Aquele dia fora intenso e parecia não ter fim. Revendo todos os princípios da Alquimia, na busca de encontrar em qual ponto errara no processo da transmutação, Snape estava alheio ao seu entorno. Sequer notara que Flamel sorria ao ver toda a sua preocupação e a sua inocência ante àquela metáfora.

Para atingir a metamorfose, precisava primeiro trabalhar o seu lado espiritual, mudar a si mesmo. Se transformar na sua melhor versão. Só assim, alcançaria a clareza, fundamental, para que o seu intelecto manipulasse os metais. A introspecção o levaria ao caminho da sabedoria.

- Eu não lhe disse, meu rapaz, que os quatro estágios são fundamentais? – perguntou, o olhando por cima dos ombros, com certa curiosidade.

- Eu executei o Nigredo, dissolvendo toda matéria putrefata no fogo. Constatando que, a Aquae Vitae foi purificada, presumi ter alcançado o estágio do Albedo e me empenhei para um melhor desenvolvimento de sua realização. Creio, mestre que, esses dois pontos foram feitos com perfeição, por conta da coloração prata adquirida... contudo, o processo parece ter se imobilizado no Cinitras. Algo me impede de converter esses metais. Eu não compreendo – explicou, incomodado, massageando as têmporas.

- Severus, meu caro... medite sobre o que é responsável pela luz da Lua ser considerada passiva. Enquanto, os raios solares, sempre são expostos como energia ativa? Somente, desse modo, você será completamente capaz de entender o casamento alquímico. O Rubedo ultrapassa o mero contratempo de ser o enlace da morte. Vai além da união do Enxofre e o Mercúrio com o Sal, ou do fixo com o volátil, como tanto gosta de afirmar – comentou, despreocupadamente, esclarecendo qual era o problema que observava.

- O senhor está me sugerindo que, eu sou a minha própria Grande Obra? Que a produção do Elixir da Vida, ou melhor da Pedra Filosofal, depende unicamente de um exercício espiritual e de um exame de consciência? – questionou, franzindo o cenho, como se revelasse uma ideia absurda que acabara de cogitar.

- Exato! No entanto, esse não é o nosso assunto por hoje. Saia, reflita bem, indague quais são as suas verdadeiras dúvidas. Esse é o maior de todos os ensinamentos que eu lhe dei, até hoje, e o mais precioso – afirmou com um sorriso no rosto, lhe dando dois tapas no braço, para lhe passar confiança.

- Obrigado pelo conselho – disse, tentando esconder o receio que se expandia em seus olhos, com incerteza nas palavras.

Acabara de ser colocado em frente a algo sagrado e extremamente mágico, ficando em choque. Escutar qual era o segredo para a execução da Medicina Universal o tornava diferente... fora separado dos oportunistas e visto como um dos raros que, realmente, se apresentavam aptos a explorar todos os seus riscos.

Flamel testemunhara em sua postura rígida e correta nos estudos, sua absorção dos sinais até adquirir o domínio sobre cada um deles. Esforço, dedicação e persistência para atingir o significado das ausências, a utilização dos nomes próprios pelos alquimistas com o intuito de despistar os olhares curiosos e, principalmente, os complexos enigmais misturando a ordem das operações indispensáveis para a realização das técnicas.

O afastamento dos detalhes, os esclarecimentos expostos de maneira obscura para a produção da matéria transmutada, cada ponto era a comprovação de que, a vida, era uma contínua orientação pelas luzes da travessia. Snape, percebia que, a trapaça naquelas frases, se descortinava no apagamento do trajeto que devia ser feito.

Era mais do que um argumento ou um tópico a ser pesquisado e avaliado... ia bem mais além. Algo que, Narcissa, muitas vezes comentara. Uma folha não caía sem permissão, o vento não soprava sem motivos, as flores desabrochavam no tempo certo, o que manifestava a finitude e o fato de nada ser feito para perpetuar o seu estado bruto. Também, dificilmente, era o que representava.

Palavras e frases que, expressadas em voz alta, ganhavam novos conceitos. Signos astrológicos, animais ou figuras misteriosas, o sarcófago como leito nupcial... todos os traços projetados para dissimular a simbologia esperada e obrigar o sensato a ser mais cauteloso em sua jornada.

- O Fortuna, velut Luna – Snape sussurrou para si mesmo, repetindo várias vezes, enquanto limpava a bancada para sair.

Se o acaso era tal e qual a Lua, deixaria que ela lhe apontasse o caminho naquela noite, como fizera os antigos sábios. Eles se deixaram conduzir pela imprevisibilidade e o destino inesperado. Apenas os ilustrados e os puros de coração se permitiam contemplar as nuances daquele sol de cetim e, por isso, a sorte os acompanhava como conselheira.

A consequência, de seus atos e suas atitudes, fora o alcance do mais alto grau de interpretação dos sentidos. Transcendendo a morte e a loucura, que rondavam os aspectos místicos ou ocultos, que sombreavam a ideia de controlar e converter algo.

Mexendo em seu bolso, notara que havia um pergaminho dobrado, cuidadosamente para que não se perdesse... efetivamente, o grande alquimista, tencionava lhe passar a mais suprema advertência. Abrindo e começando a leitura da Desiderata, de Max Ehrmann, deixou o tempo passar despreocupado. Era momento de se instruir, quanto àquela reflexão, e desenvolver a própria razão.

Meu caro amigo e aprendiz,

Mais do que qualquer conselho que eu possa lhe ofertar, nesse instante, creio como mais importante que leia essas palavras de um velho douto. Ehrmann tinha razão em suas colocações e elas servirão como guia para a sua caminhada.

Leia os conselhos e ouça a voz do seu coração... lute pela jovem dos cabelos contrastantes que, por tantas vezes nesse ano, eu o vi admirando na bola de cristal. É nela que se encontra o seu tão sonhado Elixir da Vida, o acesso à sua bondade e o percurso que fará para reencontrar toda a sua retidão de caráter.

Severus, acredite, você é uma ótima pessoa... o problema é que se perde em problemas que lhe são alheios e a raiva que o corrompe.

Agora, analise, pesquise e pondere a respeito do que, "As coisas que são desejadas" ou "Desiderata", tem a lhe acrescentar:

"Siga tranquilamente entre a inquietude e a pressa, lembrando-se de que há sempre paz no silêncio.

Tanto quanto possível sem humilhar-se, mantenha-se em harmonia com todos que o cercam.

Fale a sua verdade, clara e mansamente.

Escute a verdade dos outros, pois eles também têm a sua própria história.

Evite as pessoas agitadas e agressivas: elas afligem o nosso espírito.

Não se compare aos demais, olhando as pessoas como superiores ou inferiores a você: isso o tornaria superficial e amargo.

Viva intensamente os seus ideais e o que você já conseguiu realizar.

Mantenha o interesse no seu trabalho, por mais humilde que seja, ele é um verdadeiro tesouro na continua mudança dos tempos.

Seja prudente em tudo o que fizer, porque o mundo está cheio de armadilhas.

Mas não fique cego para o bem que sempre existe.

Em toda parte, a vida está cheia de heroísmo.

Seja você mesmo.

Sobretudo, não simule afeição e não transforme o amor numa brincadeira, pois, no meio de tanta aridez, ele é perene como a relva.

Aceite, com carinho, o conselho dos mais velhos e seja compreensivo com os impulsos inovadores da juventude.

Cultive a força do espírito e você estará preparado para enfrentar as surpresas da sorte adversa.

Não se desespere com perigos imaginários: muitos temores têm sua origem no cansaço e na solidão.

Ao lado de uma sadia disciplina conserve, para consigo mesmo, uma imensa bondade.

Você é filho do universo, irmão das estrelas e árvores, você merece estar aqui e, mesmo se você não pode perceber, a terra e o universo vão cumprindo o seu destino.

Procure, pois, estar em paz com Deus, seja qual for o nome que você lhe der.

No meio do seu trabalho e nas aspirações, na fatigante jornada pela vida, conserve, no mais profundo do seu ser, a harmonia e a paz.

Acima de toda mesquinhez, falsidade e desengano, o mundo ainda é bonito.

Caminhe com cuidado, faça tudo para ser feliz e partilhe com os outros a sua felicidade".

Espero tê-lo ajudado em seu trajeto e lhe concedido um bom exemplo.

Um cordial abraço,

Nicolas Flamel

Concluindo a interpretação daquelas advertências, respirou fundo, ponderando os pormenores do que lhe fora exposto. Havia muito a ser explorado e minuciado, criticamente, nos dias que estavam por vir.

Transformar algumas especificidades e se autoconhecer era um processo lento, gradual, doloroso, terrível, assustador e solitário. Minuto a minuto, hora após hora... enfrentar a própria consciência, o transportaria para a inevitável constatação de que, a verdade, se achava no mais profundo silêncio e na aceitação de seus desejos. Talvez, o seu excesso de ambição o atrapalhasse e, se amansado, se configurasse em uma experiência única de alimento tóxico ao espírito? Contrariamente aos seus impulsos em reprimi-los, os desenvolveria, admitindo que eram a predisposição que sempre procurara.

Quem sabe, William Blake tivesse razão e, a estrada do excesso levasse ao campo da sabedoria? Isso lhe orientaria a supor que, San Ignacio de Loyola, estivesse correto... guerrear contra as paixões funestas e combater as próprias fraquezas, acarretaria o colapso dos medíocres e relegaria os fracos a outro rumo.

Como um soldado, desarmado e ferido, o ignorante se renderia à finitude quanto perdido na escuridão. As trevas convidam a todos a confrontar os próprios medos, os terrores mais íntimos e os pensamentos mais obscuros... era ela que expunha o único inimigo capaz de destruir a alma. A própria sombra e os sonhos, reduzidos à mesquinhez do oportuno egoísmo, davam espaço ao terror que surgia durante a noite e apagavam a luz das estrelas.

Retornando ao laboratório, sorrateiramente as horas voaram, imerso na mais absoluta quietude. Refazendo os procedimentos e revendo os recursos, lia compulsivamente e deixava os caldeirões fumegarem progressivamente. Atestando os progressos, bufava com as intermináveis frustrações... não descansaria até obter o êxito. Mesmo que, para tanto, se entregasse totalmente à solidão a qual os eruditos se submetem.

Não mereceria ter o coração de Narcissa até que, as incertezas parassem de agir com tanto domínio, em seus gestos. A tristeza e a melancolia o impediam de olhar para o que abandonara e enxergar o futuro diante de seus olhos. Era divertido torturar a sua alma com as confusões e o ceticismo crescentes... o trajeto isolado que teria de passar para se modificar, se converter a um ser mais correto e decente.

Reflexões que exteriorizavam a sua ansiedade e as antevisões de que, desde que as suas ilusões transcorreram como planejado, o mundo se evidenciara como bem mais hostil e cruel com o seu coração e as suas aspirações íntimas. Ou era isso que os espíritos maléficos esperavam que julgasse?

Snape dobrava as mangas da camisa, sentindo o suor escorrer pelo seu rosto e o desconforto aumentar. Uma inquietação despertada pelas sensações que se espalhavam por todo o seu corpo... eram um sinal do que estava por vir e do que lhe aguardava se não ficasse atento.

A obra perversa dos gases venenosos, que corrompem os alvéolos pulmonares, se impregnava em seu sangue e o faziam ferver. O calor percorria, cada partícula ínfima de suas células, disputando o seu espaço com os calafrios sucessivos... na fumaça do enxofre, o oxigênio se esvaia, cortando qualquer milímetro do seu ser. Matando aos poucos, em meio aos delírios horrendos, quase o derrubando. Girando a varinha, dissipou o gás e estimou que, o seu juízo, se esvaíra perante a apreensão e a sensibilidade de sempre julgar qual era o preço de sua vitória.

- Vamos, corvo alado, relembre e pondere o que a sua vontade ama e, o que o seu entendimento, conhece. Só você tem acesso às cavernas mais íntimas de sua alma. Seu valor, profundo e multiforme, é a sua faísca mais ardente, a sua luz viva... é o que orienta a sua vida, muitas vezes, concentrando a atmosfera de erros entre a purgação, iluminação e contemplação – afirmou, encarando o seu reflexo, para o líquido prateado que fervilhava.

- Analisando a Teoria de Paracelsus, é importante ter em mente que todos os corpos orgânicos e inorgânicos são resultado de uma combinação de proporções diversas e difusas. Três substâncias constituídas de princípios básicos... a tríade alquímica, que compõe o universo é o chamado Coito do Rei e da Rainha, ou o Casamento da Morte, representado por uma relação sexual dentro de um sarcófago – recitou, com os olhos fechados, como se precisasse redecorar os fundamentos para afastar uma pequena hesitação.

- Enxofre, Mercúrio e Sal... excluindo, assim, o Orvalho. Embora, ele sirva para umedecer a matéria prima e impedir possíveis queimaduras ou explosões, a sua composição originaria o contrário. Causaria combustão e a morte de quem o manuseasse. Isso se deve a estrutura do Enxofre, um elemento rígido, severo e imutável. Um verdadeiro abrasador, prestes a entrar em ação, ao receber qualquer sinal de faíscas... um real refratário - prosseguiu atento às próprias palavras.

- O Mercúrio, por sua vez, é flexível, transitório e volátil. A primordial quintessência do espírito de todas as coisas, personificando o Spiritus Mundi. A alquimia simboliza tal encontro sagrado e o define como masculino e feminino, respectivamente. Quando se une ao Enxofre, forma um enlace perigoso e sensualmente atraente aos olhos. O Sal seria uma espécie de elo entre eles... um solvente natural, responsável pela fluidez fundamental para estabilizar e ligar ambos – respirou profundamente, examinando as frases ditas, elaborando alguma teoria em sua mente.

- A energia vital que os une pelo corpo e pela arma, que os amarra e alucina aqueles que não estão preparados para o poder que emanam juntos. A junção que também pode ser ilustrada pela luta do dragão alado com o dragão áptero – concluiu, desvendando a chave do arcano, após meses de tanto ardor com relação ao tema.

Ao decifrar o cosmos, que se estende e se reorganiza para sustentar o seu próprio equilíbrio, se distanciava da dor e atingia a legítima consciência dos efeitos de seus atos. Seus músculos agiam como os fios condutores, seus vasos sanguíneos os líquidos que possibilitavam a expansão dos pequenos choques elétricos, concedendo suas conexões às ondas magnéticas. Se amplificando, com a mesma força da mutabilidade dos afetos e da sensibilidade, os ossos moviam a inalterabilidade e o autodomínio, coordenando a intensa perfeição das mais íntimas intenções.

As poeiras do universo, partículas dos deuses ou da metagaláxia, escondiam nos átomos toda a imortalidade. Mesmo que, tal apuração, não fosse nada mais do que uma metáfora espiritual para a elevação da própria alma. Os mesmos que conduziam a uma intimidade iminente à sensualidade transitória, entre as luzes e as sombras, na transição de quem se era e de quem se pretendia ser.

Quanto a isso, bastava lembrar que se colocara em uma posição arriscada, desde o início, sem medir o quanto se aproximava da total perda do seu senso de controle. O gravitas in sensu imperium o carregava para a estrada solene de cobiçar o que lhe era desconhecido. Assimilando o todo, detestava a sua essência... todas eram acentuadas com as cores do céu noturno, as doces palavras dos romances e, o convencimento de que, o amor era um ato de pura fé.

Bufando baixo, viu que Orestes o esperava no quarto, encarando a carta sobre a mesa... chirriando como se lhe relatasse algo importante que vira ali. Nos papéis, se encontrava a sua certificação como Mestre em Transfiguração com as congratulações do título recebido, enviada pela escola de Beauxbatons. Em outra, os documentos para a sua transferência da Sorbonne para Oxford. Realmente, era uma questão de dias para retornar ao Reino Unido.

Snape sentia a sua cabeça girar, com a série de temas novos que se somavam aos antigos, sem a possibilidade de resolução à sua maior dúvida. O fato, que mais lhe chamava a atenção, era que as respostas surgiram como gotas de chuva no verão... as lágrimas do céu, que serviam para lavar a alma e para clarear as memórias. Com tais incertezas, foi se deitar, meditando a respeito de tudo o que lhe fora evidenciado.

Contudo, um estranho e potente pressentimento o fez acordar dos sonhos. Desesperado e desnorteado, com os sentimentos e as percepções que o dominavam, não fazia ideia de como agir ou como proceder diante daquele novo problema. O primeiro grande confronto se iniciara... a clareza em reconhecer o quanto o medo, o receio e a própria cegueira, foram as maiores responsáveis por sua conduta perversa, o abalara. Como pode ser tão egoísta e ruim, a ponto de nunca se preocupar com aqueles que o cercavam? E se sua irmãzinha o considerasse um monstro?

Aquilo, mais do que passar horas e horas se martirizando pelos enganos e posturas controversas, era um jeito efetivo de recuperar o fio da vitalidade que lhe restava. A vingança ainda o consumia, criando um conflito paradoxal em que se machucava muito mais do que feria os outros, resultando no seu distanciamento do que e de quem importava. De que forma lidaria com o remorso crescente e inconfessável? Pedir perdão bastava para obter o carinho e o respeito que perdera?

Resoluto, em sua decisão de renunciar as suas mil faces e se libertar, aspirando o ar para se sentir mais leve. Voltaria sem a máscara, desprovido de ilusões absurdas e reconstruiria a sua vida. Confiaria, só no que obtivera por seus méritos e no que, seguramente, desejava para si.

Porém, para alcançar o seu interesse, teria de se livrar do incômodo que o perturbava... seu coração doía, como jamais sucedera. Por mais tentasse, naquele instante, se esconder por trás das suas barreiras do Mens angustos, nada funcionava. Sua mente abrira uma franca batalha para a autopreservação. O Unum já agia e se mostrava mais forte, insano e assustador.

Intimamente, sua impressão era a de que tudo ficaria ainda pior. Se enfrentasse ou tentasse fugir, daquela maldição a qual se deixara controlar, debilitaria a própria magia e se destruiria... era o fim do mundo e o desfecho de tudo.

Na semana em que, Bellatrix anunciara os seus 7 meses de gravidez, o planeta pareceu virar do avesso. Uma calma desconhecida se estabeleceu para o momento mais importante de todos... a tão distinta magia, que emanava do ventre, surgiu para virar os polos e reorientar os barcos perdidos no breu. O elo que os ligava parecia ter se acalmado.

A mansidão dos dias, transparecia no nascer do sol, aclamando o porvir. Os templos, as praças, os navios, as pontes, as fábricas, as casas e, até mesmo, os montes mais altos, vibravam em incontestável beleza e preocupação. Eram forças ocultas que impulsionavam a continuar o seu plano e revelar o segredo para que Andromeda o ajudasse.

O primeiro passo, ao retornar ao Spinners End, foi agarrar os frascos... os destruindo, com as próprias mãos, deixara que o sangue vertesse enquanto os cacos se perdiam pelas ruas. Era necessário... mesmo que, a sua vida ainda fosse uma enciclopédia de crimes e erros, soterrando o próprio ser em meio à sujeira e a degradação da guerra em que se envolvera, o fundo do poço estava muito longe.

Dançaria, de olhos vendados à beira do abismo, cortejando a insanidade e a desgraça que se avizinha, caso o pedido fosse negado. Era o caos, em que seguiria atento e decidido, vagando rumo ao ciclo mais profundo do inferno de Dante. Analisando os horrores que o esperavam, notara que as pedras do orco pararam de rolar.

A Fonte do Esquecimento, novamente, o chamava... com as suas águas cristalinas e venenosas. Almejava ir mais longe. O barqueiro Caronte receberia as suas três moedas, para ultrapassar e seguir no seu partir-andar até o Lago da Memória, em um claro aviso de que os portões de Hades se achavam abertos. A verdade era que, antes do coração poderoso se tranquilizar, Cerberus o devoraria e a paz jamais seria estabelecida.

Erros irreparáveis foram cometidos, acertos irretocáveis esperavam seu reconhecimento nas mal traçadas linhas relatadas, em detalhes que decretariam a sua morte. Foi, nesse instante que, as trombetas soaram alto. Poderosas e veementes, acentuando os terrores profundos nos olhos daqueles capazes de escutá-las.

O tempo passara mais depressa que o calculado e, naquela noite às vésperas do final do verão, Mabon ainda o protegeria? Recordaria do quanto Narcissa a cultuava e perdoaria os erros daquele que tanto a amava? Não saberia ao certo como responder... especialmente, após receber a notícia de que o Unum só poderia ser rompido depois do nascimento de Hermione.

Ao mesmo tempo em que, Snape pesava os seus pensamentos e como proceder, Bellatrix revelava a sua decisão de se casar com Sirius. Ela se achava verdadeiramente feliz, convidando a todos para o matrimônio, sem impor qualquer tipo de restrição. Seu comportamento e a chegada de tal notícia inesperada, pegou a todos de surpresa... especialmente, pelo motivo de que não fora avisado ou houve uma solicitação para que Voldemort permitisse a união.

Havia algo estranho ali. Embora jurasse fidelidade irrestrita à causa, sua atitude levantou suspeitas e comentários, sendo observada como uma afronta. Um deslize imperdoável. Provavelmente, seria a primeira a desertar quando a guerra eclodisse.

Analisando os fatos e ouvindo a opinião dos seus Knights of Walpurgis, friamente, o Lord das Trevas concluiu que não deixaria passar em branco tamanho desacato. Outros, após esse insulto, acreditariam na impunidade à rebeldia ou gestos contestáveis. Cortaria o mal pela raiz e a usaria como exemplo aos demais.

Assombrosamente quieto e cuidadoso com as palavras, em seu íntimo, presumira que, para Bellatrix, ter sido marcada e torturada em frente a Delphini não fora o suficiente a fim de que reconhecesse qual era o seu lugar. Era só um simples objeto, uma peça facilmente descartável e uma mulher fraca.

Logo, ao seu ver, uma punição mais severa, era a resposta que a aguardava. A faria rastejar pelo seu perdão e examinaria os meios para o Suffragium perpetuum ou o Sanguine foedus não o matassem, enquanto a torturasse livremente.

- Minha cara, vejo que temos algumas... questões... para resolver. Creio que, esteja esperando a minha concessão para que você tenha o direito de se unir ao seu primo – argumentou com a voz sibilante, perigosa e gélida.

Com um gesto para que o acompanhasse, a um lugar mais reservado, andou com passos lentos e quase teatrais, desenhando os seus planos mais ocultos de vingança. O seguindo, muda e pensativa, concordava obedientemente. Ao mesmo tempo em que, a sua intuição, a avisava para se afastar.

Algo anormal se avizinhava, a pequena se debatia como se temesse qualquer coisa... o que havia de errado? Respirando fundo, Bellatrix colocou a mão sobre a barriga a acariciando.

- Fique tranquila, minha pequena rainha do Epiro, de Esparta e de Micenas... vai ficar tudo bem – sussurrou, procurando acalmar o bebê, não crendo em suas próprias frases.

Averiguando os pormenores da sala e imaginando todos os cenários do que sucederia, se preocupou. Seu coração estava inquieto e, o estrondo da porta se chocando contra a madeira, fez com que um leve tremor se espalhasse por seu corpo. Intimamente, pela primeira vez, deixou que o medo da morte a dominasse... não queria perder tudo o que tanto se esforçou para conquistar. Não desejava que o seu bebê falecesse.

- Meu senhor, eu... – tentou começar a se explicar e justificar os seus atos.

Entretanto, antes de concluir o seu raciocínio, foi atingida por um forte baque que a jogou no chão violentamente. Se esforçando para assimilar o que ocorrera e as motivações que o levaram a tamanha agressão, tentou se levantar inutilmente. O choque das costas da mão contra o seu rosto, fez com que tombasse novamente... atordoada e sem forças.

De joelhos, no chão frio de pedra, se viu indefesa. Não conseguia se proteger daquele homem, ao qual enxergava como uma religião, um objetivo à sua existência ou, talvez, alguém que ultrapassava todas as fronteiras do amor carnal. Sua vida era servi-lo e o agradar, realizando os maiores absurdos para obter o seu reconhecimento e admiração.

O adorava tanto que, não lhe negara o seu maior presente, a sua arma de guerra, o seu Augurey... ignorando, inclusive, o quanto lhe custaria abandonar a própria adolescência e os seus sonhos para se dedicar a uma criança. Desse modo, não assimilava e nem concebia qual era o seu erro ou o que fizera de tão grave para ser alvo daquela fúria descomunal. Se ele ordenasse, obrigaria Sirius a receber a Dark Mark, o tornaria um Death Eater. Por que era tão castigada?

- Você acha que pode levar o que me pertence? Se você alega me amar tanto, deve me obedecer cegamente e fazer somente o que eu mando! Ou já esqueceu quem, realmente, é o seu dono? – indagou a acertando com um soco.

Abrindo um corte profundo na bochecha, com um novo golpe, a segurou firme pelos cabelos para que o encarasse. Prolongaria mais a tortura, pois aquilo o fazia sorrir, maquiavelicamente, com todas as imagens de sofrimento que se formavam sem sua mente... quanto mais a escutava chorar, maior era a sua ânsia de vê-la agonizando.

Arrancando sangue dos lábios e do nariz, a medida em que os golpes ficavam mais fortes e intensos, passou a cogitar o que de pior poderia fazer para que Bellatrix se arrependesse. Tinha de ser rápido, para que a crueldade fosse maior, antes que ela perdesse totalmente a consciência.

- Por favor... não – murmurou, intentando, afastar as mãos de Voldemort que apertavam o seu pescoço, a enforcando.

- Você vai morrer por não ter cumprido as minhas ordens – declarou com ódio, reconhecendo os primeiros traços de asfixia, se excitando e alimentando a própria ira.

Não sentia qualquer tipo de desejo, a não ser o de dominá-la e a subjugar de todas as formas possíveis e imagináveis. Pretendia que sufocasse, que suplicasse pela própria vida, que admitisse não ser mais livre para fazer as suas próprias escolhas. Se debatendo, cravando as unhas em suas mãos, Bellatrix tentava de todas as maneiras escapar... se achava desesperada e não conseguia organizar as ideias que se chocavam em sua cabeça. Nada funcionava. O ar lhe abandonava os pulmões e, os seus instintos de sobrevivência, falhavam.

- Milorde... me ouça! Eu... eu... imploro... Juro que nunca irei abandoná-lo ou o trair. Sirius fará o que eu mandar... eu prometo – murmurou, com um fio de voz, prestes a perder os sentidos e as esperanças que ainda lhe restavam.

- Você não vai se casar com ele ou quem quer que seja... Bella, eu agradeço por sua disposição – sussurrou, próximo ao ouvido dela, ao perceber que os seus olhos estavam nublados e escuros.

Desfalecida, sozinha e estendida no piso frio, como um nada. Seu corpo era chutado e esmurrado, recebendo as ondas elétricas do Offensio, as dores se amplificavam e se acentuavam, ocasionando convulsões. Outros inúmeros feitiços lhe eram lançados, fazendo com que se contorcesse involuntariamente. Um fio azulado, sem demora, se projetava para fora de seus lábios entreabertos... uma magia desconhecida a circundou.

Os cristais explodiram no ambiente, conforme a magia formava uma espécie de bolha em torno de Bellatrix. Quente como o fogo, forte e poderosa, o suficiente para estremecer e pulsar... disparando uma força oculta, em direção ao Lord das Trevas, o açoitando.

Mais irritado e confuso com o que acabara de acontecer, ele se moveu e disparou um novo ataque, tentando desfazer aquela corrente... sendo rechaçado e jogado, imediatamente, contra a parede como reação. Aquilo o revoltou. Não admitiria que, nenhum núcleo mágico, ou o que quer que aquilo fosse, a defendesse. Ninguém controlaria um potencial e uma capacidade maior que a sua.

Seu ódio aumentava, vibrava em suas veias, o incentivando para que a atormentasse ainda mais. Bellatrix acordaria urrando de dor, como um animal ferido, à beira da morte. Nos olhos de Voldemort, o furor homicida palpitava, a encarando e apontando a varinha em sua direção... com as costas arqueadas, por novas oscilações do Offensio, uma alta voltagem lhe rasgava os músculos e a obrigava a recuperar a consciência.

- Essa maldita criança e aquele inepto do Black vão morrer... eu farei questão de esquartejá-los vivos na sua frente e jogar os pedaços para alimentar a Nagini – evidenciou, perturbadoramente, as suas idealizações a horrorizando.

Sem qualquer aviso, ainda mantendo uma expressão sádica e monstruosa, ele se aproximou. Seus olhos, firmemente focados no semblante assustado e confuso, apresentavam um brilho estranho. Volteando a varinha, lançou o Tormentis... uma, duas, diversas vezes. Os gritos por misericórdia ecoavam pelas paredes de pedra.

Experimentando a dor terrível de ter os seus ossos partidos, um a um, as lágrimas grossas e desoladas caíam pelo seu rosto. Instintivamente, abraçou a barriga, como se pudesse preservar o seu bebê indefeso. Seu choro desesperado se tornou mais forte... os vidros lhe cortavam os braços e as pernas, entravam em suas costas, dilacerando a sua pele... por sua culpa, aquele ser tão pequeno estava sendo torturado brutalmente e não receberia a oportunidade de conhecer o mundo.

Tudo aparentava ter se encerrado e o silêncio assustador se estabelecera no ambiente... calmo demais para ser real. Até que, a verdade regressou por meio de um soco, reiniciando o terror. Mais feroz, bestial e aniquilador, os novos chutes e murros, se intercalavam com diversos feitiços. Bellatrix via que, as suas forças a abandonavam, se extinguindo com a mesma rapidez que os seus olhos se fechavam inchados.

- Milorde... eu só estava cumprindo a minha missão. Por favor... não me puna mais, eu não falhei – sussurrou, sentindo a sua garganta áspera e dolorida, tentando pará-lo por conta de última imagem que vira.

O Lord das Trevas se aproximava... pesando e forçando, para o início do seu último ato de desumanidade. Mais sanguinário, cruel e truculento, extirparia toda a sua virtude e dignidade. Logo, arrancaria dela tudo o que mais amava. Era só uma questão de tempo para transformá-la em um tipo inumano e selvagem.