Meu Destino é Pecar

Capítulo 1

Eu sou um enfermeiro. Não por ter estudado para isso, mas por querer ser. Tenho um diploma que faria todos os médicos filhos da p... deste hospital pararem de me olhar de cima, este diploma está, também por vontade minha, mofando na gaveta da minha cabeceira. Se o sujeito preguiçoso e arbitrário que é o diretor deste lugar, soubesse disso, ou pelo menos desconfiasse... Ele não estaria gritando comigo agora. Pelo menos eu poderia responder. Não que não possa, mas estou muito ocupado tentando não dormir na frente dele. Nada disso é novidade. Nem o fato de estar aqui é novidade e isso deixa o diretor cada vez mais furioso a cada vez que entro na sua sala e jogo um monte de dinamite na sua mesa.

Não estou preocupado. Não com isso. Estou com meu pensamento muito longe dessa sala, desse hospital. Na verdade, duas horas de metrô e mais três quarteirões e dois lances intermináveis de escada até onde eu queria estar. Acho que posso dormir aqui mesmo... Ele está tão empolgado fazendo um inventário de todas as queixas contra mim desde meu primeiro emprego... Nem sei o nome dele...

"Hisashi!" – Uma nova voz adentra a sala, falando tão alto que até o diretor do hospital se cala para escutar.

Agora tenho certeza de que vou perder o emprego. Neste ritmo, em cerca de dez anos vou estar famoso em todos os hospitais do país...

Nem me mexo quando escuto o meu nome. Esfrego os olhos e tento não bocejar na frente do chefe dos enfermeiros. Também não sei o nome dele. Ele tem uma dúzia de papéis na mão. Me manda levantar da cadeira. Com todo o prazer. Lamenta (hahaha) me informar, blábláblá, que o que ele tem nas mãos é a minha carta de demissão, assine aqui, por favor, blábláblá, em virtude de minha má conduta, blábláblá, e da total falta de uma tentativa de justificar uma cena que foi flagrada, blábláblá... Adeus, senhor Wakai Hisashi, sentiremos a sua falta aqui.

"Eu não." – Me escuto responder secamente, depois de assinar um papel que nem sei ao certo o que era, e nem sei se consegui acertar a pauta... Arranco os papéis de sua mão e saio deixando-os falando sozinhos. Já que eu fui despedido nada mais tenho para ouvir aqui. Passo no vestiário, esvazio meu armário e, finalmente livre deste inferno, penso em mudar de emprego. Meu pescoço não pára de doer... Saio impunemente para a rua, e enfrento com coragem e muito sono, quando a noite já está alta e calorenta, o caminho de volta para casa, acredito que vou dormir e quando eu acordar, tudo isso, o pior dia de toda a minha vida, vai ser apenas uma distante recordação...

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Perder o emprego de um modo tão absurdo não me abala em quase nada. Durmo por quase dezoito horas como há muito tempo não me permitia dormir. Tenho cerca de um mês para arranjar outro trabalho, antes de ser despejado ou de morrer de fome. Já não me abala em nada estar sem emprego. Talvez eu devesse agradecer ao rapaz do gorro por... Mas que raios eu estou pensando? Continuo com raiva dele, por tudo o que houve. Se eu o encontrasse, agora sim, não pensaria duas vezes antes de acabar com aquele rosto redondo... Ah, mas que coisa... O telefone me obriga a sair da cama por bem ou por mal, me faz lembrar de que estou com fome, e no caminho até ele, o espelho empoeirado me faz lembrar que com esse cabelo despenteado não vou conseguir que ninguém sequer me olhe sábado à noite... Um alô carregado de preguiça... Formalidades de empresa... Se estiverem me convidando para ser faxineiro de alguma espelunca, eu juro que vou aceitar... É uma secretária encaminhando a chamada, me mandando esperar... É uma voz bonita e autoritária que fala comigo depois de um tempo. Diz que não conseguiu falar comigo antes pelo fato de que ninguém atendia as chamadas. Não me dá tempo de responder e já me convida para jantar. Trata-se de uma "proposta de trabalho", e a tal mulher que não me diz quem é e eu não lembro de perguntar e já me diz que a secretária vai repassar o endereço...

Não tenho tempo de perguntar mais nada. Depois, tudo o que tenho é um endereço da parte alta da cidade e um "boa tarde" que vai aos extremos do profissionalismo e desligam na minha cara.

Pelo menos, parece que vou ter um jantar que normalmente nenhum enfermeiro pode ter.

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É mais longe do que imaginei. Tenho tudo para chegar atrasado. Levo meu currículo, e todas as papeladas que comprovam que sei desde abrir um vidro de xarope até fazer uma ponte de safena com as mãos atadas... Continua quente e no céu, apesar do sol quente e inclinado das seis, que entra pela janela do metrô de vez em quando, há uma chuva que insistentemente se forma, mas nunca desaba. Acho que não importa a cor que estou vestindo agora. Provavelmente é um trabalho de casa, não vou precisar usar aquela coisa branca.

Na rua que o endereço indica, as pessoas são distintas e bem vestidas, e acho que não há um carro com mais de seis meses de uso em nenhuma dessas garagens. Olham como se soubessem quem não é daqui, mas não reprovando, somente curiosas. Vejo um muro alto e uma grade interminável deste lado do quarteirão. Que jardim grande... A casa é maior ainda, acho que uma das maiores daqui. Não sei quem é o dono e quase tenho vontade de voltar correndo para a estação de metrô quando vejo que é justamente aqui a que fui convidado para jantar. Acho que é cedo demais, mas não quero ficar na rua até que anoiteça. Toco a campainha e logo depois uma empregada já está me levando entre o jardim, pela casa, que é muito maior por dentro do que imaginei e me manda esperar enquanto avisa à patroa que estou aqui. Já era esperado... Estou ficando preocupado com isso. Como me descobriram nos confins do outro lado da cidade? O que mais há são enfermeiros, melhores do que eu até, por que justamente eu? Espero que isso não seja nenhum tipo de perversão... Se for, eu faço até de graça...!

Olho-me por um tempo no espelho de uma das paredes, antes da empregada voltar. Os plantões estavam acabando comigo, as olheiras melhoraram, mas continuo quase sem cor alguma, e esse cabelo que não se ajeita... Não adianta quase nada o elástico, sempre escorrega... Escuto me chamarem e me mandarem entrar num escritório. Não tenho tempo de tentar prender de novo, e nem me importo com isso. Não seria mal trabalhar pela primeira vez num lugar que não tem cheiro de álcool. Tem uma mulher vestida como executiva detrás de uma montanha de papéis, assinando, escrevendo, lendo e falando em dois telefones ao mesmo tempo, além de um aparelho viva-voz. Nunca vi ninguém trabalhar assim...

Ela larga um dos telefones e faz sinal de que eu me sente. Espero cerca de meia hora até que ela despache não muito delicadamente todos os telefonemas e se volte para mim. Agora acho que sei quem ela é...

"Desculpe minha falta de trato... Vou ser bem direta... Eu tenho uma viajem marcada para cerca de daqui duas horas. Como está vendo, estou de malas prontas. Eu sei que você perdeu o emprego pouco depois que nos falamos ontem." – Ela mal se vira para mim e já vai abrindo uma valise, colocando e tirando pilhas de papéis dentro dela, mal tem tempo de olhar para mim, e continua falando, cansada e com muita pressa: - "Realmente não me interessa o motivo. Eu preciso de alguém para cuidar da minha filha, e você é tão estranho e mal recomendado que talvez isso até dê certo." – Ela sorri, fechando a valise em seu colo.

Que mulher direta...

"Está com fome? Acho que o jantar vai ser servido daqui à pouco... E o seu pescoço? Descobriu o que era aquilo?" – Ela diz, levantando e rodeando a mesa, olhando para o meu curativo com uma curiosidade tão grande que assusta até a mim... Coloco meu currículo em suas mãos, tentado fazer com que a conversa mude de rumo.

Ela dá uma risada que me faz sentir como se tivesse cinco anos novamente.

Não sei onde está meu juízo que não saio correndo dessa casa quando ela simplesmente joga o envelope do meu currículo, ainda fechado, no cesto do lixo.

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Ela é a mãe da garota que tentou se suicidar. Agora sei que a garota se chama Tomoyo e até onde as fotos nos corredores mostram, até metade de sua adolescência, ela teve tudo para se tornar uma adulta brilhante. Se bem que eu não posso negar seu brilhantismo uma vez que fico sabendo nessa conversa que é quase um monólogo, que quando ela cortou os pulsos, agora, desta vez que cuidei dela no hospital, Tomoyo foi extremamente requintada: como há dez anos ninguém a via fazer, ela vestiu seu vestido mais bonito, arrumou-se como fosse encontrar seu namorado, trancou-se na sala onde está o piano de cauda (Passamos na frente da tal sala, e o que segura as bandas da porta nada mais é do que duas voltas de correntes e um cadeado respeitável...), e tocou uma valsa sem errar uma única nota, do princípio ao fim, então, as empregadas foram ver se afinal a jovem patroa havia saído daquele surto de depressão interminável... E só por isso que agora ela ainda está viva.

Estou todo arrepiado de medo desta família.

Se fosse alguma perversão, pelo menos eu gostaria dos arrepios...

Ela me mostra a casa muito rapidamente, e pergunta se posso começar no dia seguinte. Claro. Ela justifica, Tomoyo está apenas com suas visitas, enquanto a enfermeira que passa a noite na casa não chega. Se eu quero ser apresentado a ela? Que jeito?

Vamos pelas escadas rumo ao quarto. Contenho duramente uma vontade súbita de rir alto, gargalhar, quando penso no que aconteceria se eu encontrasse, na mais cruel das coincidências, justamente aquele garoto do gorro ou mesmo aquele que me impediu de dar um soco nele. Não, seria uma extrema falta de sorte, logo em seguida a ter encontrado um emprego novo tão rápido. Respiro fundo e tento até mesmo não sorrir quando chegamos perto da porta.

Devo estar mais pálido do que nunca e com certeza arregalo os olhos com o que vejo. Realmente, tudo o de pior que eu esperava e até acho que poderia ser engraçado, acontece, e perde totalmente a graça. É por pura polidez que não acontece um homicídio nesta casa.

De um lado do quarto, jogado no sofá e parecendo muito mais jovial do que das vezes em que o vi no hospital, está o rapaz que me é apresentado como Li Siaoran, com olhos escuros e um ar mal humorado. Quando ele me reconhece, mesmo sem dizer nada, eu percebo sua reserva. Neste instante, em que ele brinca com a barra da manga da camisa xadrez, displicente, do nada, um vaso de cristal que está na cabeceira da cama da moça trinca de alto à baixo. Coincidências. Esse tipo de cristal deve ser muito frágil, ou já deveria estar assim antes. E de costas para mim e sentado na beirada da cama, ao lado de Tomoyo, está ele... Com aquele mesmo gorro de antes. Ele se vira lentamente para a direção da porta.

Não consigo dizer que é um prazer conhece-lo. Agora essa coisa tem um nome, mais estranho do que o de Siaoran, mas eu não espero sequer que essa criatura tenha um nome. Ele não sorri e nem diz nada, não se afasta de mim, não se aproxima, somente fica olhando com curiosidade e alguma surpresa. E Tomoyo... Ela está alheia ao resto, brincando com o próprio cabelo, enrolando um dedo nos seus cachos.

Engulo em seco, e de atravessado, quando a criada avisa que o jantar está na mesa e que a enfermeira da noite vai se atrasar um pouco. Por que justo eu? Não posso dar um pio para dizer que não posso ficar durante o atraso e muito menos me recusar a jantar, mesmo que minha fome tenha sumido e restado apenas uma profunda náusea de raiva.

Definitivamente este tal Li me intimida. Não tenho raiva dele, somente me dá uma sensação estranha pelo nosso primeiro contato ter sido daquela forma ontem. Ele conhece esse garoto? Acho que não, ele é tão desconfiado comigo quanto é com ele. A mãe da garota nos chama para jantar, ela lamenta não poder ficar conosco, seu táxi para o aeroporto já está na frente da casa.

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O jantar é tenso, nada é dito, somente Li fica parado, do outro lado da mesa, olhando para mim. O que ele quer? Será que não está satisfeito em me ver praticamente somente engolir a comida? Tanto faz. Pergunto muito diretamente se ele conhece o garoto que preferiu ficar com Tomoyo no quarto. Ele faz que não e na mesma hora meu copo é como se jogado da mesa contra a parede. Devo ter esbarrado nele e não percebido. Ele volta comigo para o quarto e no caminho pergunta meu nome. Respondo. Ele pede secas desculpas por ter me arrastado pelo cabelo ontem. Quando ele atravessa a porta do quarto de Tomoyo, antes de mim, a janela do quarto dela se fecha com um estrondo que a faz se sobressaltar.

Ela e aquele garoto parecem duas perfeitas estátuas desse jeito, olhando para a janela fechada. Quando Li a abre novamente, percebo que não há vento algum.

"Qualquer dia vou visitar uma loja de cristais..." – Ele resmunga, voltando a se jogar no sofá. Se ele é amigo dessa moça, ele tem uma maneira muito estranha de demonstrar isso.

Eu tenho uma coceira insistente na ponta da minha língua, para me dirigir ao rapaz do gorro. Eu sei que deveria, mas não consigo cogitar em pedir desculpas. Não a ele. Seu olhar para mim ainda tem a mesma emoção de olhar para uma parede nua. Isso me revolta. Ele parece existir unicamente para Tomoyo, e não para o mundo ou para si mesmo.

Assumo meu posto de bibelô de quarto de doente e sento numa cadeira num outro canto. Tomoyo está falando com aquele garoto. Não muito, mas no caso, responder com monossílabos é algo que se compara ao fato de ela ter dado aquele sorriso ontem, depois de tanto tempo sem uma reação coerente. Não posso sequer demonstrar espanto, ou fazer qualquer coisa, devo agir naturalmente, Li sabe disso e não faz mais do que arregalar os olhos quando a escuta. O que ele está dizendo a ela que não consigo ouvir? Estão os dois sentados lado a lado na beirada da cama, como duas crianças. Ele não parece estar falando baixo... E percebo que também não há mais nenhum som ao redor, e a voz de Tomoyo está cada vez mais distante.

Não sei se somente eu percebo isso, nem consigo olhar para o lado. Consigo perceber que ele diz:

"Tomoyo, enquanto esperamos, você quer ouvir uma história?"

Ela faz que sim, mas mesmo que não fizesse nada, alguma coisa me faria também dizer que sim.

A voz desse garoto parece um pouco menos adulta então, quando ele começa...

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Hisashi Wakai não percebe que o silêncio está dentro dele mesmo, e não apenas ao seu redor. Ele se porta com a mesma distância com que tratou tudo em toda sua vida. Ele encosta sua cabeça contra a parede e sente um peso tão grande sobre ela que ele tem vontade de soltar seu rabo de cavalo. A história começa e para ele, não há sentido em nem uma única vírgula:

É um lugar comum, mas é inevitável dizer que foi há muitos anos. Em verdade, há mais de duzentos, ou quem sabe trezentos? Em uma eternidade inteira, é difícil ver o tempo passar quando somente se olha através de uma vidraça. O Mestre nunca o deixaria sair, dizia que o estaria envergonhando, pois ele havia sido criado para ser uma aberração, e por isso, ele nunca se atreveu a encarar-se num espelho. A vergonha e o medo sempre estiveram nele desde o instante em que se levantou do chão, colocando-se pela primeira vez sobre duas pernas, e do seu lado, a primeira coisa que viu foi o corpo agonizante e completamente em carne viva, com as patas quebradas e amarradas, de um leão esfolado vivo. Ele sangrava por todos os lugares e suas órbitas expostas estavam vazias, ele estava sem os olhos. Ele tocou então, com suas pequenas mãos de cinco anos, os próprios olhos, tentando entender o que estava ao seu redor. Ele escutava uma risada no meio da escuridão, que os lampiões de óleo de baleia não era suficientes para iluminar, mas sentiu que seu pé descalço tocava em algo quente e molhado no chão. Ele, que não era uma criança, embora assim o sentisse e parecesse, olhou para baixo e viu que estava de pé em um verdadeiro lago de sangue. O tremor de seu corpo pequeno e frágil aumentou, por puro medo. A risada não parava. No meio do sangue estava a pele de uma criança, jogada ali como um trapo velho, disforme, ensangüentada. No meio da escuridão, o Mestre apontou-lhe um dedo. Quando ele olhou sabia que devia lealdade àquele homem, mas não conseguia sentir isso, e muito menos gratidão por existir desta forma, nascer desta maneira, mas algo lhe dizia que o Mestre nunca se importaria em responder as perguntas que ele gostaria de ter feito naquele momento. O Mestre somente estava querendo rir de sua própria piada, por isso o apontava e dizia que sempre havia sonhado em ser um deus, como o de uma antiga história, um deus chamado Hades, cujo servo era um cão de três cabeças. Assim como o deus, agora ele também tinha um servo, e lamentou não ter feito dele uma aberração como a da lenda. E embora ele também não fosse o cão de três cabeças que o Mestre gostaria, deu-lhe o mesmo nome daquela besta...

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A movimentação no corredor chama nossa atenção. Já escureceu. A enfermeira acaba de chegar. É uma senhora de rosto amável, com uma sacola de que saem para fora agulhas de tricô. Pedimos licença e saímos. Não apenas eu e Li, mas o garoto também. Tomoyo acabou distraindo-se e fazendo na nossa frente uma coisa que sua ficha dizia que se tornara muito rara: dormir. Escutar o começo daquela história quase faz meu estômago revirar. De onde ele tirou aquilo? Chego a estar curioso para ouvir mais. Se bem que o que quero ouvir, não posso perguntar na frente de Li, ou ele vai fazer bem mais do que me arrastar pelo cabelo. Por sorte já na calçada ele diz que vai demorar um pouco até voltar a visitar Tomoyo, e toma um rumo oposto ao meu. Tenho certeza de que ele nem sabe o nome dessa coisa que nunca tira o gorro.

Uma chuva generosa está preste a cair, e definitivamente passar duas horas num metrô até chegar em casa é uma idéia já capaz de me deixar irritado. Sem falar e nem olhar para mim, ele vai embora, simplesmente, atravessando a rua. Não o vi sorrir uma única vez para Tomoyo e nem para mais ninguém, somente tentando faze-la reagir de algum modo, conforta-la. E aquele silêncio... Vou andando pela rua, atrás dele, e quando toco seu ombro, ele não se volta. De novo não! Já está chovendo, ele escapa das minhas mãos e corre até debaixo de uma beirada de casa. Corro atrás dele, sem pensar, somente ainda desejando terminar aquilo que comecei ontem. Como me arrependo de não ter lhe dado aquele soco. Chego debaixo da mesma beirada e vejo que ele está encostado no muro, com a cabeça baixa. Vou lhe dar só mais esta chance de me explicar por que ele de uma forma ou de outra sempre estraga meu dia e está se atravessando na minha frente desde quando entrou naquele quarto no hospital.

Fico bem na sua frente, vendo como ele não tira os olhos do chão.

"Qual é o seu nome?"

Ele não responde. Afinal, isso é pessoal ou o quê? Eu nem o conheço e já o detesto!

"Você me ouviu!" – Digo, mais baixo, e a chuva ficando realmente forte além dessa marquise. – "Deixe de criancice!..."

"Eu não tenho nada que você possa querer." – Parece que ele está me fazendo um favor ao me responder...

Olhando melhor para seu rosto, se as circunstancias fossem outras e principalmente, se não o odiasse, eu diria que ele tem sim, algo que eu pudesse querer. Com toda esta indiferença, no entanto, ele deve ser tal como um cadáver na cama.

"Você é jovem, não parece louco e nem aproveitador. Por que está fazendo tanta questão de ficar perto de uma suicida?"

"Não fale assim dela. Ela tem um nome."

O ruído da chuva aumenta. Prefiro dormir na rua a voltar para casa debaixo dela. Seguro seu rosto e faço-o levantar a cabeça. Tento me controlar para não agredi-lo, como cada parte do meu corpo parece exigir. Mas tenho uma vontade irresistível de faze-lo sofrer, arrebentar essa indiferença em mil pedaços, e a idéia para fazer isso surge imediatamente, parecendo cruel demais até para mim.

Mas por que não?

"E você, sua coisa... Você tem um nome ou é uma besta como a da história que estava contando?"

Na mesma hora a sombra da marquise não é suficiente para encobrir o que devo estar imaginando que vejo. Parece-me que seus olhos ficam maiores ou mais claros, mas solto seu rosto na hora. Ele torna a baixar a cabeça e me diz numa única palavra seu nome. Saiyame.

Então, agora posso dizer que odeio Saiyame. Seu silêncio é profundo e absoluto. Podemos ficar assim a noite toda e ele não vai se cansar de me ignorar. Tanto o faz que se senta no chão, metendo a mão no bolso e tirando um doce de lá.

"Eu vi uma menina lhe dar um desses ontem." – Digo, sem pensar nas conseqüências, somente querendo chamar sua atenção. Saiyame levanta o rosto e diz que aquele era de Tomoyo, que este que está com ele, foi a mãe de Tomoyo quem lhe deu. É um pirulito vermelho. Impressão minha ou ele tem tanta fascinação por doces quanto uma criança?

"A menina era sua irmã?"

"Não." – É uma resposta automática. Não é uma mentira, mas ele evidentemente não está dizendo a verdade inteira.

"Tomoyo é sua namorada?"

"Não." – Que frieza...

"Você conhece o Siaoran?"

"Conheço."

Me abaixo para olha-lo de perto, cada vez mais curioso com essa situação absurda que se arma em torno de Saiyame, e nem sei se ele faz idéia disso. Só o que me incomoda é me ver metido nisso sem meu consentimento.

"Mas ele não se lembra de mim." – Parece quase nojento o que me passa pela cabeça, mas este pirulito, comido com tanta vontade, parece estar delicioso... O vermelho da bala tinge ligeiramente a sua boca. – "Ele... Nós éramos crianças. Tomoyo também não se lembra de mim. Eu estive muito tempo longe deles."

Nunca achei que esse garoto de gorro pudesse ser tão articulado!...

"E por que voltou apenas agora?"

Ele não responde. Desvia sua atenção brevemente do pirulito e olha para mim como se eu fosse um extraterrestre. Isso faz meu sangue ferver nas veias.

Devo ser realmente uma pessoa terrível. Estou com uma vontade quase irresistível de dar um tapa na sua mão só para saber de sua reação caso esse pirulito caia no chão. Diabos, não posso agir como se fossemos crianças, já basta ter tirado seu gorro, aquilo foi estúpido, porem, o mais impressionante é que reagiu com isso, mas não reagiu com o fato de eu ter quase o esmurrado. Por que ele não reage com o que deveria, ou seria normal? Por que não se irrita comigo a ponto de revidar? E agora...Está sorrindo, quando lhe pergunto de onde ele é. Desgraçado.Vai me matar de tanta raiva! Saiyame sorri e larga o doce por um tempo, e fica sorrindo, passando a língua nos lábios brilhantes... Tenho vontade de esbofeteá-lo até arrebentar seus lábios.

"Hong Kong." - Diz, simplesmente. Quando pergunto o resto do seu nome esse sorriso inexplicável se torna mais largo e de alguma forma travesso. Parece cada vez mais novo, fazendo isso, como consegue? Parece um menino com mais tamanho do que juízo, mesmo, sentado nesse chão, e estou me sentindo perfeitamente idiota tentando fazê-lo prestar atenção em mim. - "Clow." - Diz, e seu sorriso assume um ar maldoso. Então, Saiyame dá uma risada consigo mesmo, e volta a dar atenção apenas para o seu doce vermelho.

Levanto-me e fico olhando para essa cena, suas mãos muito brancas saindo da barra desse casaco preto de camurça, a camisa listrada debaixo dele, esse gorro... Odeio até estar do mesmo lado da calçada que ele. Tento ser razoável, mas com Saiyame eu não consigo! Por um momento penso mais uma vez no mal que lhe desejo, no plano inteiro que pensei em um único segundo quando prestei mais atenção nele. Pode ser divertido. Ele pode fingir que não existo, mas eu sei fazer coisas que não pode ignorar. Vou precisar de toda a frieza para não sentir náuseas em fazer isso, mas eu nunca refleti muito sobre as coisas que quis fazer. Não vou começar agora.

"Você mora longe daqui?" - Meu tom muda tanto e tão repentinamente que até eu mesmo me assusto. - "Onde você vive?"

Aponta para um lado, apenas, nem se dá ao trabalho de olhar para mim. Conto até dez para não ter de jogar esse pirulito no chão, isso pode estragar tudo o que estou planejando agora. Mas depois, ele não vai poder me culpar se eu estiver jogando tão sujo quanto não quero pensar que estou. Paciência, Hisashi, paciência...

A chuva está estiando, se ele não mora longe, vai acabar me deixando falar sozinho ou apenas sumir como faz sempre que quer se livrar de mim. Não tenho muito tempo, tenho de voltar para casa, ou pelo menos... Bom, isso pode ser mais providencial do que parece...!

Para certas coisas, nem preciso falar. Ele vai entender o que eu quero. Vou dar boas risadas ao me lembrar disso amanhã.

Sento do seu lado no chão. Sorte que a rua está vazia por conta dessa chuva toda.

Saiyame é menor do que eu, tem um corpo frágil e fino debaixo das roupas, mas tem quase a minha altura e eu sei que tem muita força, e que perto dele tudo o de mais estranho e desagradável pode me acontecer, todavia não tenho medo de sair dessa com mais cinco arranhões. Passo um braço sobre seu ombro e aperto um pouco. Ele faz um barulho estranho, se contorce e escapa de mim. Tento segurar seu rosto, parece não sentir nada, continua com essa porcaria enfiada na boca. Digo uma besteira qualquer para ele se distrair, mas é tão inútil que me percebo um imprestável, age como se estivesse sozinho o tempo todo. Não uma alienação, mas Saiyame parece isolado num mundo cercado daquele silêncio que me cerca a cada vez que tento arrancar uma reação ou um significado para as poucas que ele tem. Seguro seu rosto redondo e faço com que se volte para a minha direção, mas continua olhando para o chão, ocupadíssimo com essa coisa.

O que é isso? Fixação na fase oral? Eu sou um enfermeiro, não um psicólogo!...

Estico-me na sua direção, e, rezando para que ele não me mate, aproveito sua surpresa e tiro lentamente o doce de sua boca. Ele fica parado no mesmo lugar. Eu sabia, vai ser mais fácil do que eu imaginei! Então, estou quase por conseguir beijá-lo. Filho da mãe, vai ver com quem se meteu e... Saiyame então sorri para mim. Estou quase conseguindo, e ele?... Ele enfia o pirulito na minha boca!

Penso em todos os palavrões que conheço, todas as ofensas, e vou despejá-las sobre ele. Pirralho atrevido, o que pensa que eu sou! Estou tão surpreso com essa coisa excessivamente doce na minha boca que nem tenho reação, só sei que meu coração dispara e quase vou esganá-lo, se ele não se levanta, como se nada demais estivesse acontecendo e fosse andando pela rua. É algum tipo de piada? Ele quer me fazer de palhaço?

Livro-me dessa coisa e corro atrás dele, chamando-o, ele olha e sorri de novo, e corre também. Ri ofegante como uma criança. Não vai ter polícia que me segure quando eu por as mãos nele. Entra por uma rua mais estreita e tenho de seguí-lo, mesmo que eu me perca, mesmo que eu não conheça nem uma única esquina deste lado da cidade. As ruas estão mais sinuosas e parece que ele consegue correr mais rápido do que posso acompanhá-lo, quase o vejo sumir. E está chovendo de novo. Ele atravessa uma alameda cheia de árvores e corre para as escadarias de um velho palacete, isolado das outras casas pelos salgueiros ao redor. Ainda escuto um distante eco do seu riso cansado. Ele tomou aquilo por brincadeira?

Tento alcançá-lo, mas Saiyame já está fechando a porta. Não acredito que justamente ele vai escapar de mim! Minha última chance de não ter de passar duas horas para voltar para casa, metido naquele metrô barulhento e lerdo é dormir com ele! Minha única chance de realmente machucá-lo, fazê-lo sofrer, mais do que qualquer surra, é dormir com ele! A idéia é nojenta, mas eu já tomo isso como um dever para com a pátria! Eu preciso destruí-lo de algum jeito, não importa quem ele seja!

Chego no alto das escadas, e fico olhando para a porta fechada. Onde estou com a cabeça que não dou meia volta, desisto de tentar seduzi-lo para depois acabar com tudo de bom que há nele, se é que há, volto encharcado assim mesmo para casa, durmo e esqueço tudo isso? Mas... O quê? Esquecer que agora estou com um arranhão inexplicável no meu pescoço e um mais profundo ainda no meu ego? Eu lhe faço o favor de tentar beija-lo e tudo o que Saiyame me dá é um pirulito?

Dou um chute no meio da porta, que cede e quase cai das dobradiças. Estou começando a perder a paciência com Saiyame. O barulho foi tão alto que minha cabeça dói como fosse estourar. Mais um chute e a porta se escancara para um corredor iluminado de casa antiga, o papel de parede com aquela cor ácida é quase um choque. A porta está quase a ponto de desabar. Vamos ver o que ele vai fazer agora...

O que ele faz? Um instante depois de ter arrombado a porta da casa de um estranho, vejo somente seus olhos quase amarelos surgindo de detrás de uma parede. Depois some. Fico ofegante no corredor, quase esperando que algum vizinho chame a polícia, e pensando em pegá-lo a força se ele não vier aqui. Mas ele vem. Está descalço e sem o casaco. E Saiyame coloca uma chave de fenda na minha mão.

"Você vai consertar isso." – Não há medo nem surpresa, nem nada em seu rosto, somente indiferença.

Olho para a ferramenta na minha mão molhada e olho para Saiyame, que acaba de me dar as costas e ir caminhando tranqüilamente para dentro da casa.

Neste instante penso seriamente em usar essa coisa para cometer um homicídio.

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Termino de apertar os parafusos já perto de meia noite, ainda ensopado, e sem poder voltar nessa chuva que não pára. Escuto um ruído no fundo da casa. Deve ser a cozinha. Vou para lá, as luzes ainda estão acesas. Saiyame está à mesa, com um prato com migalhas de bolo à sua frente, o garfo repousando ao lado. Ele olha para o lado, para onde não há nada que justifique essa expressão. Ele me vê parado na entrada da cozinha e aponta uma outra cadeira. Não vou. Chego bem perto dele e contrariando a vontade que tenho, não o ataco com a chave de fenda. A coloco encima da mesa.

"Você não se importa comigo, não é?"

"Não." – Sua resposta é desconcertante...

"Também não deve se importar de eu ter entrado assim na sua casa."

"A casa não é minha." – Essa simplicidade crua...

"Vai se importar se eu ficar aqui? Você pelo menos quer que eu fique?"

Não responde. Fica calado olhando de novo com aquela mesma expressão perplexa e curiosa com que poderia olhar para uma girafa de duas cabeças. Dando o assunto por encerrado, Saiyame me oferece uma fatia do bolo que está debaixo de um guardanapo, sobre o balcão da pia. Aceito, para tentar entrar nesse jogo que ele está fazendo. Ele nunca tira esse gorro? Tanto faz. Digo meu nome, tento não usar de um tom muito duro, nem muito alto. Serve meu prato como se estivesse sozinho nesse cômodo. Digo o que faço, digo que não gostei nem um pouco do que ele fez ainda há pouco, na rua. Será que está me escutando?

Saiyame volta para a mesa e coloca o prato à frente da cadeira vazia.

"Por que você faz isso comigo?"

Ele continua a me ignorar. O bolo é delicioso, um pouco doce demais para o meu gosto. Deixo o confeito dele de lado. Saiyame discretamente estica o braço sobre a mesa e pega as pequenas placas de açúcar colorido. Agora vejo que tudo isso só pode fazer parte de um delírio meu, é pior do que quando me intoxiquei com formol, na faculdade. O pulso dele aparece pela barra da camisa, e está todo roxo, azulado. Quase o quebrei, por que agiu como se não houvesse acontecido nada? Não demonstrou dor em momento algum, a única coisa que o fêz sofrer foi ver a garota, Tomoyo. Afinal, o que há de tão podre entre eles? E Li Siaoran, que parece trazer acidentes a cada canto em que está? Saiyame e seu descaso para qualquer coisa que não seja Tomoyo...Para tirá-lo de si só precisei tirar seu gorro. Será que ele é maluco? Quero voltar para casa...

Ele come distraidamente os pedaços do confeito, suas unhas são curtas e inofensivas, ele nem levanta os olhos para mim. Mas apesar disso tudo, está me assustando. É como estar vendo-o mentir em cada gesto, mas mesmo assim dizendo a verdade. Está lambendo a ponta dos dedos, e seu olhar é perdido. Por um momento tento não ter raiva de Saiyame, quase consigo ter simpatia por esse rosto arredondado e por esses cachos louros caindo do gorro, achar bonitos esses olhos rasgados e amarelos, mas de repente fala. Comigo ou com ele mesmo? Nunca vou descobrir:

"Cuide bem de Tomoyo."

"Por que?" - Minha voz o faz pestanejar e olhar para mim, sem expressão alguma.

"..." - Saiyame estica o braço de novo e pega no meu cabelo. Quase reclamo quando lembro que seus dedos estão sujos, mas sei que não vai adiantar. Se tudo o que tem é curiosidade é melhor do que nada. Se pelo menos eu houvesse recuperado um pouco da minha cor normal, não estivesse tão pálido e nesse estado vergonhoso, molhado e alguns anos mais velho de tanta raiva que passei em dois dias por causa dele... Se meu cabelo não estivesse desse jeito, solto e molhado, desalinhado... Não desisto de querer dormir com ele para poder magoá-lo, ignorá-lo, depois. Onde mais eu iria poder me divertir tanto fazendo a coisa que mais gosto, além de me vingar de um desafeto? Seguro sua mão. O que eu não faço para desforrar a minha raiva? Não a beijo. Deslizo minha língua pelo dorso de sua mão, sem tirar os olhos dos dele, e termino de arregaçar sua manga, e minha língua passa sobre seu braço também. Espero que derreta nas minhas mãos, com tantos outros antes dele, mais do que isso para dizer o que quero, impossível. Seus olhos se dilatam. A mesa treme, quando mordo de leve seu braço, e Saiyame entreabre os lábios, cada vez mais e...

Ele boceja.

Está fazendo isso de propósito, eu não acredito!

Paro no mesmo instante e fico pensando em como vai ser bom apertar seu pescoço em vez de apertar seu pulso. Não sei como pude pensar em dormir com ele. Isso é nojento... Estou furioso. Vou embora agora mesmo e espero nunca mais vê-lo na minha frente. Por que tem tanto poder de me irritar? Volta a catar pedaços de confeito. Nem parece que eu tentei alguma coisa, age naturalmente. Quando me levanto, bruscamente, a cadeira caindo no chão e eu, bufando de raiva, ergue os olhos e pergunta o que quero, assim, como se eu fosse um nada e estivesse incomodando, ainda por cima. São palavras estranhas. Por que me irrito com ele? Vejo o estado em que estou, não estou nada atraente assim, muito menos com essa bandagem ridícula no pescoço. O que eu quero afinal?

"... Continue a me contar aquela história..." – Digo, respirando fundo e colocando a cadeira no lugar. Não tenho mais escolha alguma, pelo menos vou ter onde passar a noite, mesmo que sozinho num sofá cheirando a mofo.

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Hisashi escuta mais uma vez. Ele já conhece o começo da história, ele, Siaoran Li e Tomoyo escutaram juntos, mas como se de comum e silencioso acordo entre todos, soubessem que há coisas que apenas um deles deve ouvir, além dos outros. Hisashi, sua curiosidade e arrogância, o empurram a ouvir. De alguma forma ele sabe que estas palavras são cruas e os termos são terríveis, mas ele escuta tudo, sem saber se é verdade ou apenas um pesadelo descrito como um conto de fadas:

O Mestre chamava-se Lead. Contava que sua mãe o chamou assim quando viu a cor de seus olhos, que eram da cor de chumbo. Ela era mais uma prostituta do porto de Hong Kong, e seu pai era chamado simplesmente de "Estrangeiro", mercador de tabaco e especiarias, proprietário de navios em seu próprio país, e aqui, ele era capitão de sua própria embarcação. Ele não era jovem quando a conheceu, e ele abandonou sua esposa inglesa, mandando notícias de sua própria morte, fêz sua fortuna no Oriente, e deu à prostituta a vida de uma rainha. Quando fêz isto, Hong Kong era apenas um porto de passagem de piratas e navios baleeiros. Ele morreu, antes de ver seu filho nascer, mas confiando que sua mulher, mesmo não sendo cristã, faria o melhor por ele. Ela fêz: nunca lhe ensinou, e nem permitiu aos missionários, ensinarem-lhe nada sobre o Messias dos bárbaros. Ela o educou entre ervas e encantamentos, vísceras de animais e histórias sobre sete vampiros de ouro. Mas também não viveu muito, mas o suficiente de educa-lo sobre as artes negras da magia, passadas a ela desde a quinta geração antes dela, de feiticeiras de amores desafortunados, que as levavam para os bordéis antes mesmo dos treze anos de idade.

O Mestre era chinês demais para ser inglês, e inglês demais para ser chinês. Não perdera em nada o humor ácido que aprendera com sua mãe, e por isso criou o servo, do corpo de uma criança morta e da pele arrancada de um leão vivo. Para sentir o que desejava ser, ele chamou o leão de Cerberus. Cerberus parecia-se com qualquer outra criança, mas Mestre Lead sempre o tratou como a um adulto, deliciava-se em ver como o pequeno esforçava-se para ser o que o ele queria. Embora tivesse criadas, Cerberus (Ele lembrava vagamente de ter tido outro nome, um dia, mas a cada dia ao lado do Mestre, essa lembrança ia ficando cada vez mais distante e apagada) tinha de trabalhar junto delas, mesmo que fosse pequeno demais, ou não tivesse tanta força. Por medo (Lead nem sempre tinha humor confiável, ele apunhalava seus inimigos sempre com o mesmo doce sorriso que mostrava às queridas visitas...), ou por lealdade (Não sabia por que, mas sempre fêz tudo o que ele quis, até quase depois de descobrir certas verdades...) obedecia.

Era dele o único quarto com grades na janela, de toda aquela casa. Quando o mestre permitia, passava algum tempo olhando pelas janelas, proibido de acenar para os criados chineses que sorriam para ele, enquanto aparavam as folhagens das roseiras. Também era proibido de olhar-se em espelhos, tanto que o único quarto que tinha um era o de Lead. O Mestre sempre lhe dizia que era uma aberração que só se comparava à besta que lhe deu o nome.

Quando não o tratava como a um pequeno escravo, Lead o tratava como a um enfeite, um adorno, bibelô com o qual podia fazer o que bem entender. O servo sempre tinha roupas bonitas para vestir, seus sapatos eram sempre novos e suas meias brancas eram impecáveis. Uma criada inglesa sempre penteava seus cabelos e os atava com fita, e dizia que ele parecia uma miniatura de rapaz. Cerberus nunca se alegrou de ouvir isso, pois com tanto capricho, todos naquele palacete sabiam o que viria a seguir.

O Mestre o atraia, sentava-o em seu colo e sorria, tocava-o, somente nestas horas com brandura, mas não como tocasse uma criança. Cerberus mordia as mãos de Lead para fugir dele, e corria pela casa, sabendo que uma surra viria, sabendo que as criadas todas assistiam aquela perseguição, sem poder fazer nada, tão prisioneiras da vontade daquele bruxo quanto ele. O Mestre, quando o tocava e tentava desmanchar o laço de seu cabelo, dizia baixinho e de uma forma nojenta, em seu ouvido, que ia mostrar-lhe quem era o mestre da casa.

Ele, inexplicavelmente, mesmo sem saber o que significava a morte, desejava mata-lo, mas a lealdade era algo tão entranhado em sua alma que não o permitia. Desejava fugir, chegava a esmurrar a porta da frente, quando fugia dele, e um dia, somente uma vez, quando era apenas ele e Lead na casa, Cerberus encontrou a mesma porta aberta, via o jardim de rosas, além dele o portão também aberto, criados cuidando das flores, a alameda de paralelepípedos, e o céu era muito mais azul agora do que jamais fora através da vidraça. Cerberus, todavia, não continuou. Não conseguiu erguer seu pé descalço dos belos sapatos para atravessar a soleira. Ouvia a voz forte do Mestre o chamando, rindo, sorrindo, sempre... Quem não o conhecesse... As criadas rezavam e as mais jovens choraram quando aconteceu isso. As mais velhas também choraram quando o escutaram gritar, sentindo que sua vida estava presa a do bruxo, tanto que não tinha forças para fugir, e tudo o que podia fazer era gritar, de raiva, de vergonha, e inutilmente, sob o sorriso doce de Lead, que não mais tentou tocá-lo depois desse dia, esmurrar inutilmente o chão, abrindo finas rachaduras sobre o mármore, sabendo que nunca poderia erguer-se contra seu criador.

Mas ele agüentava tudo isso. Lead nunca conseguiu dele o que queria, por que não tolerava sua rebeldia, sua agressividade, sua independência, mas o mantinha somente por sua lealdade, por sua força. Por vaidade. Era um homem de muitos inimigos, e Cerberus era um feroz guardião, ainda que uma criança. Alguém para pisar, embora precisasse dele, e nunca teve certeza se foi seguro dar-lhe tanto poder e fazer tão pouco para cativar sua lealdade, além das preces de conjuração que fêz sobre o cadáver da criança. Lead era um mestre que confiava muito em seus feitos, no poder que o tempo e a magia lhe deram, nunca se preocupou com isso, com a falta de confiança de Cerberus. Preocupou-se apenas por uma coisa: Cerberus estava crescendo, mas não crescendo para ele, como era sua intenção, que crescesse para esquentar sua cama, que por vontade própria, era sempre vazia da mesma companhia por mais de uma noite.

Ele não ignorou o perigo que a revolta de Cerberus por não poder fugir daquele inferno poderia significar. Não ignorou que se o forçasse, certamente ele o mataria. Tinha uma força que ele mesmo desconhecia, na verdade esse poder desmedido havia sido fruto da inexperiência de Lead, ao cria-lo, que lhe deu a mesma força de um sol. Então, o Mestre não voltou a persegui-lo com aquele sorriso, e não mais o atraiu para perto de si com doces e agrados sobre sua cabeça.

Lead (No começo, Cerberus o chamava de pai, sem saber ao certo o motivo para isso, mas desde quando teve de mordê-lo para se soltar daquele toque imundo pela primeira vez, o chamou apenas de Mestre) dispensou metade dos criados, e ficou apenas com os mais antigos. Chamou o alfaiate novamente, e mandou que fizesse roupas de criança. Para Cerberus? Não. Menores. Bem menores. Eram roupas que poderiam estar vestindo as bonecas de porcelana que decoravam a velha cristaleira do corredor, tão delicado era o acabamento delas quando prontas, sapatos que há muito não serviam mais nas medidas de Cerberus.

Uma das criadas, naquela manhã, depositou sobre a cama vazia que havia no quarto de Cerberus, lençóis novos, uma colcha bordada como a que havia na cama do servo e uma camisola de criança. Não fazia idéia do que estava acontecendo, mas eram ordens do mestre, e pelo menos comia-se e vestia-se decentemente naquele palacete, melhor do que no albergue da missão anglicana, não importava o que o pastor acusava Lead de fazer, feiticeiro, herege, adorador do demônio ou não, ele pagava muito bem seus empregados e mais ainda pelo silêncio deles... Cerberus também não podia falar com os criados, e eles, não podiam falar com ele. Ele já aparentava oito anos, depois dos três que já estava com Lead. Esperou a criada arrumar as coisas e, silencioso como aprendera a ser, adulto demais para tão pouca idade, tocou a cambraia daquelas roupinhas de dormir tão pequenas e lembrou-se de que a lembrança mais antiga que tinha daquele quarto começava exatamente com uma camisola como aquela, mas com bordados azuis. Estes eram amarelos. E ela era menor.

O servo engoliu em seco e seus olhos arderam, inexplicavelmente. Ele não sabia o que era chorar, pois tudo o que havia de humano um dia em sua alma, havia desaparecido com o tempo, à medida que se esquecia do nome que teve antes de ser chamado como o cão de três cabeças. Quando tinha raiva, a primeira coisa que passava por sua cabeça era matar. Quando tinha medo, também desejava faze-lo, para livrar-se, fugir. Quando sentia-se magoado pelos atos e palavras de Lead, mais do que nunca queria sair daquele lugar, mas saber não poder atravessar a soleira sozinho o fazia gritar de tanta raiva. Nestas horas de desespero acompanhadas de longe pelas empregadas, elas poderiam parecer loucas, porém era claro que a partir de certa altura não eram mais gritos de raiva de uma criança indignada e desesperada, e sim rugidos da fera que repousava dentro dele. Ver aquela camisola pouco maior que a de um bebê o fêz sentir tudo isso de uma única vez. Queria se sentir feliz, mas não conseguia. Não via um motivo de alegria, pensando bem.

Só quem estava alegre era Lead. Ele havia ido ao porto, buscar uma caixa de madeira escura, que estava dentro de outra caixa, cheia de serragem e açúcar, semelhante às caixas que se usavam nas despensas da casa, para conservar a carne e o peixe, que por dentro eram geladas como as vidraças no inverno. Dois homens vieram com ele. Ambos carregavam a caixa, que dos cantos gotejava vez por outra, no chão, pelo caminho até o porão. Cerberus escutou seu nome ser chamado e no caminho viu que era água sobre o mármore. Há três dias que Lead descia sozinho para o porão, sem chamá-lo para ajudar em nenhum ritual ou aprendizado. O Mestre levava apenas um jarro de água, que voltava sempre vazio, agora, ele pedia mais um, e Cerberus desceu as escadas cruzando com os estivadores no caminho, e ouviu-os dizer entre si que Lead deveria ser louco, que se não pagasse tão bem pelo serviço, jurariam por suas almas que o matariam para fazer um favor a Hong Kong.

Ele se assustou com o que ouviu, e aquelas palavras não o abandonaram. Quando se encontravam apenas eles dois, o mestre e o servo no porão, uma criada fêz o que havia sido ordenado e trancou a porta de cima por fora, com duas voltas da chave e a barra de ferro atravessada nela. Cerberus por um momento teve medo, mas quando se aproximou dele e o levou pela mão para o nível mais baixo do porão fétido, viu-o sob a luz dos lampiões e velas de sebo e notou que vestia o traje de cerimonial, que só havia visto usar quando o vira pela primeira vez. Detrás de mais uma porta, estava o lugar que ainda dava arrepios de terror a Cerberus, quando imaginava os sons do leão descarnado, morrendo aos poucos ao seu lado. No fundo da cela, havia uma criança desmaiada, pequena e magra, suja, parecia estar faminta, tentava recobrar a consciência, mas não conseguia.

Pegou então o jarro cheio de água que estava nas mãos do servo e chegou-se mais perto dela.

Chamou-a de bebezinho, com doçura, até que abrisse os olhos. Era uma criança inglesa. Os farrapos que a vestiam eram restos de um uniforme de orfanato das missões que havia em Hong Kong naquela época. Quantos anos deveria ter? Três? Quatro? Seus olhos estavam baços, vermelhos, estava tão sedenta que não tinha mais o que chorar, seus lábios estavam descorados e partidos. Por um instante Cerberus viu-se ali, no lugar dela.

"Por favor, Mestre. Dê-lhe água."

Sorriu para Cerberus e respondeu:

"Quando era você quem estava aqui, eu lhe dei água nos três dias de fome que você passou para se purificar... Veja só o monstro que você se tornou agora."

A criança era tão pequena que soluçava em seco, o grilhão em torno de sua cintura devia machucar muito... Cerberus reconhecia aquela dor, o peso da corrente. Seus olhos arderam demais, e então, achou que estavam feridos, mas continuaram secos, porque então, subitamente o Mestre gritou-lhe que deveria fazer tudo o que ele mandava.

Olhou longamente para Cerberus, que não baixava os olhos dos seus e olhou também a criança pequenina estendida no chão.

"Está bem. Eu darei água a esta criança."

Dizendo isso, Lead derramou todo o jarro no chão, e a água escorreu rapidamente para entre as pedras. E ele atirou o jarro seco de encontro a seu servo, que se não desviasse, teria acertado-o em cheio no rosto.

E o pior, é que ele fêz tudo isso sem tirar aquele sorriso doce e amável dos lábios.

CONTINUA