Capítulo 2

Seus olhos se perdiam em frente ao espaço, a grande imensidão de pontos brilhantes presos naquela grande coisa escura que se espalhava por todos os lados.

Einstein disse que era mais fácil quebrar um átomo do que o preconceito. Quem teria sido o autor da célebre frase que diz que a mente humana é confusa? Ela é capaz de criar fórmulas para quebrar a barreira do som, ultrapassar a velocidade da luz - várias vezes - gerar a vida onde antes não era possível... mas ainda assim, não conseguiam quebrar a tênue linha entre a lógica e a insanidade que invadia o pensamento humano. Mídias antigas representavam a cadeia de pensamentos que guiava a humanidade tão primitiva que em alguns sistemas estelares era considerada uma doença.

Seria essa a doença da humanidade, a sua incapacidade de pensar além do seu pensamento, de ver além de sua visão? Afinal, ver além de sua época, de seu período, não era novidade alguma, já que grandes líderes surgiram com a capacidade de enxergar além de seu período de tempo mas, mesmo enxergando além, planejando além do que lhe era permitido... conseguiriam pensar além de seus limites? Não era uma questão de época, de período... mas algumas coisas seguiam um padrão, melhor dizendo, tudo na existência tinha um padrão, desde os menores invertebrados até os grandes cataclismos, tudo tinha um padrão, uma seqüência que tendo sido iniciada, levava tal coisa até determinado ponto.

O pensamento... a mente humana era assim, seguia um padrão. Até mesmo os que fugiam do padrão, possuíam um, era inevitável. E na mais estranha das hipóteses, aqueles que fugiam da regra, da rotina, ainda assim tinham seus limites, o grande X da questão. Eram os limites que permitiam imaginar, calcular até que ponto alguém poderia ir, uma situação poderia se desenrolar...

Somos limitados, ele pensa. Por mais que atingíssemos as estrelas, a única coisa que estariam fazendo era usar outras faculdades mentais, não necessariamente ampliando ela para conseguir novas coisas. Era justamente esse limite que causava a confusão, a dúvida, a insegurança e a revolta. Por que por mais que tivessem se passados milhares de anos, o homem ainda tinha um limite de desenvolvimento. Poderia aprender e se desenvolver em outras direções, outros sentidos, mas não exatamente em um sentido além do que lhe é permitido.

E era isso que fritava os seus neurônios. Supera-se a crença, supera-se o preconceito, supera-se a separação por mero gosto... mas não conseguiam superar as limitações de sua linha de pensamentos.

Ele aperta seu terço com força, procurando tirar forças dali, de alguma forma. Estava dividido entre o que sentia e o que acreditava, e ambos se misturavam de tal forma que pouco contribuíam para um resultado final.

A culpa era do universo, ele pensava. Era um pensamento lógico. Quando estava em sua colônia, não teria esse problema... não teria ESSE tipo de problema. A falta de companhia era uma coisa cruel e, em um lugar aonde à distância entre os seres vivos era medida em anos-luz, gostos mudavam, desejos sofriam altas e quedas, crenças pessoais iam por água abaixo...

Só restava a fé, aquilo no que a pessoa acreditava até o limiar da alma, e além disso. O que a mantinha de pé, sua fonte, seu guia, sua linha de pensamentos e ritos que ela seguia não por obrigação, mas por acreditar totalmente no sentido delas.

- Os judeus acreditavam, em determinada época, que havia o "firmamento", um grande pilar que sustentava os céus, e que acima deles, o Senhor se encontrava - ele não consegue segurar uma risada abafada - nossa eterna busca pelo Senhor nos mostrou que sua localização nos céus era uma figura de linguagem, que o senhor habita em lugares além do que o pensamento pode conceber.

- Orando novamente ao seu deus? - a voz séria corta sua atenção. Não era fria, tampouco acolhedora, era apenas... séria. Mesmo depois de anos, Heero ainda tinha aquele seu jeito único de não demonstrar nenhuma emoção e ao mesmo tempo dizer tudo com a ausência delas.

- Você sabe que sim, como gosto de me dirigir A Deus - e desviava o olhar. Na Verdade ele nem olhava em seus olhos, mas sim por mero reflexo.

Havia trabalhos que precisavam ser feitos, e as viagens de longa duração deles eram uma delas. Eram necessárias. O universo estava se reestruturando, ninguém acorda um belo dia e descobre que uma utopia foi formada, isso leve tempo, anos, décadas... cada um tinha sua função.

Ocasionalmente eles viajavam juntos por motivos em comum, objetivos similares. Acabaram por passar muito tempo junto em viagens que, às vezes, duravam meses. Afinal, mesmo com a humanidade podendo viajar em velocidades superiores a da luz, não significava que poderiam se deslocar de um ponto a outro em um abrir e piscas de olhos. Era uma questão de lógica, a própria física explicava isso com o movimento de Translação, com o tempo que a luz demorava a chegar a determinados pontos do próprio sistema solar. Não era diferente no caso deles, tanto que algumas viagens demoravam semanas e, não muito raro, meses.

Não era a primeira vez que passava semanas na companhia dele... mas cada vez mais tal coisa se tornava mais difícil de lidar.

- Me diz uma coisa... seu deus não quer sua felicidade, que vocês tenham uma vida em paz, sossegada?

- Não venha jogar com palavras que não conhece, Heero.

- Duo, eu não estou jogando, foi uma pergunta, pode me responder?

- E se eu te responder que sim, que diferença faz? Por que vocês insistem em argumentar como se fossem os donos da razão? Claro que Deus quer nossa felicidade, de todos os seus filhos!

- Se é assim, por que você se questiona tanto? Escute, você sabe muito bem que não acredito nesse seu deus, na verdade não acredito em nada disso, mas pelo que vi nas diversas religiões que encontrei por todos os lugares, era que seus deuses sempre queriam o melhor de seus seguidores, que tivessem paz, saúde, alegria e prosperidade. Não acredito no seu deus, mas não acho que ele quisesse que você fosse infeliz.

- Você tem uma boa jogada de palavras, é isso que gosto mais em você, quando reúne todos os argumentos de uma forma sem parecer estar favorecendo um lado pessoal, apenas expondo sua opinião. Mas você está enganado, e muito. É muito fácil resumir tudo a amor e felicidade, ainda mais quando não se acredita realmente no que diz. Seus argumentos são com base no que eu acredito - ele aperta o terço, virando-se e tocando a mão no vidro da cabine, o qual mostrava a imensidão do universo - não no que você acredita.

- E você esperava algo diferente? Daria crédito se eu citasse os ensinamentos budistas? Ou os muçulmanos? Talvez as crendices Xintoístas abrissem seus olhos, se você prefere assim.

- Você quer me dar uma resposta, ou quer ouvir uma resposta de mim?

- Que diferença faz? Enquanto continuar em suas crendices nunca chegaremos a lugar algum. Seremos sempre assim, realizando as mesmas viagens em missões, um confrontando o outro, sem tomar nenhuma decisão, presos aos seus bloqueios.

- Obrigado por pisar em minha fé, Heero. É muito carinhoso da sua parte cuspir e pisar naquilo que eu acredito.

- Pensei que sua fé se adaptasse as suas necessidades, e não o contrário.

- A fé é imutável, assim como a crença.

- Nem mesmo quando o amor está em jogo?

- Não se amar se tornar um pecado.

- Pecado? Então, quando matávamos aqueles milhares de soldados com nossas máquinas de batalha, o que era aquilo? Vontade divina?

- Isso é... é diferente.

- Do que é diferente do que diz seu livro sagrado? Tirar a vida de outro ser não é pecado? Por acaso algum de nós... alguém envolvido em toda a guerra que nos cercou estava ali por ordens divinas, lutando contra um povo por ordens "lá de cima?".

- Não dá para conversar contigo, Heero - ele sai dali indo até a cabine de controle. Era tolice mesmo, Heero nunca o entenderia. Nem ele se entendia. Estava em um dilema tremendo, dividido entre o que sentia e o que acreditava.

Sabia das conseqüências. Sabia que o que sentia era mundano, era pecado, proibido, contra tudo o que aprendeu com o padre Maxwell.

Mas mesmo assim, não conseguia deixar de sentir com tal intensidade e de tal forma que não podia simplesmente se entregar a uma vida de reclusão para resistir a isso.

- Me diz uma coisa que eu nunca entendi - ele não se surpreende ao ouvir aquela voz e as mãos dele tocando em seus ombros - por que? Nós temos cabines de animação suspensa... você poderia ficar ali dentro, dormindo, seria apenas um sonho, nem sentiria o tempo passar. Não estaríamos aqui conversando, tampouco você estaria nesse seu martírio pessoal, pois é esse o nome que eu dou a isso, já que o único que está passando por essa confusão é você.

- O homem não foi feito para ficar sozinho, na verdade, não é bom que fique sozinho, ele precisa de uma companheira.

- Onde está escrito isso?

- Em Gênesis, bem no inicio da Bíblia e... concordo. Não é bom ficar só, não nascemos para ficar sós, procuramos por um par, alguém que nos complete.

- E esse seu deus, ele é o responsável por colocar na Terra essa pessoa que te completa?

- Não - ele ria como uma criança que constatou saber mais do que a maioria - ele nos criou em sua infinita sabedoria de tal forma que uma pessoa não é igual à outra e nos deus um presente muito importante, o livre-arbítrio.

- Se você tem isso, por que se martiriza tanto? Não pode escolher simplesmente o que acha melhor para você?

- Por que me tortura tanto, Heero? - Duo vira seu rosto, levantando um pouco o corpo na poltrona do piloto e aproximando seu rosto de Heero, quase tocando nele - para você é fácil, não tem uma criação rel...

- Eu nunca disse isso. Mas eu disse uma vez que se tudo está um caos, sem ninguém saber por qual lado devemos lutar, então eu lutaria por mim mesmo, defendendo meu ponto de vista com unhas e dentes. Você pode pensar que é fácil para mim, mas é uma experiência tão nova para mim quanto para você.

Era fácil entender. Heero era o tipo de pessoa que foi criado com um objetivo, uma meta, treinado desde cedo para isso. Não que fosse exatamente fácil para ele demonstrar seus sentimentos, que fosse um problema... não havia problema. Aquela era sua personalidade imutável, e só os que se aproximavam o suficiente para captar as nuances de sua voz e olhar poderiam dizer quando ele estava furioso, irritado, temeroso, obstinado...

Para ele que fora criado com um propósito, tudo era novo, tudo era uma descoberta. Não era o tipo de pessoa que tinha em mente relacionamentos, mas também não os negava. Ou melhor, que ficava se perguntando um milhão de vezes acerca de algo novo, sobre sua utilidade ou não. Ponderava por um tempo se valia à pena seguir em frente ou não, e depois escolhia o melhor caminho. Era uma pessoa que seguia muito os seus instintos, os quais eram extremamente lógicos e nem um pouco movidos pelos seus sentimentos, o que deixava Duo cada vez mais angustiado. As palavras de Heero não eram movidas por impulso, e sim por uma constatação dele após se auto-analisar. Não queria uma aventura pelo prazer da descoberta, apenas não estava negando o que concluiu ser tão óbvio. Da mesma forma que ele fora criado aprendendo que em meio à guerra, uma mulher puxando um gatilho é tão mortal quanto um homem com a mesma arma, aprendeu que situações diferentes podem gerar resultados diferentes e, por conseqüência, mudar drasticamente a forma de pensar, agir e reagir das pessoas, sejam seus valores, gostos e crenças.

Era óbvio demais o clima que rolava entre ambos. Terem passado tanto tempo tendo apenas um ao outro gerou isso, os aproximou de uma maneira que sequer poderiam imaginar e, mesmo Duo tendo seu lado brincalhão e atirado, de sempre ser bem carinhoso com os amigos, a situação que pela qual passavam era além do que estava acostumado a encarar.

- Não sei se conseguiria conviver com isso, com o fato de estar agindo errado.

- Errado com quem? Não estamos na Terra, não temos uma família para prestar contas. E, apesar de no passado pessoas como nós se relacionarem e terem passado por tantos problemas, estamos no futuro. O homem se expandiu por todo o universo, muitos conceitos e tabus caíram por água abaixo. O que você acha que acontece na guerra, na solidão do espaço, com soldados que passam meses, às vezes anos longe de seus lares, tendo a companhia apenas de seus colegas de batalha? Longe do ambiente no qual foram criados desde crianças, dos valores que adquiriram desde o nascimento, acha que eles não seriam afetados por outros, muitos dos quais eles nem mesmo imaginavam ter, e não por influência externa, mas por conseqüência do ambiente no qual conviveram?

- Eu sei disso. Não disse que não concordo com você, mas é que... ainda assim me sentiria culpado, por quer sempre saberia que o que eu estou fazendo não é o certo, é errado.

- Errado para quem?

- Para ele - e aponta o dedo para cima.

- Seu deus não deveria te limitar - ele se senta na outra cadeira de comando - e sim te guiar para uma existência melhor... e nós não vivemos na mesma época de dois mil, três mil anos atrás, deveriam se adaptar as novas necessidades do...

- Não diga uma coisa dessas - ele se ajeita em sua cadeira - não diga o que não sabe por mera conveniência. A palavra de Deus é imutável, permanece a mesma. Você não é obrigada a aceitá-la, não tem que acreditar nela, como você mesmo disse, vivemos em uma época diferente, na qual o cristianismo é apenas mais uma das religiões do universo mas... cada qual com sua crença. Você pode não acreditar em Deus, mas ele acredita em você. - e o olhava de maneira séria e penetrante - e se você não acredita nele, não segue seus preceitos tampouco se recusa a admitir seguir seus princípios, não pode exigir que ele mude para se adaptar a você.

-...

- Deixe-me terminar - o pedido fora desnecessário, sabia que Heero continuaria silencioso, era uma de suas virtudes ser um bom ouvidor - o cristianismo mantém seus preceitos ao longo dos tempos, mantendo-se rígido independente da mudança dos mesmos. É por isso que surgem as seitas, que buscam adaptar os ensinamentos de acordo com as épocas. Eu não quero te dar uma aula de Teologia, tampouco te convencer de que as verdades nas quais eu acredito são as verdades universais nas quais você deve acreditar, não tenho esse direito tampouco você acreditaria, mas... tenha mais respeito. Desculpe, sei que falei demais, mas não gosto das pessoas falarem o que não sabem como se fossem os senhores da verdade. Desculpe.

Ele se ajeita na cadeira e fica assim, observando o espaço infinito com seus infinitos corpos celestes pelo visor da nave, com Heero na cadeira ao lado, em um silêncio deliciosamente prazeroso e necessário. Quantos minutos ficaram assim? 2? 3? Parecia uma eternidade, enquanto ninguém resolvesse quebrar o silêncio.

- Ainda assim você está em um impasse.

- Enorme.

- Segundo o que você acredita, seu deus criou o homem e logo depois, uma companheira para ele, a mulher.

- Corretíssimo.

- Pelo que me mostrou certa vez em sua Bíblia, era Adão e Eva, e não Adão e Evandro.

- Tem horas que eu gosto do seu deboche.

- E pelo que eu entendi, segundo a sua "palavra sagrada", qualquer coisa diferente disso é considerado abominação.

- Um dos motivos de Sodoma e Gomorra terem sido destruídas.

-...

-...

-...

-...

-...

-...

-... passamos a vida errando, cometendo erros. E com eles aprendemos. Eu discordo de você por achar que isso o que sentimos um pelo o outro é errado... mas é tão difícil para você conviver com esse "erro"?

- É pecado.

- Ah, claro.

- E sim, sério. Não sou um santo, sei que erro e vou passar a vida inteira me corrigindo, mas... sei muito bem que dois homens se relacionando não é uma coisa natural.

- O que é natural? Onde está escrito que um homem deve se apaixonar apenas por alguém do sexo oposto?

- Você está parecendo um adolescente agora - ele segura uma risada debochada - com esses argumentos fracos. Ah, Heero... eu podia te dar tantas respostas boas... a primeira seria por uma questão óbvia de preservação de espécie, o homem FOI feito para se relacionar com a mulher. E não só o homem, mas os machos da espécie, sejam cachorros, cavalos, touros e outros animais. Fisicamente fomos feitos assim, mas ninguém nunca explicou cientificamente como funciona essa coisa de sentimentos, no máximo que você pode simular o amor com altas doses de chocolates mas, sabe de uma coisa? - ele ergue os ombros e balança o rosto, de olhos fechados.

- O que?

- Se o diabo viesse de vermelho, cheirando a enxofre e com chifres, todos fugiriam dele. E se o pecado não fosse bom, ninguém cometia.

Houve silêncio. Um silêncio realmente impressionante que durou meros segundos mas pareceu se estender pelo infinito. Abaixou sua cabeça por alguns instantes com os olhos fechados e, em seguida, ergueu-a, abrindo os ao mesmo tempo, vendo a expressão de surpresa - sim, surpresa - de Heero diante de suas últimas palavras.

Ele se ergue e se aproxima, passando sua perna por cima do corpo do soldado perfeito, ficando com o seu por cima dele. Levou sua mão direita até sua face, sentindo a textura dela. Era bom de tocar. Já o havia abraçado, se apoiado em seu corpo, mas nunca tocado-o com tais pensamentos, com tal vontade. Era quente e áspera, típica de alguém com a vida que ele levava. Aproxima seu rosto e quase toca o nariz em sua face, sentindo seu cheiro, seu odor. Em toda a sua vida, nunca imaginou que se sentiria tão atraído pela loção de um homem, tampouco imaginaria que era possível um homem estar ali, naquela posição com outro, e ainda assim se sentir homem, não feminilizado.

Toca a face dele com ambas as mãos, fechando seus olhos. Internamente sentia um quê de desconfiança, como se um freio estivesse sendo pressionado e fazendo com que ele se mexesse lentamente, tentando pará-lo, mas uma força maior o puxasse.

Se era alguma força superior ou se o braço de Heero em sua cintura o puxando, nunca saberia. Estava ocupado demais para pensar em qualquer coisa, enquanto se entregava aos prazeres daquele doce pecado.

Continua...