Snape se formou em Hogwarts, na metade do ano de 1978, confiante e orgulhoso do futuro promissor que se descortinava à sua frente. Estava decidido a trabalhar até o mês de agosto na Elixirs e, depois, seguir para a França. Seria lá que realizaria um dos seus maiores sonhos, o de fazer o tão almejado estágio com Flamel. Graças àquela oportunidade, já se achava livre para dar continuidade aos seus projetos, após tantos anos, sem qualquer perspectiva de reconhecimento além da ofertada por Slughorn.

Aquele era o momento de perseverar, persistir, lutar e obter às merecidas congratulações... percebia o quanto era digno de ser feliz e de viver dias maravilhosos ao lado de Narcissa. Não existia mais espaço ou motivos, em sua existência, para perder um segundo que fosse se negando a desfrutar a sua juventude e o amor que sentia pulsar em seu peito.

Sua resolução, quanto ao tema, era inabalável. Nada o faria declinar e buscaria uma alternativa para desfazer da maldição que o torturava. Se negava a ter de revisar novamente aquele futuro-pretérito, incansáveis vezes exposto na Pensieve, por não enxergar mais nele os seus anseios. Assim que concluísse os seus estudos, com o renomado alquimista, quebraria todos os frascos e correntes que o prendiam.

Os horrores seriam jogados nas areias do esquecimento, se perdendo como grãos ínfimos na tempestade, desaparecendo completamente. Por mais que lhe doesse e fosse contra os seus princípios inabaláveis, romperia o juramento feito a si mesmo, lançando ao total abandono o que lhe fora remoto. De qualquer forma, era a época de renovação, de colher os frutos que semeara e de criar certezas. O que mais poderia querer?

Talvez, desejasse vivenciar a loucura de se entregar ao afeto, após uma existência fadada a subjugação e ao medo? Quem sabe, se afastar das coisas pérfidas e nulas às quais se envolvera e se interessara? O que lhe era óbvio, era o fato de que carecia ser o único executor responsável por cada um dos seus ato e decisões.

Apenas, desse modo, Ártemis lhe presentearia com o talismã da Fortuna e permitiria que os seus dias fossem iluminados pelo carro de Apolo... era a sua única alternativa. A esperança, para escapar da escuridão que o chamava, guiava os seus passos e pensamentos.

Respirando profundamente, abriu a carta recebida do Ministério da Magia com as suas notas, abrindo um sorriso irônico. Alcançara o seu primeiro propósito... os oito Ótimos e, os quatro, Excede Expectativas, lhe abririam muitas portas. Uma marca imbatível de doze NEWTs que, definitivamente, não passaria despercebida àqueles que detinham o poder.

Resultados obtidos à base de muito esforço, noites mal dormidas, horas intermináveis de estudo, idas a Hogsmeade desprezadas dentro da biblioteca, a saudade que sentia da sua flor de Narciso e, acima de tudo, solidão. Qual era o efetivo custo de empreender todas as aspirações? O que as divindades lhe exigiram a total renúncia?

Afastando a ansiedade, se concentrou em sua convicção de que não existia lugar, em suas ponderações, para o que considerava um verdadeiro sentimentalismo barato. Nunca exporia publicamente quais eram as suas reais intenções ou os seus afetos, tampouco, agiria de maneira pretensiosa e burra. Não daria às armas tão cobiçadas por seus inimigos... nem sucumbiria diante de vaidades vãs que só o prejudicariam.

A sua real vitória e o seu triunfo sui generis foram obtidos sem holofotes e de um jeito silencioso, sorrateiro e firme... como deveria suceder sempre. Assim, se transformaria no bruxo mais forte e mais bem-sucedido do mundo. Muito mais do que cogitara ser durante toda a sua infância.

Se a sua vida fosse resumida às conquistas e as batalhas diárias que enfrentara, ao longo dos anos, aquele era o ponto exato em que exigiria exibir a sua primeira medalha. Não que desconsiderasse os seus pequenos êxitos anteriores, mas o empolgava recordar da mais brilhante, a mais sedutora e a mais poderosa... resumida no segundo em que trajou a toga verde esmeralda, obteve o diploma em suas mãos e transmitiu a todos o seu sucesso.

Logo, viria a tão ambicionada viagem de estudos, cujo resultado seria o seu ingresso na Sorbonne Université. Cursaria alguma graduação voltada às pesquisas em Bioquímica ou Engenharia Química, ramos que o atraiam por suas estreitas ligações com a Alquimia e a confecção de Poções. Por que, então, não frequentar as duas? Já era um Mestre em Poções, em pouco tempo seria também Mestre em Transfiguração e, por fim, Alquimista... uma dupla formação nas áreas voltadas à saúde e a tecnologia dos muggles, não lhe faria nenhum mal.

Os anos fizeram com que compreendesse e reconsiderasse as suas próprias visões de mundo e, isso, lhe levou a aprender o valor da análise das mais diversas possibilidades que sempre se descortinariam em seu horizonte. A questão sintetizava em aceitar ou não o que lhe era proposto... o que restava pesar era qual estrada trilharia.

Massageando as têmporas meditativo, Snape, refletiu o quanto necessitava de uma pausa para descansar a mente. Precisava de algumas horas ociosas para organizar as suas novas ideias, agilizar a produção das poções encomendadas ou as que ficariam no estoque para serem vendidas, esquematizar os prováveis rumos que tomaria... entretanto, nada disso parecia ser possível. Havia muito mais a ser formalizado antes que pudesse se dedicar a si mesmo.

- Como eu vou contar à Cissy que não poderei levá-la comigo? – se questionava preocupado, falando baixinho, enquanto cortava alguns ramos de cicuta.

- Amor, já está pronto o Veneno de Sócrates? O Rabastan está aguardando pela encomenda... o Lord das Trevas o enviou aqui em regime de urgência – Narcissa entrou no laboratório aberto, o indagando, ao mesmo tempo em que revisava os documentos e pergaminhos que lhe foram entregues.

- Diga para o Lestrange menor que, em 30 minutos, estará pronto. Contudo, se ele quiser que seja mais rápido, que venha aqui e fique aspirando esse vapor insalubre. Aquele obtuso acha que é simples fazer uma tisana dessa planta, por acaso? – Snape respondeu meio irritado, sem a encarar, com os olhos fixos no caldeirão e o rosto coberto por uma máscara.

- Acalme-se, príncipe reclamão... não mate a mensageira das más notícias! – disse deixando claro o incômodo que sentira ante tal reação.

- Eu deixarei aqui, em cima da mesa, as cartas que foram endereçadas a você... espero que não agrida o Orestes antes de enviar o retorno – concluiu, fazendo um aceno breve com a mão, se retirando.

- Cissy... – Snape a chamou, dando um bufo baixo, notando que fora grosseiro desnecessariamente, ao vê-la incomodada.

- Sim? O que deseja? – perguntou, se virando um pouco, para compreender quais eram as razões que o levavam a solicitá-la.

- Obrigado! Eu sei o quanto está se esforçando para que tudo funcione... eu a agradeço imensamente. Me perdoe por não ser tão gentil quanto merece e por ter jogado o meu lixo emocional sobre você – argumentou com um semblante sério e um pouco chateado com a própria atitude.

- Não se preocupe, Severus. Eu entendo o quanto está atribulado e deve estar nervoso com a proximidade da viagem... até mais – Narcissa comentou, dando um breve sorriso, sem alongar mais a conversa.

Contemplando o fato de que a magoara, deixou que o caldeirão fervesse, por alguns minutos, sem a sua supervisão... nada sairia errado. Com alguns passos, se aproximou da mesa, revisando as outras solicitações que lhe foram feitas e, principalmente, ler as cartas que lhe foram destinadas.

De fato, o seu sossego não era o desejado pelos demais... faltando um pouco mais de três dias para que fosse a Paris, recebeu aquele infindável número de propostas tentadores de emprego. Como decidir? Não seria capaz de deixar a Elixirs e ir trabalhar em outro lugar. Se comprometera com Narcissa e o seu propósito.

- É, corvo alado, pelo visto os vapores venenosos estão o confundindo... agora chegou a hora de começar a partir e deixar o seu coração um pouco de lado. Eu vou aos estudos, outros se avizinham da morte e, os restantes, padecerão com uma vida difícil. A verdade é que, quem ficará com a melhor parte, não será capaz de mostrar. Especialmente, quando, todas as nossas escolhas, nos carregam para a inevitável perda – sussurrou, envasando o líquido fumegante e mortal, parafraseando Plato.

Discorrendo quanto aos convites do diretor do Saint Mungus, do secretário do Ministro da Magia, do chefe dos Aurors e, também, dos Innominatum, se ateve a própria indecisão. A última correspondência era do próprio Lord Voldemort, o felicitando pela formatura e lhe ofertando uma carreira brilhante... fora, de todas as propostas a que mais lhe chamara a atenção e que aguçou a sua curiosidade. Primeiro, pelo ineditismo e surpreendente convocação. Segundo, pelas dúvidas que lhe despertara. Por que o Lord das Trevas o agraciava quando já possuía um cargo de pocionista, desde os 14 anos, entre os Death Eaters?

Ainda recordava, ser um pouco mais velho que uma criança, quando recebera a missão de ser o único responsável pelas infusões e poções curativas que aquele homem deveria ingerir diariamente. Qual seria a ordem agora? Haveria alguma alteração nos planos? Teria o direito de se opor ao que fora estabelecido? Não haveria meios de reivindicar a sua liberdade após o Suffragium perpetuum e o Sanguine foedus... era impossível desfazer o que já estava, há muito tempo, em execução.

Uma circunstância que o acossava e o deixava impaciente até estar ciente do que lhe esperava. Aquele convite revelava muito menos do que aparentava conter. A veracidade das insinuações e sugestões impressas, nas entrelinhas, não demorariam a transparecer... tendo como resposta a chegada de Fall, que atravessava a janela da Elixirs apressadamente, portando o pergaminho com a última convocação. Teria de ir até a Malfoy Manor, em Wiltshire, com Eileen imediatamente.

- Onde está o Rabastan? – perguntou com um olhar interrogativo para Narcissa, que fechava o caixa, com o frasco nas mãos.

- Ele acabou de receber a intimação do Lord das Trevas para que comparecesse na reunião de hoje... você também foi chamado? – ela o olhou com apreensão.

- Sim... eu prometo voltar em breve – respondeu laconicamente, se aproximando para lhe dar um beijo rápido, antes de se dirigir ao encontro.

- Sevie, pare. Você não pode sair sem qualquer proteção – Narcissa o segurou firme pelo braço e lhe deteve.

- Que a estrela se abra à sua frente. Que o vento sopre levemente às suas costas. Que o sol brilhe morno e suave em sua face. Que a chuva caia de mansinho em seus campos... E, até que nos encontremos de novo, que Deus lhe guarde na palma de Suas mãos – recitou baixinho a oração celta, apertando as suas mãos geladas, com uma fé inabalável de que nenhum mal o afligiria.

- Eu estou convicto de que Lua Rosa e, principalmente, Mabon irão me defender esta noite – afirmou beijando as nós dos dedos finos e suaves.

- Todos os deuses estarão ao seu lado, confie – assegurou, o abraçando, em uma tentativa ineficaz de fazê-lo ficar.

- Eu creio que sim – afirmou, retribuindo o gesto, antes de partir.

Chegando em Caerleon, preferiu ir ao Fort Adams antes de encontrar a mãe, para pôr as suas ideias em ordem. Necessitava lembrar dos dias felizes que vivera para, depois, rumar à fatalidade ou sorte que o aguardava. Como ter noção do que viria, quando as nuvens se carregavam de um cinza chumbo, modificando o mundo para uma representação do inferno sangrento que encerrava mais um ciclo de sua essência?

Fechando os olhos e deixando que o vento litorâneo bagunçasse os seus cabelos, recordou do velho Snape ao seu lado... o aconselhando, o ensinando, o tornando um homem melhor do que um dia fora. Jamais lograria a possibilidade de esquecê-lo. Por mais triste que fosse, era o pai que conhecera e que lhe dera todo o carinho que carecia na infância. Se não tivesse surgido do futuro, indubitavelmente, teria aquela mesma existência solitária e, seus olhos, continuariam com as olheiras taciturnamente profundas.

- Eu queria que estivesse aqui e se orgulhasse do que estou me transformando, pai. Eu sei que o senhor se envaideceria com o meu sucesso, porque ele é seu... é o resultado de todo o seu esforço para me fazer uma pessoa digna e honrada – conversava, de si para si, encarando as ondas.

- Eu julguei, pela demora injustificável, que você só poderia estar aqui... falando sozinho, como sempre, feito um louco – a voz de Eileen soou cortando as suas ponderações e a contemplação às próprias memórias.

- Decerto, se eu tivesse uma mãe presente, eu não carecesse desse artifício – contestou, destinando a ela, um olhar de raiva.

- Não seja dramático... você merece a forma com que lhe tratam – afirmou o encarando com desinteresse.

- Vamos, então, senhora Prince? – indagou, arrumando as mãos dentro dos bolsos, para conter a raiva que sentia pulsar em seu corpo.

Após a breve discussão, ambos utilizaram o Evanescet para desaparecer do Fort Adams, para serem transportados em segundos ao local combinado. Evocando o Videntur, chegaram aos jardins cobertos por sebes de teixos, com pavões altos vagando pelo gramado próximo à estradinha que levava até a entrada da mansão. Era triste ver o abandono e a falta de carinho estampada nos olhares perdidos e vazios daqueles animais. O mesmo refletido as expressões desoladas dos elfos escravizados por aquela família detestável.

Com o interior suntuoso e opulentamente decorado, tudo o que ali se exibia era solidão e medo... o desespero não dito, se refletia no magnífico tapete persa, na mesa ornamentada pelo sangue e o suor dos inocentes, nos mármores usurpados de alguma rocha metamórfica e, no espelho dourado, ornamentado do ouro roubado das antigas colônias britânicas. O som dos sapatos se chocando contra o chão, eram acompanhados pelos quadros que espionavam a passagem dos visitantes pelo corredor, agredindo o silêncio mórbido das paredes grossas e frias.

Ao atravessarem o passadiço, tal mal iluminado quanto o hall de entrada, suas respirações ecoavam, ostentando o ambiente sombrio e aterrador em que se situavam. Girando a maçaneta de bronze, entraram no cômodo em que Lord Voldemort celebrava uma reunião com os Knights of Walpurgis e os jovens Death Eaters.

Vultos, gargalhadas, sombras, rostos sem forma distinta... horrores se desenhavam pelos caminhos que o vento desenhava, na medida em que o coração de Snape batia acelerado como um tambor descompassado. Em negação, frente ao claro axioma, sua imaginação determinara que aquele era o melhor momento de traí-lo, trazendo à tona os segredos ocultados até de si mesmo.

Não tencionava ter de escutar, mais uma vez, os seus sentimentos. Era cruel demais constatar que eles rejeitavam às suas vontades. No entanto, quais eram os seus anseios? Tudo ficara estranho, confuso e perturbador, como se o mundo estivesse virado ao contrário. Onde se localizava, em sua própria mente, para não ter notado?

Não era somente o fim da essencialidade do que acreditara ser o seu próprio eu. A conclusão de uma etapa, uma era, uma consequência fundamental do que lutara para alcançar.

Eileen se afastou, sem emitir qualquer sinal de apoio ou compreensão ao que passava com Snape... o lugar estava lotado com a presença dos membros formadores do ciclo mais íntimo. Velhos rostos dos antigos amigos de Tom Riddle, se revelavam, o cercando com sorrisos abertos. Os mais novos, em maioria seus colegas de Slytherin durante a década de 1970, o parabenizavam. Naquela ocasião, ele seria honrado com a Dark Mark.

A notícia de que abandonaria o posto de jovem aliado para se converter, irrevogavelmente, em braço direito o encantou instantaneamente. Chefiaria tropas e amplificaria os domínios do império bruxo, se casaria com Narcissa e se vingaria de todos aqueles que a fizeram sofrer... a sede de vingança e os exames atentos do que cobiçava, o distanciavam do tique-taque do relógio. Os ponteiros, lentos e cruéis, ditavam o ritmo em que as sensações atrozes se desenrolariam.

Seu espírito se esvaziava e perambulava por temas que guiavam o seu futuro. O antigo debate interno e comoção de que seguiria andando em círculos, vivendo em erros, o rasgavam mais do que o fogo que marcava a sua carne. Seu sangue, seus músculos, sua pele, suas articulações, borbulhavam como lava. Milímetro por milímetro, queimando em brasas, o receio e a aflição o dominavam.

Snape estava ofegante, lutando para manter a consciência e para abrir os olhos. Queria focar em algum ponto qualquer... buscando por uma senha, um sinal ou um som que o auxiliasse a recuperar a sua sanidade que se esvanecia. Qualquer coisa que retirasse a sua alma dali e a conduzisse para um espaço onde não existisse dor.

Sentia o gosto ferroso do próprio sangue entrando em sua garganta, permitindo que o padecimento alertasse as suas percepções e o deixando mais atento ao que ocorria em seu entorno. A quietude era impenetravelmente aterradora, sufocante e intensa. Um confuso senso de que o penoso isolamento o rondava, de que Narcissa o abandonaria, o fez confirmar que existia uma força, quase insana, o acompanhando.

Lembrando das razões levaram o seu outro eu a obrigá-lo a aceitar aquele acordo absurdo com Lord Voldemort, compreendeu o quão desesperado e perdido aquele homem se encontrava. Estava cego, errante pela escuridão, sem analisar quaisquer opções plausíveis que pudessem surgir à sua frente. Sequer fora capaz de analisar o óbvio... o que se tornara invisível aos olhos.

De qualquer modo, a única coisa que tinha certeza era a de que, o Lord das Trevas, cumpriria com a sua palavra. Faria tudo o que estivesse ao seu alcance para efetivar o pacto. Se fosse o Dumbledore, tudo sucederia ao contrário... o manipularia e jogaria com os seus mais inconfessáveis ou violentos sentimentos, de tal maneira que, as suas ilusões nunca se realizariam. Sua existência não passaria de uma completa mentira.

Sem dúvidas, mataria Sirius ou Bellatrix para evitar o nascimento de Hermione, alegando que, tudo fora feito Para um bem maior ou evitar que a guerra sofresse qualquer tipo de mudança significativa. Snape, o odiava e o abominaria até o último dia de sua vida.

Olhando para o lado, testemunhava os gritos dela, ao ser ferida pelo fogo que lhe abria a pele. Se esforçando para chorar o mínimo possível e controlar a própria força, para não machucar a filha em seu colo, o olhar de Bellatrix estava desfocado e nebuloso. Delphini a encarava assustada e com medo. Até mesmo os mais renomados torturadores, ali presentes, se chocaram com a cena de terror exposta.

A partir daquele instante, não seria mais a moça brilhante e cheia de sonhos... passaria a agir como o braço esquerdo, a general que morreria para salvar seu rei, perdendo a própria identidade e se subjugando àquele que a oprimia. Virando o rosto para o lado, perdido e com a visão turva, Snape caiu de joelhos. A Dark Mark pulsava em seu antebraço comprovando às boas-vindas do batismo de sangue pelo qual passara... não derramaria uma lágrima, mesmo que sentisse a sua consciência se esvair.

Tudo escureceu... suas reflexões e seus devaneios eram os únicos companheiros, quando o seu corpo não respondia aos chamados. Seu subconsciente se ativara, expondo todas as hipóteses de como resolver e derrubar as barreiras que ainda o impediam de prosseguir. A dor lhe fornecia algo de bom e a constância que aspirava.

Sempre em frente, como um líder, desprovido de fraquezas e de titubeios. Não decepcionaria o homem do futuro, que depositara as suas expectativas em alguém tão jovem, sonhando com dias melhores. Amaria Narcissa, com todo o seu coração, vivendo ao seu lado uma vida maravilhosa. Protegeria Hermione das maldades do mundo, testemunhando o seu crescimento e a sua felicidade.

A lucidez voltou, aos poucos, escutando os ponteiros do relógio indicando os segundos. Tudo o orientava para ir ao encontro daquela que o chamava. A única que alegrava os seus dias tristes e o aceitava com os seus múltiplos defeitos terríveis.

Era o sol que resplandecia nas manhãs frias de inverno, enchendo o peito das mais doces ilusões e anunciavam a chegada da primavera. A Lady of the Lake, detentora de todos os segredos que portavam a perfeição e a guardiã do aço que fortificava os Pendragon... apenas isso a definiria. Essa era a única forma para descrever a sua flor de Narciso.

No início do ano seguinte, em 1979, Snape se via completamente envolvido com os planos genocidas. Estudando ferrenhamente as artes que o agradavam e aqueles a quem tinha por inimigos, chefiava os ataques atrozes aos que julgava inferiores. Nada mais lhe importava, ocupando o máximo de seu tempo, após o doloroso término de seu namoro. Se sentia culpado demais por tê-la deixado em segundo plano... Narcissa merecia mais do que isso e, tal constatação, o amargurava. O único sentido que encontrava era se divertir, com todo aquele sofrimento que causava aos demais, extravasando todo o ódio e o ressentimento que ardiam em seu peito.

Entregue, plenamente, ao frenesi perverso da violência exacerbada, apreciava o cenário de caos com satisfação. Era delicioso se deleitar com as vacilações e os gritos desesperados dos torturados... aproveitando, cada momento de prazer ante à mortificação alheia. Seu coração pulsava forte e era incapaz de reconhecer o que estivesse longe do seu ódio crescente.

A exagerada violência voltara a lhe fascinar. Os assassinatos, os jogos perigosos, as bebidas, as drogas, as nuances vermelhas e terrosas que pintavam as paredes... a entrega às relações sexuais furtivas. O rolar dos dados, por entre os dedos, manifestando que não deixava de ser a eterna vítima das próprias fraquezas. O que mais carecia para apagar o que tanto o atormentava?

Como pôde perder o que lhe era importante em tão pouco tempo? Se, antes, algumas recordações costumavam lhe entregar o sol... com o transcorrer dos dias e da vida que levava, não eram mais do que um fardo insuportável. A vida não era justa e, provavelmente, alguma divindade sádica, ria da sua desgraça e angústia que o sufocava. Voltaria ao zero, recomeçaria de onde parara, se reencontraria e reconquistaria Narcissa.

Não aguentava mais as noites insones e a distância. Não toleraria o fato de que se transformara em uma sombra de quem deveria ser... vultos e mistérios se ocultavam nas brumas, apontando a direção soprada em sua alma, para que rumasse ao desastre. Com os olhos, totalmente, bloqueados para a verdade, atestara que os sinais foram interpretados.

Uma sucessão de repetições de alguns atos, alterações de outros tantos, notícias de que a sua adorada marcara a data do casamento com Lucius... era o fim do caminho. Por que ainda se dedicava tanto a alimentar expectativas positivas? Seu destino manifesto não permitiria a existência de algum espaço para que fosse feliz. Sua vida se resumiria, eternamente, a implorar e rastejar a cada novo ferimento.

Admirando a beleza de uma nova manhã, ao estancar o sangue e fechar os novos cortes, as cicatrizes se destacavam em seu peito. Os raros raios de sol, imponentes no horizonte, talvez pudessem ser a fonte de renovação de suas energias. Silenciosamente majestosa, despida dos esplendores ou honrarias reservados à riqueza, revelou a sua natureza nômade e selvagem.

Nua e insana, a essência indômita, lutava para se ocultar em uma fachada de civilização... os pixies tramavam novos atos obscuros e se apresentavam mais perversos. Seu sangue fervia rápido, ágil, preciso, impiedoso, ditando o que deveria ser. Passaria mais uma madrugada bestial, brindada pelo sorriso do demônio, satisfeito pelo jorrar viscoso do sangue terroso que lavava o solo.

Encarando as próprias mãos, Snape contemplava seu feito sem qualquer emoção aparente. Aquele corpo era apenas mais um infeliz que jazia no chão, com a garganta cortada, se afogando no próprio sangue. Dando alguns passos cambaleantes e desafiadores, ficou reverenciando o findar das forças e a chegada da intricada tempestade que se aproximava.

Recriar o mundo era muito mais complexo do que seria capaz de admitir. Seus pensamentos, meditações, dores, remorsos, ou o que quer que fosse, rondavam os trilhos utópicos das possibilidades de atravessar todo o universo. Talvez estivesse sendo condenado, por seus reajustes contínuos, o recordando que não se libertava de quem era.

O menino tímido e perdido, constantemente surrado, que se escondia nos cantos mais sombrios do Spinners End, ainda se fazia presente. O medo ainda o impedia de ter a clareza essencial para desvendar o seu lugar... o fato fundamental para ter apostado tão alto e lutado para conquistar os seus sonhos. Porém, quanto mais se empenhava em fugir, mais os caminhos o conduziam às semelhanças com Tobias. Esse era o fruto de se atirar no submundo e não dar valor às consequências.

Sangue, navalhas, brigas e mortes. A tônica perfeita que descreveria as suas ânsias, os seus hábitos e a sociedade que o criara. Era o resultado do antro de perdição e desespero dos renegados pelo brilhantismo do Velho Continente. Com um sorriso triste e desesperançoso, lembrava dos momentos em que andara naquelas ruas, avistando o rio poluído que deslizava docemente por sua própria vontade. Que os deuses tivessem piedade e aliviassem a dor inevitável que cortava tantas almas desenganadas... a beleza de Paris não apagava tais indícios traçados em sua consciência.

Rastros e ordinárias imagens que serviam para reavivar a repulsa e o ódio que sempre o moveram. Por que o seu temperamento colérico nunca se amansava? Quais as razões lhe davam tanta animosidade... exceto por ela? Será que a sua vida era sintetizada pela barbárie?

Como um pássaro de fogo desnorteado, incendiava o que tocava e feria a quem amava. Riscando o céu com os seus vestígios de glória e destruição, amedrontava aqueles que o viam romper as nuvens. Quebrando o solo e queimando a imensidão, o seu calor espectral, irradiava nos recantos da Cidade Luz.

Focando a sua imaginação em um ponto específico, em segundos se via diante da imponente construção, examinando se deveria ou não prosseguir com as suas loucuras. Incineraria todo o tabuleiro de xadrez e reorganizaria os rumos da guerra como ambicionava... se quisesse, efetivamente, se converter no general perfeito, teria de ter todo o conhecimento e a instrução do maior dos marechais do mundo bruxo.