Os meses transcorreram, rápidos, rasteiros, lépidos e sorrateiros, fazendo com que os dias passassem ao sabor do vento. Sem que se fizesse perceber, o mês de julho se anunciara com uma manhã ensolarada. Era o início do verão e Severus acordara com a luminosidade que entrava pela janela.
Aquele clima ameno e morno o agradava. Principalmente, por lhe dar uma energia extra para os estudos, exercícios contínuos e as correções incansáveis... os dias mais longos o deixavam feliz. Era um tempo extra que poderia passar conversando com Snape e sendo instruído sobre os mais diversos assuntos. Horas que tinha a oportunidade de, simplesmente, fingir que aquele homem era o seu pai.
Descendo as escadas, desviou de uma coruja marrom que invadia a sala com um pergaminho amarrado na pata. Certamente, se tratava de notícias boas, pelo olhar cheio de expectativas com que Eileen mirava o animal. Deviam ser os documentos que há semanas ela aguardava ansiosamente...
Na pequena carta, era informado que uma das antigas propriedades dos Prince voltaria aos herdeiros. Em três dias, receberiam as plantas e a certidão do imóvel. Era mais uma coisa a qual deveriam agradecer ao Lord das Trevas... como prometido, ele ordenara a todos os seus seguidores, infiltrados no Ministério da Magia, que revogassem o testamento dos pais dela.
Snape apenas observava em silêncio toda aquela movimentação eufórica. Compreendia que Eileen estava com tamanho bom humor devido à possibilidade de retornar para a sua antiga casa em Caerleon. O lugar, que ela mais amava no mundo, seria exatamente onde recomeçaria a vida... uma terra tranquila e com o ar puro, em que Severus caminharia livremente e realizaria os seus sonhos de paz.
- Tomou banho antes de descer? – perguntou irônico para o menino que já se sentava à mesa para tomar o café da manhã.
- Sim, eu fiz o que o senhor me explicou. Usei uma esponja para me esfregar... estou limpo – respondeu pegando uma fatia de pão e uma xícara de chá com leite.
- Muito bom. Hoje você terá aula de Runas – informou, despreocupadamente, se mostrando mais interessado no comportamento de Eileen que parecia estar alheia ao que ocorria na cozinha.
- Qual delas? – questionou bastante curioso.
- As Ramrunes e as Sigrunes, que são as mais importantes por hora. As primeiras são carregadas de poderes trazidos em rituais e protegem o bruxo que as desenhou. Apenas ele pode realizar feitiços diante delas. No caso das outras, que eu citei, são voltadas ao sucesso e a vitória. São runas destinadas às batalhas e devem ser talhadas nas armas que serão usadas no conflito. Por isso, elas estão presentes nas varinhas de todos os Black e na sua – explicou detalhadamente.
- Interessante... eu posso fazer uma pergunta, senhor? – Severus questionou antes de beber mais um gole de chá.
- Já o fez... – Snape respondeu rispidamente.
- Que seja! Mas e aquelas que o Sirius Black tem pelo corpo... o que elas representam? – indagou curioso.
- Aquilo segue um dos princípios básicos da magia relacionadas à palavra. Elas são chamadas de Hugrunes e servem para reforçar o poder mental do bruxo que as têm. É uma das invocações a um dos corvos de Odin, especificamente o Hugin da memória, e está diretamente relacionada às Malrunes – explanou notando a clara expressão de dúvida no rosto de Severus.
- Elas são fórmulas rúnicas faladas, escritas ou cantadas. As Malrunes eram as canções que davam coragem, para os vikings atravessassem os mares, sem medo da fúria dos deuses. Ficaram conhecidas como Galdr e são muito fortes – concluiu pegando uma maçã verde e fazendo um gesto para que o menino o acompanhasse.
Seria um longo dia, pois além do treinamento, quando retornassem ao Spinner`s End, teriam de auxiliar Eileen com os preparativos para a mudança de residência. Não que pretendesse levar móveis ou roupas, mas pela rapidez com que decidira deixar tudo para trás.
Em poucos dias, deixariam a casa somente com as roupas do corpo. Abandonando móveis e as lembranças de sofrimento. Os horrores ficariam ali. Solitários e presos às paredes em ruínas... segredos que se deteriorariam em meio à poeira e à imundície, enquanto Severus corria livremente pelo parque de Fort Adams.
Seus dias de estudo se misturavam aos banhos de mar, passeios de barco e procura de pequenos peixes nas poças de água formadas entre as pedras. Eram dias tranquilos e felizes, em que podia visitar o Farol de Castle Hill e se sentar no alto da pedra, ao lado de Snape, para conversar e olhar para o horizonte. O que em pouco tempo, transformou todo o cansaço em momentos de tranquilidade... instantes em que se dedicavam juntos ao aprendizado do Cymraeg, para compreender o que se encontrava nas palavras ocultas ditas pelos galeses.
Todavia, nem tudo sucedeu tranquilamente... próximo ao final do ano de 1967, Snape começou a testemunhar Severus adquirindo novos traços de personalidade. Um constante era de ferocidade séria, fria e calculada, se esgueirando por debaixo das sobrancelhas grossas. Sombrios, seus olhos transpareciam o fogo negro resplandecente, enigmático e mais profundo do que outrora.
Era como se os dois pixies confabulassem, secretamente, seus planos indômitos e malignos. Dia após dia, o seu pior lado demonstrava estar lá... sempre silencioso e oculto, espreitando o instante preciso em que pudesse se revelar completamente e sem qualquer sombra de medo. A voz da noite não silenciaria mais a sua maldade e raiva. Principalmente, quando o mundo inteiro não passava de uma cruel testemunha dos horrores que vivenciara. Em diferentes épocas, motivos diversos, o universo e sua vastidão o aniquilavam.
- Um dia ela existiu e eu a perdi para sempre – sussurrou Snape refletindo quanto ao seu crescente fracasso diante de Severus.
- Se o senhor pretende recitar Wuthering Heights, a frase que melhor nos cabe é aquela dita pela Catherine Earnshaw, quando explica o motivo de estar trocando o Heathcliff pelo Linton – o menino mal ergueu os olhos para argumentar, seguindo atento ao livro de William Blake.
- É mesmo? – perguntou o encarando com uma expressão sisuda e grave.
- Sim, quando ela diz que amava o Heathcliff... contudo, casaria com o Linton porque ele era rico – resumiu ainda sem o olhar.
- Por isso ele nunca há de saber o quanto o amo. Não porque ele seja belo, Nelly, mas por ele ser mais eu do que eu própria. Não sei de que são feitas as nossas almas, mas elas são iguais; e a de Linton é tão diferente da minha quanto um raio de lua é diferente de um relâmpago, ou o fogo da geada. É essa parte a que se refere? – indagou sem compreender o que Severus queria lhe dizer.
- Exato e o senhor já deve saber o que isso significa... a quais pessoas remete – respondeu com um evidente cinismo.
- Você viu nas memórias a existência do Spiritus Uno. Eu não sei o que tem em mente, entretanto, saiba que as suas escolhas podem tornar alguém a mais infeliz das criaturas. Seu evidente egoísmo pode arruinar tudo e deixar uma pessoa inocente se sentindo completamente abandonada – Snape o repreendeu com veemência.
- Eu não me recordo de ter casado com quem quer que seja... eu só tenho 7 anos! – Severus perdeu a paciência jogando o livro no chão e saiu batendo os pés, o abandonando sem entender nada.
- O que foi isso? – perguntou a si mesmo, vendo o menino se afastar com passos largos e decididos.
Logo, ele estaria dominando praticamente tudo e, talvez, o seu progressivo poder se somasse aos danos que lhe foram causados. Era triste ver como a sua infância havia sido perdida tão precocemente. Fosse pelas leituras de livros com contextos acima de sua idade, ou os traumas vivenciados, Severus estava se transformando em um adulto antes do tempo.
Ouvindo o vento soprar, caminhando pela baía de Cardiff, Snape admirava o sol nascer. Precisava refletir ao máximo quanto às mudanças... não desejava que o abuso, a negligência e o desprezo daqueles que o cercaram por muitos anos, o subjugassem. Nem permitiria que adquirisse uma ânsia autodestrutiva, uma insana busca por vingança e escárnio daqueles a quem odiava sem conhecer. Porém, esse não era o seu maior medo. Não queria que Severus se transformasse em alguém mal-intencionado e abusivo.
A sua apreensão tinha justificativa. O menino começava a manifestar os seus gestos como coisas pensadas e dissimuladas. Sinalizando o quanto se tornara sonso, manipulador e inescrupuloso, Severus se mostrava disposto a fazer tudo para ter sempre o que desejava. Não via empecilhos para as suas ambições... não existia qualquer limite ou refreamento, em seu horizonte, que o fizesse parar. Concluía que o rolar de dados teria de vir em benefício próprio.
Se fosse necessário, usaria qualquer um para alcançar os seus objetivos e, posteriormente, descartaria. Infelizmente, fora isso que Snape lhe relatou quando se referiu a Lily. Aquela que o usou como escada para conhecer e ingressar no mundo bruxo para, depois, o menosprezar como se fosse lixo.
Outro ponto preocupante era que Severus, pouco a pouco, se distanciava. Parecia se ressentir por algo não dito. Vez ou outra, transparecia uma postura própria de alguém que se sentia negligenciado. Snape conjecturava o que mais deveria fazer para que o menino não se visse daquela maneira... porém, as respostas lhe escapavam. Elas se exibiam mais exigentes e sôfregas que as aspirações do pequeno Prince.
A vida se descortinava mais facilmente quando os seus dias costumavam ser repletos de tristezas e, as suas noites, agitadas pelo medo. Quando o silêncio falava muito mais que as palavras e o seu coração sangrava por conta da solidão. Mantendo a cabeça erguida e fingindo ser alheio a tudo, encontrou uma forma de esconder o que possuía de melhor. Agora, por mais que tentasse expressar o quanto sentia pelas coisas que fizera, nada se mostrava suficiente. Sua postura hostil apenas possibilitava que, suas reais intenções e verdadeiros sentimentos, fossem exteriorizados a quem merecesse.
O que fazer? O plano era um só e não alteraria o curso de suas ideias por conta das teimosias de uma criança. As vontades de Severus eram detalhes bobos... o que ele sabia da vida aos 7 anos? Teria que aprender, mesmo que fosse à base de duras penas, a não se deixar enganar ou abandonar a si mesmo perante coisas pequenas.
Sua postura impassível e altiva, surgiria... após ser incansavelmente corrigida, para que tivesse o talhe de um perfeito príncipe e nunca mais se modificasse. Mesmo que estivesse cada vez mais cansado e sentido dores terríveis na cabeça, faria que Severus trabalhasse o melhor de si mesmo e se libertasse dos seus terrores infantis.
Logo, algumas coisas se apagariam... a mudança completa dos trejeitos ainda rústicos e grosseiros, o estudo para uma dicção correta e sem tropeços, os gestos gentis e compassivos. Passos aprendidos e ensaiados que eclipsavam com os seus intentos mais obscuros. O refinamento irretocável que chamaria a atenção daqueles a quem se interessasse.
Severus, aos poucos, espelhava o comportamento duro e grave de Snape. O seu esforço contínuo contrastava com suas frases que despejavam sarcasmo e ironia... o herói e vilão se revezavam, por mais que aprendesse, deixando de longe o que poderia ser tido como gracioso.
Treinando, como um pequeno soldado diariamente, o seu jeito de andar foi moldado e manipulado para se transformar em algo lento e silencioso. Tal qual um ladrão soturno, vagando pela madrugada... algo que os anos se encarregariam de aperfeiçoar ainda mais, modificando para um modo extremamente lúgubre e perigoso.
O menino seguia firme e pragmático, como um jovem vampiro, na expectativa de localizar a sua primeira vítima... rondando, atento e seguro, sob o manto das tempestades, para dar o bote mortal e sorver o sangue quando tivesse a oportunidade. Seus olhos brilhavam com a certeza de que, um dia, seria aquele homem alto e bonito. Trajado de preto da cabeça aos pés, reavivaria todos os sonhos que, naquele instante, se destruíam e se libertaria do abismo.
Seria mais que um homem... se converteria em um bruxo das trevas, um demônio, um deus, um guru que regeria as regras do tempo. Revertendo um tanto de tudo e um pouco de nada, para somente ser aquele a quem todos temeriam. O fantasma que sussurraria o nome dos desgraçados e não desperdiçaria a chance de se banhar no alimento da vida. O Death Eater que Snape fingia não ser. A fera a quem tanto admirava.
Semanas pareceram voar, guiadas pelos ventos litorâneos, levando para mais longe os traços da inocência valiosa e irrecuperável... tudo que havia sido perdido em prol das necessidades e interesses de Snape. Questões as quais, para Severus, não faziam qualquer sentido lógico. Tudo não passava de ordens sobre uma missão que deveria cumprir. Algo que divergia dos seus planos e estimulava a sua hostilidade.
Uma agressividade envolta por uma aura intransponível de mistério e nebulosidade, a qual pouquíssimos teriam coragem de tentar investigar. Sua fisionomia infantil e afabilidade simulada eram uma ameaça iminente. Talvez, toda aquela vibração enigmática e crítica, fosse uma arma de fascínio... para o homem, servia para que forjasse os nervos do menino e os transformasse em aço. Um provável artifício que conquistaria a dedicação de algumas meninas.
Seria uma sensação maravilhosa observar o quanto as pessoas, finalmente, notariam a sua existência e não o tratariam como inseto. Fosse por admiração ou por medo, o respeitariam. Aquilo fez Snape sorrir de satisfação ao olhar para Severus... a criança, claramente atormentada pelo descaso que sofrera e todo o ódio que alimentava em seu coração, se faria soberano.
O combustível que alicerçava o seu desejo, quase homicida, de ser amado... mataria ou morreria pelo amor e a dedicação de alguém. Em pouco tempo, o menino conheceria as irmãs Black e faria amizade com elas, o que demonstrava o quanto tudo estava seguindo a lógica e o rumo esperado pelo homem.
- Minha alquimia agora atinge o seu ponto crítico. Não falham os meus experimentos, obedecem-me os meus espíritos, e o Tempo traz em sua carruagem o minuto exato – recitou Snape apontando para o livro que Severus lia naquela tarde chuvosa.
- O senhor gosta do livro The Tempest, de Shakespeare, senhor? – indagou o menino o olhando.
- Acho todas as estórias do Bardo interessantes... contudo, eu aprecio mais The Winter's Tale – respondeu sinceramente.
- Claro, a narrativa do amor do rei Leontes pela rainha Hermione, seu ciúme e sua perda. Como não imaginei isso? – o menino bufou baixinho.
- Pelo fato de que sua mente está distante do que realmente importa. Além disso, aprecio que adquira esse tipo de cultura literária. Você será um catedrático futuramente, não deve agir como um tolo inútil e ignorante – retorquiu, erguendo a sobrancelha, com ironia.
- Aproveito o seu bom humor, Severus, para avisar que amanhã eu estou partindo – informou sem qualquer preocupação.
- Ainda falta um mês para terminar o prazo de um ano... – começou a argumentar sendo, imediatamente, interrompido.
- Tenho algumas questões para resolver com o Lord das Trevas, antes de retornar ao ano de 1997, satisfeito? – esclareceu abruptamente com aquela interrogação nada amistosa.
Snape se foi e, Severus, começou a andar cabisbaixo e triste. A separação, daquele homem a quem amava como se fosse o seu próprio pai, o abalara demais. Mesmo que não quisesse admitir e tentasse ser forte, aquela incômoda sensação de abandono e saudades o acompanhava cotidianamente.
O tempo, como Senhor dos Enganos, soube se deslocar morosamente... quanto mais demorasse, maior era a perturbação diante daquela ausência. Com as horas e os dias se manifestando mais longos e arrastados, o menino não criava grandes expectativas ou esperanças. Estava tão deprimido que sequer conseguia se animar com os seus passeios por Newport ou as suas explorações pela fortaleza abandonada de Caerleon... queria muito que Snape estivesse ainda ali, ao seu lado, lhe dando alguma atenção ou palavra de conforto. Definitivamente, aquela havia sido uma perda bastante dolorosa.
Percebendo a tristeza crescente, nos olhos do filho, Eileen decidiu que o levaria até a casa de Cygnus Black. Já estava na hora de Severus conhecer e conviver com outras crianças. Quem sabe fosse o único jeito de fazer com que ele parasse de agir como um mini adulto? Talvez, se divertindo com novas amizades, esquecesse de pensar em tantas bobagens?
Aproveitaria, igualmente, para garantir algumas regalias dentro do ciclo interno dos Knights of Walpurgis após tantos anos afastada... era bom que prosseguissem com os rumores de que, Severus, era filho ilegítimo de Rosier. Sobretudo, quando aquela mentira se tornava, gradativamente, algo extremamente benéfico em meio a um grupo de defensores da pureza de sangue.
Eileen interpretava os sinais de que, aquele, era um jogo de interesses e luta contínua por posições de destaque. Sob os mais diversos ângulos e vertentes, os seguidores do Lord das Trevas, fariam o possível e matariam para obter o posto de braço direito... a função de general das tropas que se formariam.
- Filho, nós iremos para a Black Manor, em Ben Nevis. Se prepare para estar apresentável quando chegarmos lá – avisou concisamente, o impedindo de sair para mais um passeio.
- Certo – disse dando meia volta para retornar ao quarto e se vestir.
Prontos e preparados para o que viria, cerca de duas horas depois, caminhavam pelo terreno. Seguindo ao lado da mãe, o menino, olhava para todos os lados e prestava atenção a tudo. Seus passos eram apressados e urgentes, tentando se manter arrumado e com uma aparência simpática para os demais. Estava nervoso, suas mãos suavam... esfregando nas pernas das calças se sentia preso àquelas roupas tão formais. Nunca se achou tão estranho quanto naquele momento.
Ao entrarem na imensa casa, ainda mais agitado e sem ser capaz de atinar o que deveria esperar quanto àquela visita. Desviando de alguns seguidores, que já se localizavam na sala, os cumprimentaram imediatamente e se separaram. Eileen os acompanharia até a biblioteca, onde ocorreria a reunião dos Knights of Walpurgis com Voldemort.
Se antecipando à breve despedida, encheu Severus de recomendações. Teria que adotar as regras da casa pormenorizadamente. Era o instante em que colocaria em prática todo o seu duro aprendizado... quanto à forma que deveria agir e como se comportar em um ambiente como aquele. Principalmente, a orientação para que, em hipótese alguma, saísse daquela sala ou da mansão. Após esses apontamentos, o silêncio se fez entre os dois e, apenas assentindo, o menino viu a mãe se distanciar.
Analisando o seu entorno, se sentou em uma poltrona para aguardar. Sem estimar o tempo que ficara ali, sacudindo os pés no ar, observava a chegada de outras pessoas que iam em direção à biblioteca. Alguns, pareciam ignorá-lo de um jeito grosseiro e pouco receptivo, o fazendo franzir o cenho contrariado... outros, o cumprimentavam com um breve aceno, antes de desaparecerem no corredor. Era estranho e curioso como um grupo tão homogêneo poderia proceder de formas tão diversas.
Ao que compreendera do que sucedia, o encontro se apresentava muito próximo a uma comemoração entre iguais. Embora, certamente, estivesse discutindo os novos planos de dominação do mundo bruxo e a supremacia dos Sacred Twenty-Eight nos anos vindouros. Ocasião em que, um número pequeno, se dispôs a pôr em prática o projeto. Escrevendo artigos anônimos para o Daily Prophet, dariam o tom apocalíptico necessário para que a sociedade se visse completamente ameaçada e acuada por um inimigo oculto.
Conforme os seus argumentos, os muggles estavam à espreita, ansiando para executar novas perseguições e a retomada do protagonismo da Inquisição. Estuprariam, espancariam e matariam as mulheres, torturariam crianças e castrariam homens... famílias inteiras seriam reveladas e perseguidas graças a permissão de que mudbloods os conhecessem. Eram espiões que sonhavam em ver os verdadeiros bruxos serem dizimados como vermes.
A cultura do medo se fixaria e levaria muitos a duvidarem da validade da própria liberdade. Assim como, de outros direitos fundamentais diante da falsa promessa de que estariam seguros. Confundido os discursos oficiais do Ministério da Magia com a recriação de antigos horrores, fomentariam antigas rixas e fortificariam cada vez mais os preconceitos já existentes... sobretudo, se adotassem a política de desaparecimento de alguns desafetos.
Na sala, ainda pensativo, Severus respirou fundo entediado. Olhando para os próprios pés atentamente, passou a mão pelos cabelos, antes de usá-la como apoio para o queixo. Não sabia mais quantas horas teria de permanecer sem fazer absolutamente nada e, se soubesse, teria levado algum livro para passar o tempo. Como se aquilo bastasse para que os minutos corressem mais depressa...
Sem ter a exata dimensão do quanto se conservara ali, contemplou a formação de três sombras à sua frente. Levantando a cabeça para ver quem se tratavam, se deparou com meninas o avaliando dos pés à cabeça. O examinavam com um misto de interesse e curiosidade... ele se tratava de uma figura nova em seu pequeno ciclo de conhecidos e isso atiçava a imaginação delas.
Se perguntando as razões que motivavam todo aquele silêncio, venceu a timidez que surgia e decidiu se apresentar formalmente. Deduzia que aquele gesto seria o melhor a ser feito... naquele instante, era a única forma de romper qualquer barreira ainda existente entre eles.
- Tarde, senhoritas! Eu sou Severus Snape... é um prazer conhecê-las – falou, estendendo a mão para cumprimentar uma a uma, calmamente.
- Tarde! Eu me chamo Andromeda Rosier Black e, estas duas, são as minhas irmãs, Narcissa e Bellatrix. É um prazer conhecê-lo também – respondeu brevemente, com certa formalidade, correspondendo o gesto.
Sinalizando para as outras duas, que sorriram, decidiu continuar com o assunto. Estava entusiasmada em saber quem era aquele pequeno estranho que surgira em sua casa... especialmente quando, o mesmo, não aparentava qualquer pressa para conversar com elas.
- Snape, então me diga o que faz aqui sozinho? – Andromeda questionou observadora.
- Pode me chamar de Severus... eu não vejo a necessidade que me trate com tais convenções, senhorita – respondeu incerto quanto a sua atitude.
- Perfeito, então, você deve nos chamar por nossos primeiros nomes... sem qualquer restrição, obviamente – falou polidamente, recebendo de Severus um gesto de concordância.
- Você quer ir até o jardim? Nós estamos brincando com os nossos primos e você está convidado a participar, caso queira... creio que eles vão gostar muito de conhecê-lo também – apontou.
- Eu adoraria – disse sentindo a timidez voltar e tentar paralisá-lo.
Não sabia muito bem como dialogar com crianças da sua idade. Ainda mais, quando as mesmas, ele havia visto já adultas nas memórias que Snape lhe apresentara... era extraordinário se relacionar com alguém o qual já se dominava parte do destino. Ao mesmo tempo, era algo extremamente triste, dado o fato de que a vida havia sido muito cruel com cada uma delas.
- Você é o filho da senhora Eileen Prince, não é? – Narcissa o questionou, com uma expressão encabulada e insegura.
- Sim, por quê? – perguntou confuso e um pouco ríspido.
- Me desculpe ter sido invasiva... eu sinto muito – a menina baixou os olhos chateada.
- Eu não queria ser grosseiro... Narcissa. Por favor me perdoe – falou, rapidamente, a segurando pela mão com delicadeza.
- Está tudo bem, Severus... – ponderou com um sorriso constrangido.
Sem soltar a mão, aos poucos, Narcissa não percebeu que suas bochechas começavam a adquirir uma coloração vermelho tomate. A inibição fazia com que, seu rosto queimasse e a palidez da pele fosse substituída pelas cores da introspecção. Severus, igualmente, estava corado e sem reação depois do que fizera... se encarando em silêncio, próximos à porta, ficaram imóveis na posição em que se encontravam.
- Ora, o Evan vai adorar saber que você está aqui – Bellatrix se intrometeu e puxou o menino pelo braço.
Passando do braço para a mão, o deslocava para que não pudesse dar qualquer desculpa e declinar do convite. Não desistira até que ele a seguisse até a área externa da casa... mesmo que tivesse de obrigá-lo. De qualquer maneira, Severus faria o que ela quisesse.
- Como? Por que o Evan gostaria de me conhecer? – seu semblante se fechou com aquela afirmação que acabara de ouvir.
Aquelas palavras, ditas por Bellatrix, não faziam qualquer sentido lógico. Na verdade, o melhor argumento a ser utilizado era o de que alguém deveria começar a lhe explicar o que estava acontecendo.
- Não fique preocupado... – Narcissa começou a esclarecer calmamente.
- Nós ouvimos os nossos pais conversando sobre o fato de que você pode ser filho do nosso tio Jules. Por isso, Evan anda muito ansioso para vê-lo... para ser sincera, nós também estávamos. Se for real essa notícia, ele deixará de ser filho único e, nós, ganharemos um novo primo e amigo – comentou, como se falasse uma amenidade qualquer, para vencer o embaraço inicial.
- Obrigado por me contar, mas... – coçou a cabeça tentando encontrar as palavras certas para desfazer o engano.
- Severus, isso realmente não importa... vamos! – disse, rapidamente, Andromeda.
Indo ao encontro de Bellatrix, para ajudá-la a puxar o menino para fora da casa, com muito esforço o fez sair dali. Ele parecia ser muito mais teimoso e decidido de que constatara... respirando fundo, o olhou novamente com a mesma expressão que usara quando o interrompeu, fazendo um gesto para que deixasse de relutar e ir junto com elas.
Passeando com as três pelo jardim, se direcionou às árvores, onde se localizavam dois meninos sentados conversando animadamente. Enquanto, um terceiro, estava virado de ponta-cabeça em um galho atirando pequenos pedaços de madeira para chamar a atenção dos outros dois.
- Estes são Evan Rosier e Regulus Arcturus Black. Já o macaco exibido, se chama Sirius Black II irmão de Regulus, obviamente – indicou Bellatrix apontando para eles.
Após novos apertos de mão, a rigidez de seus ombros foi se suavizando um pouco. Mesmo tendo esbarrado com Sirius, e a antipatia ter sido imediata, tudo parecia estar correndo bem. Principalmente, porque Evan e Regulus se mostraram receptivos à sua presença e, logo, o inseriram no assunto que já conversavam.
Os dois eram pessoas engraçadas e, visivelmente, se revelavam muito empolgados com a ideia de que teriam mais um membro na família. Principalmente, quando esse possuía uma idade tão próxima a deles e demonstrava gostos semelhantes aos seus. Para aqueles dois meninos, nada poderia ser visto como uma notícia melhor...
Severus, enquanto dialogava com os dois, vez ou outra, voltava os seus olhos até onde Narcissa havia decidido se sentar... concentrada, em um canto mais afastado e reservado, parecia querer se distanciar um pouco de toda aquela confusão de vozes. Tranquila e silenciosa, na sombra de uma árvore, lia um livro com extrema atenção e cuidado.
- A Cissa é bonita, não é mesmo? – perguntou Evan lhe chamando a atenção.
- Bastante e transparece muita inteligência – respondeu, Severus, ainda a fitando.
- Ao que parece, a Cissy gostou de você. Senão, você teria sido vítima da pior expressão de todas as que ela faz... o olharia da cabeça aos pés, torcendo o nariz, com nojo. Ela sempre faz isso quando desaprova alguma coisa ou alguém. É horrível! – comentou Regulus se envolvendo no novo assunto.
- Eu sei... ela é uma menina extremamente impossível – Severus deu de ombros, se virando para os dois.
Ao contrário de Narcissa, que preferiu se afastar e apenas observar o que acontecia de longe, Bellatrix se apresentava muito interessada na sua presença. Mesmo que Sirius estivesse disposto a chamar a sua atenção, de todas as formas, estava curiosa quanto ao novo integrante do seu grupo de amigos. Tudo pelo simples fato de que, Severus, era diferente daqueles com quem convivera até aquele instante... era soturno, bonito e tinha cabelos tão negros quanto os olhos. Um enigma a ser decifrado com ar de selvagem.
Assim, começou a se desenhar os primeiros traços mais fortes de como se desenvolveria toda a dinâmica da relação entre cada um deles. Funcionando de um jeito estranho, para quem estivesse de fora, as proximidades e distanciamentos ficavam mais claros.
Enciumado e com raiva, Sirius, decidiu se excluir de tudo aquilo. Sendo capaz de desfazer até a amizade sólida que sempre tivera com o irmão, pelo fato de não aceitar que Bellatrix fosse capaz de dar atenção àquele desconhecido... enquanto, Regulus, não via qualquer problema em ser gentil com Severus. Na verdade, o problema de Sirius era que, pela primeira vez na vida, se sentia acuado e com inveja. Estava ressentido por ter sido preterido e deixado de ser o eterno centro de interesses ou cuidados.
- Aquele ensebado, morto de fome... acha que pode roubar tudo o que me pertence – murmurou contrariado.
Sua fúria só aumentava ao recordar que, desde sempre, escutara do pai que Bellatrix lhe pertencia. No futuro, seria a nova Senhora Black, no exato momento em que se casasse com ela. Perpetuariam o sobrenome da família e seriam livremente felizes... entretanto, tudo o que se expunha na sua fortuna era a mais profunda ruína. Todo o seu foco se perdera, com a chegada de Severus, que afigurava querer a sua derrocada.
Da outra parte, o menino tinha em mente que, cada gesto ou escolha relacionada àquela menina de cabelos revoltos, haveria um preço a ser pago no futuro. A revolta, injustificável, de Sirius era só um deles. Quem sabe não se tratasse até da principal? A questão era que adquirira um inimigo declarado para a vida toda. Isso que sequer tinha posto os seus planos em prática...
Pensando em tudo o que Snape lhe dissera, Severus sentia que aquele fardo pesava cada vez mais sobre os seus ombros. Era danoso brincar com as dimensões do tempo e se deixar cegar pela cobiça... por uma ideia de que era capaz de conquistar o impossível.
A partir desses pequenos detalhes e incidentes, que iam se somando exponencialmente, a vida se transformava em um verdadeiro jogo. Os deuses já deveriam ter jogado os dados para o alto e, possuindo todas as peças fundamentais do tabuleiro, Severus se enxergava ditando quais eram as regras. Decidiria quais os objetivos finais... o que parecia tornar tudo mais fácil de lidar.
Em pouco tempo, faria tudo o que Snape havia lhe solicitado e se vingaria de Bellatrix... a convenceria a se entregar, futuramente, de bom grado às garras de Voldemort e deixar que se destruísse. Ela não merecia ser amada e deveria sofrer por tudo o que fizera. Mesmo que aquele futuro horroroso não existisse mais, não conseguia esquecer do quanto ela fizera o seu eu futuro agora inexistente penar.
Aproveitaria que era livre e desfrutaria de todos os seus direitos por completo. Participaria daquelas reuniões e festas na condição de filho de um dos seguidores mais leais do Lord das Trevas. Rosier não se oporia... muito pelo contrário, aproveitaria da fama que adquiriria ao considerar aquilo como conveniente.
Treinado e adorado como um novo general, Severus, seria o novo comandante das tropas futuras. O capitão das tropas, o braço direito tão almejado, era o mais jovem entre aqueles que, agora, passavam a se intitular Death Eaters... um novo grupo se formava e uma nova história se escrevia. Isso bastava para que o menino seguisse em frente.
