando a natureza nos manda respirar o enxofre para que tenhamos motivação, não há outro caminho a não ser esse. A escuridão úmida das masmorras me consola e me chama constantemente. Eu não conheço outra forma de sobreviver que não seja essa – retribuindo o aperto de mão de Severus, ponderou quanto ao que iria dizer em seu desabafo.

- É por esse motivo que a Hermis era e sempre será tudo – argumentou olhando para as paredes da casa.

Perdido, imerso em seus próprios pensamentos, estava mergulhado em águas escuras e profundas... atestando o seu estado de espírito perturbado. A falta dilacerante que Hermione fazia em sua vida lhe destruía os sentidos a cada minuto que passava. A saudade o cegava de toda a luminosidade da razão, o tornando um fantasma do que um dia fora.

- O senhor vai me mostrar tudo o que houve? Tudo mesmo? Inclusive o que fez a Hermione morrer? – perguntou curioso e temeroso.

Permanecendo sentado ali, novamente encarava Snape com profunda atenção, piscando os olhos lentamente. Havia muito mais escondido naquelas palavras do que estava sendo revelado. Previa que uma estranha tempestade se aproximava, abandonando um rastro de folhas e destruição quando fosse embora.

- Sim... eu o farei – respondeu secamente.

- Há coisas muito ruins? Digo, coisa horríveis, além da morte dela? – seus olhos estavam com um brilho intenso de expectativa, cheio de inocência e de um medo crescente, do que veria.

- Como nós somos a mesma pessoa, com idades diferentes obviamente, sei que você já presenciou coisas que homens de 60 anos ficariam horrorizados. Então, você verá tudo, sem restrições e já aviso que há coisas muito pesadas. Não pense que se tornou um mago celestial, porque isso nunca aconteceu e creio que jamais haja essa possibilidade... nunca tive vocação para herói – comentou.

Se levantando para se sentar de frente para Severus, o olhava dentro dos olhos. Aquilo era fundamental para que estudasse e entendesse cada uma das reações do menino ao ser encarado daquele jeito.

Entortando a boca para o lado, dando um claro sinal de incômodo, se aproximou um pouco mais. Poderia ser bem mais difícil do que pensava, mas não declinaria... no final, daria certo.

- Como vamos fazer? – perguntou desviando o olhar.

- Use a varinha. Você deve apontar para a minha cabeça e dizer Aperire Animo. Sei que ainda não consegue controlar a sua legi mentis o suficiente para entrar na minha mente sem uso de feitiços. Contudo, cuidado! – os olhos dele estavam fixos no menino.

- Eu posso garantir que, com o tempo, não será mais necessário que se utilize da varinha para fazê-lo – afirmou sem se mover.

Cada vez mais ansioso, Severus, esfregava as duas mãos tentando afastar a tensão. Mas, a cada minuto que passava, ficava ainda mais difícil de conseguir se concentrar no que faria. Estava muito nervoso naquele momento, principalmente, por conta de uma pergunta que lhe surgia.

- Antes de fazermos isso... quero que me responda mais uma coisa, senhor – fez uma expressão de dúvida se deveria ou não questionar.

No fundo, temia ouvir alguma resposta aterradora ou que acontecesse o pior. Sabia que qualquer coisa poderia ocorrer após uma quebra temporal daquela magnitude. Snape apenas ergueu uma das sobrancelhas, aguardando, para ser informado sobre qual o conteúdo da pergunta e onde tudo aquilo iria terminar.

- Diga... – falou fazendo um gesto com a cabeça para que Severus revelasse o que o afligia.

- O que vai acontecer depois que me contar? – perguntou de uma só vez.

Incerto e preocupado, estava atento ao temor que o sufocava. O seu íntimo o avisava que de algo muito ruim se aproximava e seus instintos estavam em alerta para o que teria de enfrentar.

- Tudo muda... a realidade, de onde eu venho, desaparecerá e não haverá espaço para nós dois. É simples! – deu de ombros sem se importar com o próprio destino.

Estava insensível diante do que teria de fazer depois. Já havia se autocondenado e não enxergava outro caminho que não fosse aquele. Abandonaria a si mesmo honrosamente, sem deixar rastros da sua passagem.

- Vai morrer? É isso? – arregalou os olhos, ainda mais nervoso, pelo o que constatava.

Nunca pensara sentir tamanha angústia por causa de alguém... quando se tratava de Eileen, seus sentimentos sempre eram mais voltados à revolta, constante frustração e uma profunda sensação de impotência. Por Snape sentia medo, não por ser quem era, mas pelo o que pretendia.

Não queria aceitar aquela decisão e faria o possível para fazê-lo declinar daquele horror. Ele jamais seria covarde a ponto de desistir de uma batalha, mesmo sabendo que estava perdida, antes do início. Não podia ser capaz de se insultar daquela maneira tão baixa e vil... como poderia se dar por vencido quando era o senhor do tempo?

- Não há como ter dois Severus Snape no mundo e nessa nova realidade, seria um absurdo. Certamente, eu não vou voltar no tempo aos 37 anos... eu estarei feliz ao lado de Hermione e dos meus dois filhos – expôs claramente os seus planos e o que imaginava.

- Eu, sinceramente, não me importo que as minhas atitudes incendeiem o mundo bruxo! Até porque eu não tenho qualquer consideração pela maior parte das pessoas que estão nele... então, compreenda, não existe vida ou felicidade sem ter Hermione ao lado. Não me vejo sem a possibilidade de abraçá-la e sentir o seu cheiro de baunilha e morango. Eu repito, ela é a única razão para que eu esteja fazendo isso – instintivamente, Snape, passou a mão no rosto de Severus e o abraçou forte.

Aquele gesto era o que sempre desejara receber do pai, porém nunca Tobias fora capaz de ter qualquer atitude minimamente carinhosa... na verdade, o odiava mais do que tudo e, se todas as coisas se modificassem para sempre, elas seriam transformadas a partir daquela demonstração de afeto. Severus era muito pequeno para não ser tratado com consideração e gentileza... e a sua reação de apertá-lo com todas as forças demonstrava o quanto se via necessitado de um pouco de carinho.

- Não existirá ninguém além dela? – perguntou, ainda no meio do abraço, com a voz abafada.

Embora estivesse gostando, estava intrigado com aquele gesto e com a vida miserável que teria. O quão desgraçado era para viver tão solitário e desesperado por amor? Ficara com pena de si por ser tão solitário e triste.

- Você verá... há pessoas que são extremamente importantes e que você vai amar muito. Sei que as protegerá também e fará todo o possível para que sejam felizes. Preste atenção nos detalhes, nos sinais, naqueles que vão se prontificar a ajudá-lo sem pedir nada em troca. Por mais difícil que seja, confie – argumentou o soltando.

- O destino estará nas suas mãos... então, vá atrás de quem lhe ajude e de quem demonstre gostar de conversar com você. É isso que eu aconselho. Ademais, antes de partir, eu quero levá-lo a um lugar para que conheça uma pessoa. De acordo? – falou dando um leve tapa no ombro de Severus para passar segurança quanto ao que fariam depois.

Na verdade, não queria ter de carregá-lo à força para encontrar um estranho. Isso geraria muito mais traumas do que aqueles que já possuía e não queria ser o responsável por outras tantas perturbações em seu inconsciente.

- Sim, eu vou com o senhor e eu estou pronto. O senhor também está? – afirmou interrogativamente.

Mesmo que ainda estivesse pensativo, não estava disposto a demonstrar qualquer traço de incerteza. Não deixaria Snape decepcionado diante do seu desejo de declinar daquela oferta... não queria que o visse como um covarde. Principalmente, quando apenas estava confuso.

- De fato! – assentiu.

- Aperire anima! – sua vida inteira girou diante de seus olhos.

Cada lágrima e cada sorriso, suas inúmeras decepções e algumas conquistas... a violência, as mortes, as perseguições, os instantes de felicidade. A partir daqueles minutos intensos, tudo se alterava indefinidamente.

Isso fez com que, pouco a pouco, de obsidianas passassem para uma coloração de ônix, perdendo o brilho intenso, esperançoso e puro. A inocência estava morrendo em seus olhos... se apagando como vagalumes desorientados pelas toxinas e a fumaça das fábricas. Jamais voltaria a ser o que um dia fora.

Uma parte importante de quem era acabara de morrer ali.