Snape largara as malas no chão da sala e se sentou no sofá, fechando os pequenos cortes nas mãos e tirando os cacos de vidro presos a elas. Olhando para o seu entorno, sentiu a solidão lhe pesar sobre os ombros, ante a ausência de Narcissa. Como pode ser tão cego, egoísta e ambicioso, a ponto de não notar o que lhe era mais importante? A sua rápida ascensão, dentro do ciclo mais íntimo dos seguidores de Voldemort, o iludiu e o fez crer que havia abandonado a sua condição de mera peça dentro da imensa engrenagem do tempo e dos acontecimentos.

Sorrindo tristemente, ponderou como se esforçara tanto para aprender como funcionava o girar daquela roda. O lento e intenso processo de ditar e de manejar os mecanismos da máquina de guerra, utilizando pessoas como uma criança moldando seus bonecos de neve, para descartá-los assim que o sol ressurgisse.

Era duro e doloroso, enfrentar aquelas paredes que lhe julgavam e condenavam... por muitos anos, avaliara estar fazendo o correto e que, ao lado do Lord das Trevas, ficaria muito próximo da perfeição tão almejada. Um tolo por imaginar que aquilo bastava para ser feliz. Ignorando os próprios sentimentos, por calcular os próprios passos, como se o afeto fosse um inesgotável plano de altíssimo risco.

Estabelecendo tantos limites para si, esquecera do menino ansioso e com sede de saber, virando os seus verdadeiros sonhos de cabeça para baixo e deixando que a escuridão o dominasse. Quando a luz se tornara algo distante, as trevas viraram conselheiras e lhe impuseram uma nova rota a seguir. Ou fora ele mesmo o causador da própria desgraça?

Curiosamente, por mais que vagasse, sempre retornava àquela casa em que nascera. Modificando e reconstruindo a sua verdade, ainda desconhecia o instante em que tudo se perdeu. Em qual ocasião permitira que, o destino impiedoso, cumprisse a sua promessa de mantê-lo separado do que mais desejava?

Tudo seria tão simples se pudesse dormir pela eternidade ou refazer todo o seu caminho. Contudo, por mais que odiasse admitir, para sobreviver teria de recolocar a máscara de Death Eater. Fingir que se divertia em assimilar como, o enrolar das cordas e prendê-las entre os dedos firmemente, lhe davam forças e autoridade.

Teria de enfrentar as suas obrigações e, por melhor que quisesse ser ou se metamorfosear, não seria capaz de voltar atrás... pelo menos, não de imediato. Certamente, derramaria muitas lágrimas, se deixaria levar pela culpa e ser soterrado pela pesada bagagem de seus atos e por seus crimes.

Respirando fundo, as árduas sensações lhe apertavam o peito. Era esse o futuro que o pequeno Severus sonhava? Fora isso que fantasiou ao se perder nos olhos de Narcissa? Será que a violência era a maior e única herança que recebera, daqueles que o cercaram, durante toda a sua existência?

- Por que o senhor me jogou nesse inferno sangrento, pai? – se questionou, esmurrando a bancada à sua frente, com os olhos escurecidos pelos pesadelos contínuos.

O falso contentamento de ter habilidades para controlar e movimentar as inúmeras marionetes que ganhara, agora, lhe enojava. Perdera as contas dos dias em que andava alucinado, rente ao precipício de sua jornada, deduzindo ser o trajeto para a totalidade. O que era incontestável, em tudo o que vivenciara, se referia ao fato de que nada e que ninguém poderia enforcá-lo. Qual louco o faria?

Aqueles que o odiavam não teriam coragem suficiente de o enfrentar. Somente o próprio Voldemort pudesse destruir tudo o que lhe era conhecido e, nesse sentido, a morte se apresentaria como uma verdadeira gentileza ou um acordo entre cavalheiros.

A benção ou a punição de não retornar à casa em que se escondiam as feridas ainda abertas. Por que o adulto nunca revelara à criança que não seria fácil? Queria confiar que ele considerasse que não haveria dificuldades, porém era difícil acreditar em tamanha sinceridade e decoro.

A superioridade e a influência atribuídas à figura que representava, o seduziu tanto quanto a ideia de que respiraria o aroma de morango e baunilha. Porém, levemente tudo se modificou... o bálsamo passara a emanar os odores sensuais de jasmim com rosas, efetivando a necessidade de transformação. Não queria mais agir como um tirano.

Respirando fundo, percebeu que, de todas as drogas que experimentara para suportar os horrores que causara, o cheiro de tudo o que mais amava era o único verdadeiramente capaz de entorpecer os seus sentidos. A tempestade daquele olhar evidenciava o jogo cruel em que, exclusivamente, ela era capaz de o salvar de si mesmo.

Encarando a máscara, que o convertia em um homem de mil faces e múltiplos enganos, progressivamente se vestia de frieza e silêncios. Voltaria a compor a dupla de generais que destruiria o mundo bruxo em um piscar de olhos. Ao lado de Bellatrix, se comportaria como um monstro sanguinário e sem alma. Era, essencialmente, o que ambos deveriam ser. Talvez, até ultrapassassem o esperado, se metamorfoseando em algo muito pior.

O que mais teria que realizar? Não poderia romper o acordo travado, nem reverter o que realizara até então. Projetar metas era perda de tempo e, indiscutivelmente, manifestara não ser o seu forte. A sua nova completude o submetia a refletir qual era o exato limite para medir a maldade e a barbárie. Uma dúvida que levantava novos questionamentos íntimos... até que ponto seria capaz de ir contra a própria vontade?

O mundo sempre se expôs como possuidor de coisas prestes a serem quebradas, um amontoado de mentiras que se perdiam entre lágrimas e uma reunião de fragmentos soltos que se perdiam entre lágrimas. Com o sol nascendo voltado àqueles que mereciam os seus raios, os demais se enxergavam como restos vagando pelas sombras. Era o que a vida lhe ensinara.

Amaldiçoados fossem aqueles fadados a substituir os fios de ouro por correntes. Maldito fosse o dia em que cogitara deixar de se inebriar com narcisos para se envenenar com orquídeas e lírios. Não eram todas as flores que traziam bons sonhos, muito menos, eram detentoras da mais doce raridade ou de delírios.

A perda de sua bétula, que o fez crescer como o mais belo e forte carvalho, fora responsável por seu atual estado mental abalado. Ausente de si mesmo e perdido no sofrimento, desejava alterar a bétula em faia, buscando modos de lidar com as próprias incertezas sem o seu apoio.

Inerte, olhando para a bancada organizada, se sentia como uma ampulheta imóvel. Bêbado pela dor e pela angústia, foi jogado à realidade concreta e inflexível, ao terminar de acomodar os seus pertences. Era tempo de renascer e de se concentrar em se restabelecer nas suas antigas funções após tanto tempo afastado.

Um estrondo interrompeu as suas meditações e o ajustar dos frascos nas estantes. Fall atravessara a janela da sala, estilhaçando o vidro, como se pedisse socorro. Subindo a escadaria rapidamente, Snape notou que a coruja o procurava e batia as asas com força. O que causara tamanho desespero por atenção?

- Pare quieta agora, sua coruja estúpida! – esbravejou, quase rangendo os dentes, numa clara demonstração de que estava prestes a perder a paciência.

- Fique parada! – afirmou, com uma falsa indiferença na voz, enquanto pegava algumas poções para fechar os cortes abertos nas asas e no bico da ave.

Simulando ignorar toda aquela aflição, refletida nas reações da coruja, se inclinava a recordar o tempo em que não via motivos para ter qualquer empatia pelos sentimentos dos demais. Era tão autocentrado que só estimava o quanto as suas afeições e ligações haviam sido rompidas. Supunha que, se expor tão frágil e necessitado, era uma revelação de suas fraquezas e medos. Entretanto, nunca se despira das inclinações e quedas aos contínuos vícios da paixão... renegando o que julgava um defeito, por anos, permanecera convicto de que a crueldade e horrores eram os melhores amigos.

Afastando o menino Severus do homem Snape, irrevogavelmente, como se não lembrasse mais de quem era para sobreviver. Dissociando e assistindo a um filme de terror, ao qual protagonizava, com as mais terríveis atrocidades. O jorrar do sangue, os gritos e as lágrimas foram como gotas de orvalho nas manhãs de primavera já distantes. Era o fim do mundo e de tudo ao que depositara a sua fé. Um passado ao qual gostaria de apagar e concluir aquilo que, erroneamente, crera ser fundamental para a continuidade de sua existência.

Contudo, não era fácil. Um lado sombrio de sua alma se achava, confortavelmente, obsessiva em agradar as deliberações e as exigências do Lord das Trevas. Nenhum ópio, amor ou exame de consciência acalmavam essa funesta vontade. Uma força oculta que o forçava a prosseguir e alimentar a sua compulsão ininterrupta por estarrecer as famílias bruxas e atormentar o Ministério da Magia. Principalmente, por reverenciar a sensação agradável de insanidade e crueza, a qual se deparava ao ser descrito como compatível ao demônio.

Tentando afastar os maus pensamentos, sua mente o carregava para memórias não tão distantes, em que sorria ao gerar medo. Como um monstro se esgueirando pelos cantos, prestes a tomar o espírito dos mais puros, se confrontasse o espelho veria o rosto de Tobias no lugar do seu. Não era algo para se entristecer... mas, de se envergonhar os anos em que festejara tais sucessos.

O impulso, uma vez fascinante e tentador, não seria o despertar da própria libertação de todas as suas antigas razões? Com tais conjecturações, despejou os últimos líquidos e manifestou uma estranha expressão de felicidade no rosto, verificando a cicatrização das asas de Fall.

Se encontrava decidido a enxotar aquela coruja de sua casa. Não queria que ela importunasse Orestes com a sua presença. Acima de tudo, não suportava encarar aquele animal à sua frente... fora ela a portadora da carta em que Narcissa o expulsava de sua vida. Também não queria ler o conteúdo do pergaminho que ela lhe trouxera. Quais notícias lhe trariam?

Atirando sobre a mesa o pequeno rolo e limpando as manchas de sangue, sentiu uma estranha sensação de angústia atravessar o seu peito. O que estaria sucedendo para que aqueles abalos se intensificassem e se tornassem tão frequentes? Com a respiração rápida, o coração acelerado, sufocando e quase perdendo a consciência, Snape se deitou no chão, apoiando as pernas na madeira.

Estava tendo um ataque de pânico, dada a força com que aquela comoção o atingira e os seus pensamentos o acusavam... um rumor oculto, uma ligação forte lhe cortando a mente e congelando a espinha. Era como se a abundante magia sussurrasse o seu nome, o chamando para o desconhecido.

Talvez, tamanha crise de ansiedade, se tratasse de sua escuridão e da sua constante luta para manter a psique intacta. Quem sabe necessitasse aprender a soltar o seu demônio interior, nos momentos oportunos, ao invés de lutar para prendê-lo? Respirando fundo e sentido que restabelecera o próprio domínio, se ergueu lentamente.

Desconsiderando a emoção extrema que experimentara, desceu novamente as escadas para trabalhar um pouco no laboratório. Precisava se recuperar da inexplicável tontura, para dar prosseguimento aos seus estudos e reavaliar os seus novos planos. Não existia qualquer coisa que o fizesse se preocupar. Por que se achava tão alterado?

Se funcionassem as suas idealizações, a sua primorosa existência se desenharia como doce e totalmente louca. Com instantes insanos, intensos e belos, finalmente, seria feliz. Desprezando a antiga postura, de se divertir com o rompimento de promessas e a destruição de corações, se orgulharia do seu novo eu. O mundo e a vida já eram suficientemente injustos, como um todo, para que também o fosse. Ou deveria?

Perpetrando, com maestria o mover de suas mãos, seus gestos eram friamente calculados. Medidos como as palavras que usaria para obter a atenção e o respeito dos demais. Recompondo a malograda postura de se despossar da própria existência para representar alguém que odiava ser.

Trilhando aquele destino tão vazio, mórbido e solitário, desde que prometera refazer os laços perdidos, seus passos eram marcados por sangue e morte. As suas antigas ambições ainda o projetavam para uma meta absurda e se detestava por ter comprometido todo o seu futuro daquele modo indestrutível. O que o impedia de se jogar no abismo? Qual o fator que impossibilitava a sua gana de vivenciar a morte em vida? Já se via muito perto de enterrar o seu direito de querer e de amordaçar a sua capacidade de amar.

- É meu amigo Amanita muscaria, hoje você me auxiliará na busca pela sabedoria divina, como tantas vezes o fizera pelos druidas – murmurou, pegando o cogumelo vermelho de seu estoque, para consumi-lo.

A culpa e a raiva, naquele ponto, o convertiam em alguém mais destrutivo e mordaz. Deixando que o seu lado mais doentio e violento se libertasse, transparecia uma face hedionda e selvagem. O homem ao qual muitos queriam distância... o ser que sempre se dispusera a atacar quem cruzasse o seu caminho.

Alucinando, os bons pensamentos e as esperanças de ser o responsável por atos benevolentes, se esvaiam um a um. Recorrendo aos delírios para saciar as suas necessidades básicas, assustadoramente sádicas, abrira alguns cortes nos próprios braços... à medida que o sangue pingava no chão, ponderava que a desgraça de sua biografia era um jogo dos deuses.

Os espíritos eram os vultos da morte, o rondando, lhe oferecendo o maligno xerez. O entorpecimento de seus sentidos, com o rancor ressurgido, lhe privava de qualquer afinidade por algo. As vozes lhe sussurravam frases indignas, sibilavam sordidamente, ecoando ideias sujas e repulsivas em sua mente.

Incessantemente, os fantasmas afirmavam que a resposta para as suas dúvidas era a força. Viveria pleno quando se transmutasse em uma rocha, um soldado insensível, um morto-vivo. O que quer que isso significasse deveria ser o impulso para desviar à estrada dos elevados níveis de prazer e esquecimento.

Em um quase hedonismo às avessas, Snape aguardava o momento em que os mármores brancos se romperiam e a verdade se alçasse impiedosa. Ambicionava ser arrastado para o inferno ou qualquer outro espaço em que lhe rasgassem inteiro. Onde pudesse amargar eternamente.

Se deslocando, pelos corredores e se encaminhando para o andar superior, descalço e alheio a tempestade que se formava no horizonte, estava perdido. Provocando o vislumbre do clarear das ocorrências perante o padecimento e tudo o que ficava ao seu redor, se sentara no chão ao chegar aos fundos da residência.

No fundo, enquanto o seu corpo se encharcava e a sua alma era lavada, múltiplas cores se convergiam diante de seus olhos. Ficaria purificado após toda aquela vertigem e tontura... alienado e insano, fortuitamente, sua imaginação lhe fazia vagar pelos campos de trigo. Era ali que tencionava encontrar a libertada que, um dia, lhe fora anunciada.

Com o vento oeste batendo em seus cabelos, os chicoteando contra o seu rosto, escutava a voz de seu coração falando muito mais alto do que a sua sensatez... melodiosa, suave e de linguagem afável, o som deleitável da dicção perfeita, pronunciava tudo o que mais amava. Tonto, se enxergava como um condenado pelo arrependimento e assombrado pelos cadáveres que carregava em suas costas.

Uma fração, um acessório, uma parte dentro do todo... mais um na multidão de desgraçados e de amaldiçoados, que girava o globo terrestre e lavava com o próprio sangue o chão dos afortunados. Porém, longínquos e profundos, os seus olhos podiam ver o que e quem lhe interessava. Mesmo que fosse através do espelho dos desejos e dos devaneios mais puros, há tempos, contemplava o que lhe era extremamente valioso. Algo que não fora feito para ser esquecido ou abandonado.

Sem o fundamento concreto e separado da sua legítima natureza, a existência se extraviava ante a imprecisão das cogitações sobre a constituição das almas. A mesma revertida de duas em uma única entidade, se convertera em questões muito mais plausíveis do que se dispusera a revisar. Havia identificado a sua verdade através da privação de sono e do abuso de narcóticos.

Identificando o próprio erro e o quanto se destruía, ainda insistia que aquela era a sua única maneira de se sentir estimulado para meditar quanto aos rumos mais evidentes que seguiria. Não suportava mais perambular errante, melancólico, solitário pelas sombras. Se conceder ao fracasso e cair nos recantos obscuros da tristeza, era uma alternativa para detectar o próprio contentamento.

Horas passaram em uma complexa e abstrata quietude absoluta. Submerso na própria consciência, como se o silêncio exterior pretendesse calar os seus gritos internos, aos poucos se libertava do seu estado mental confuso. Se levantando para retornar ao interior da casa, sentia um novo e forte abalo o dominando novamente.

Como se as paredes da cozinha e da sala diminuíssem para esmagá-lo, o sentimento enlouquecedor de medo governou os seus instintos. Colocando as duas mãos nos ouvidos para vetar os zunidos que se apoderavam de sua audição, sua respiração se tornara rápida. Seus pulmões ardiam pelo ar ácido que martirizava o seu corpo.

Mais forte e aterrador, seus membros não lhe obedeciam... os pixies de seus olhos analisavam todos os detalhes em vista de uma provável explosão. Como um náufrago, prestes a se afogar, Snape se observava muito próximo à queda. Sua lucidez se preparava para se esvair na escuridão, tal qual grãos de areia ao vento, o obrigando a lutar para permanecer consciente.

Com o raciocínio rápido, rastejando no chão até a geladeira, agarrou a primeira garrafa que as suas mãos alcançaram... bebendo grandes goles de água, recuperara a estabilidade de sua glicemia. Borbulhando, agonizantemente efervescente, as lágrimas em seus olhos embaçavam a sua visão ainda turva.

Segundos, para desmoronar completamente e morrer sozinho, foram indispensáveis para que pudesse fixar toda a sua atenção no tampo da mesa. Reparando a presença do pergaminho, ainda enrolado e há muito esquecido, o pegou para ler o seu conteúdo... de cáustico, o ar, misteriosamente se transfigurou em puro.

Examinando o que se mencionava no pequeno bilhete, avaliou cada particularidade do que lhe era relatado. Horror era o que definia o nível de bestialidade empregado na punição que Bellatrix sofrera.

- Como ele pôde? – Snape se indagou estarrecido com a narrativa, largando o pergaminho e correndo para reunir o máximo de poções e pomadas que dispunha em seu estoque.

Às pressas, trocava as próprias roupas e jogava água em seu rosto, para se recuperar. Sem ser capaz de refletir direito o que faria, sua única certeza era a de que não a deixaria morrer.

Angustiado, atravessou a porta e apreciou o próprio corpo girar no impulso do Evanescet. O qual, em uma viagem curta dentro do misterioso enigma do tempo-espaço, com o Videntur, o fez chegar ao lugar planejado. Se ela perdesse a vida, seria terrível. Todos os princípios e fundamentos, pelos quais brigara, se perderiam.

Independentemente de Hermione ter se tornado uma memória vencida, esquecida tal qual um sonho distante, não gostaria que sucumbisse por sua culpa novamente. Não merecia fenecer em sofrimento.

Como se estivesse dentro de um sonho abstrato, os seus piores pesadelos e os seus maiores traumas, repetidamente vistos na Pensieve se repetiam. Durante todo o trajeto, quase automático na Black Manor, os corredores se desenhavam como borrões. Tonalidades cinza, vez ou outra, eram substituídas pelos vultos noturnos.

Raios, relâmpagos, trovões estrondeavam no céu, chegando a estremecer o chão, dada a sua potência caótica. O bafejar gélido da morte, em sua nunca o estremecia, modificando o curto espaço em uma distância gigantesca.

Não havia mais tempo a perder e muito menos para se combater com a própria consciência... o pequeno Severus e o homem Snape tinham obrigação de voltarem a ser um só, quando o futuro preterido virava presente. Revoltado e reflexivo, quebrara entre os dedos o último frasco. Seu último laço, com o seu outro eu, se perdera para sempre junto ao fio prateado que se desfazia no ar.

Um novo mundo, uma nova vida se iniciava, ainda que fosse através de uma repetição hedionda do que considerara o pior dia da existência de qualquer pessoa. Talvez, aquilo representasse o fim de um ciclo e de uma fase de resistências.

Entrando no quarto, mal iluminado pelas velas, tudo se expunha como mais tenebroso e perturbador. A água quente e viscosa, o sangue abundante de uma provável hemorragia interna, manchava os lençóis. Suas avaliações e cautela eram nulas diante da cruel ausência de respostas. Sobretudo, quando os cortes e os hematomas se espalhavam por todo o corpo de Bellatrix, o assustando com o que mais poderia ter sucedido.

A ideia de que a morte a atingira, como um punhal embebido em veneno, descortinava o cenário terrível na sua frente. Sua vontade era a de sair dali e arrancar as vísceras de Voldemort com as próprias mãos... no entanto, ainda era incapaz de realizá-lo.

- Meu caro senhor, eu acredito que chegou o momento em que eu trarei novos elementos para a guerra – disse se culpando, com renovado desejo de vingança na voz, ao verificar os batimentos cardíacos.

Era sua obrigação mantê-la segura... porém, o seu egoísmo, o impedira de ver que ela ainda era só uma menina de 19 anos. Alguém que desejava ser, insuportavelmente, feliz ao lado do primo. Agora, seus sonhos estavam destruídos. Sua pele pálida e gélida, a respiração fraca, denunciavam que a alma aos poucos lhe abandonava. Provavelmente, sucumbiria com o bebê em seu ventre.

As pernas de Snape quase falharam ante tal constatação. Sua coragem se esvaia como água sob o sol no deserto, ao ponderar todas as variáveis de como socorrê-la. Com a pulsação falhando algumas vezes, todos os cuidados pareciam quase nulos.

- Bellatrix? Bella, não faça isso... você é forte! Não desista, Gamma Orionis – afirmava, usando o antigo apelido, ao sacudi-la pelos ombros.

- Eu não sei como proceder para lhe ajudar, contudo saiba que eu não vou permitir que expire... entendeu? Não haja como uma obtusa, porque você pode ser qualquer coisa, menos uma tola – dizia, atropelando as palavras, meditando quanto aos procedimentos básicos de primeiros socorros.

Perto de ter uma crise de ansiedade, Snape respirou profundamente. Não poderia se abalar, especialmente quando Hermione começara a chutar ferozmente, como se exigisse que fosse salva. Soltando, cuidadosamente o corpo de Bellatrix na cama, a amparou.

A segurando pelo queixo, para realizar a reanimação cardiorrespiratória, oscilava entre as massagens e o soprar de ar para os pulmões. Nada parecia funcionar... até que, beirando a exaustão, ouviu um ofegar baixo. Não confiando em seus sentidos, levemente passou os dedos próximos à boca, experimentando a sensação do vento quente os tocar.

- Finalmente... – sussurrou aliviado, a encarando seriamente, girando a varinha para aliviar a gravidade dos ferimentos.

O remorso era um inimigo destruidor e potente, que se alojava em cima de seus ombros, com o passar dos anos. Era o único responsável por tudo aquilo... nauseado e meio zonzo, ao detectar que a hemorragia maior era resultado de um estupro, vomitou o líquido escuro preso em sua garganta.

Acelerando o processo de cura das lesões, Snape esquecia do próprio cansaço e perseverava. Esfregando as pomadas cicatrizantes, em cada uma, inspecionava o restabelecimento dos tecidos e vasos rompidos. Ainda considerava muito pouco... os procedimentos continuariam até que se desse por satisfeito com o resultado de todo o seu empenho.

Erguendo um pouco o rosto de Bellatrix, fez com que ela ingerisse um sem-número de poções... restituição de ossos e músculos, reposição de sangue, fortificantes e, por último, alguns tranquilizantes, tudo se voltava para que o seu núcleo mágico não ficasse ainda mais abalado. Carecia que ele fosse recomposto para que não definhasse.

A examinando, novamente, notou que a respiração e a pulsação se normalizaram. Em silêncio, limpando as mãos em um pano branco, começou a recolher os frascos jogados pelo chão do quarto. Com o Unum atuando, mais uma vez, seus pensamentos e o seu coração lhe diziam que era interrogado quanto aos acontecimentos.

Hermione estava assustada e com medo. Era pequena demais para compreender os motivos que levaram àquele ataque... porém, não existiam respostas que pudessem ser dadas. Snape, se achava tão indignado e agoniado que, era incapaz de interpretar toda aquela selvageria. Se mostrava abalado demais para explicar algo, para quem quer que fosse, pelas lembranças que aquele cenário lhe despertara.

- Você é bem mais irritante do que a pessoa que eu vi na Pensieve, Hermione... você não foi atacada e, sua mãe, ficará bem. Logo, aquele idiota do seu pai estará aqui e protegerá vocês – falou, automaticamente, como se estivesse em um diálogo inexistente para acalmar a sua própria consciência.

Colocando, instintivamente a mão na barriga de Bellatrix, identificou que uma mãozinha repetia o gesto na parte interna, como se o agradecesse por todo o esforço no que realizara. Dando um meio sorriso, ele se afastou, terminando de recolher os seus pertences para partir.

- Pequena rainha de William Shakespeare, torça para que eu consiga reconquistar a sua tia Narcissa, assim você poderá infernizar a minha vida por muito mais tempo – comentou antes de sair do cômodo.

Finalmente, voltaria à sua casa e teria uma noite de sono tranquila. Mesmo quebrado e com o seu juízo instável, teria de recolocar as suas ideias no lugar. No dia seguinte, seria o responsável por comandar uma missão. Como chefiar uma invasão daquele porte?

Dando mais alguns passos, parou decidido a mudar todos os rumos ao visualizar Berw sobrevoando nas proximidades de sua casa... se a sua alma estava livre, a enobreceria. Aquele seria o seu primeiro gesto de grandeza e não esperaria por qualquer tipo de agradecimento.

Black,

Sei que deve estar muito ocupado sendo um completo estúpido e tentando bancar o herói ao lado daquele porco. Entretanto, sua futura esposa e as suas duas filhas precisam de você com urgência.

S.S.